Apresentamos mais um belíssimo texto deste nosso colaborador que além de algo para nós completamente desconhecido, revela outra faceta importante da sua escrita.
Penso que posso em nome dos visitantes/leitores apresentar-lhe o nosso agradecimento pelo conteúdo e beleza do texto. J.V.
Escreve
José Temudo
Alcoutim era, em meados da década de trinta do século passado, uma vila semelhante a tantas outras do interior, de norte a sul do País.
Vila pequena, rural e pobre, viu o tempo e o progresso passarem-lhe ao lado sem lhe deixarem marcas visíveis.
Alcoutim era o retrato levemente retocado do que fora no século XIX. As mesmas casas, as mesmas vias de comunicação, os mesmos meios de transporte, a mesma iluminação pública e doméstica, a mesma falta de saneamento básico e de distribuição de água ao domicílio, a mesma falta de oferta cultural e de animação social.

Sem indústria, com um comércio primário e uma agricultura não mecanizada e relativamente pobre, esquecida pelo poder político e sem meios próprios capazes para modificar fosse o que fosse, a vila de Alcoutim, abúlica, parecia dormitar.
Conscientes deste estado de coisas e certos de que as instâncias políticas superiores continuavam surdas aos seus apelos e petições, um pequeno grupo de pessoas gradas do concelho resolveu montar uma pequena e ligeira “farsa” na convicção de que, brincando, os seus queixumes pudessem surtir melhor efeito. Assim, resolveram escrever e enviar a um jornal de Faro a notícia de que o povo do concelho, não suportando mais o isolamento e o atraso em que vivia, se revoltara e se mobilizara, concentrando-se, com grande alarido, em frente do edifício camarário, para onde acorreram, sem demora e com manifesta preocupação, as autoridades e as figuras mais representativas dos diversos serviços civis e paramilitares (Guarda Fiscal e Guarda Nacional Republicana). Estabelecido o contacto e iniciado o diálogo com uma deputação de manifestantes, ouvidos os motivos da revolta e os seus anseios, as autoridades entenderam solidarizar-se com o povo e, em seu nome, proclamaram a independência do território de Alcoutim.
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A notícia era acompanhado de fotografias mostrando um grande aglomerado de pessoas em frente dos Paços do Concelho (fotos tiradas no dia da feira anual) e outras mostrando as chamadas autoridades, às varandas da Câmara, evidenciando os gestos que acompanham a retórica apaixonada própria da solenidade de um acto daquela transcendência.
Tudo isto me foi contado por meu Pai, já eu era um homenzinho. Desafortunadamente, não retenho na memória nem o nome do jornal, nem a data em que a notícia foi publicada, mas julgo ter sido Alcoutim não vem no mapa o título que a encabeçava.
Ganhou o concelho de Alcoutim algum proveito resultante da publicação desta inocente “farsa” ? Nada ganhou, a não ser a previsível irritação do poder político que bem depressa se manifestou.

Por ter sido o redactor da notícia, o meu Pai terá sido o primeiro a sofrer-lhe as consequências: foi chamado a Faro e asperamente repreendido pelo seu superior hierárquico distrital. O que, com toda a probabilidade, terá acontecido, embora revestindo formas diferentes, a todos os participantes referenciados na notícia. E boa sorte tiveram em não terem sofrido castigo mais severo. O Estado Novo não gostava mesmo nada deste tipo de brincadeiras!
E não se falou mais no assunto. Alcoutim continuou, placidamente, a contemplar S. Lúcar, a mirar-se no Guadiana e a ver um ou outro navio de maior calado em viagem para o Pomarão ou de regresso a Vila Real de Santo António, com o porão carregado com o precioso minério de cobre.