Escreve
Amílcar Felício
O REGRESSO: PORTUGAL
TINHA MUDADO, ALCOUTIM ESTAVA DIFERENTE...

Foi uma assembleia super-agitada e cheia de emoção. No meio
de intervenções entusiastas e exaltadas que reflectiam naturalmente o momento
de euforia que se vivia, lá aparecia uma ou outra voz mais ponderada tentando
trazer a assembleia à realidade. No final concluiriam ser necessário alguma
prudência até que a situação ganhasse maior clareza e consistência para
regressarem, pois poderia tratar-se eventualmente de uma simples mudança de
moscas. Constatava-se de facto que havia gente suspeita quer no Movimento, quer
sobretudo por detrás dele.

Os amigos mais chegados de Armando decidiriam contudo enviar
a Portugal uma “emissária” para se inteirar ao vivo e tomar o pé à situação,
junto de alguns amigos bem informados que estavam no país. Quando regressou,
dava a situação como praticamente irreversível aconselhando os amigos a
começarem a fazer as malas. Mas aqueles quase 5 anos em Bruxelas que agora se
aproximavam do fim, tinham-lhes parecido uma vida e tinham-lhes dado a medida
exacta do quanto gostavam de Portugal! Aquilo parecia um bichinho que estava
sempre a roer lá dentro!

Armando encontrou Portugal num frenesim, aonde não havia
sequer tempo para almoçar nem para jantar! Às vezes aquilo assemelhava-se a um
vulcão prestes a implodir. Havia cenas então que lhe lembravam os filmes do
Eisenstein ao contrário, pois parecia que eram as massas trabalhadoras que
tinham saltado do ecrã para a vida real em luta pelos seus interesses e
querendo tomar em mãos, as rédeas do seu próprio destino.
Por outro lado a sua família mais chegada tinha abandonado definitivamente Alcoutim, há já alguns anos. Assim, quando lá voltou já os cravos de Abril murchavam há muito. Armando faria apesar disso o caminho da memória ao “seu território sagrado” – guardião do seu pequeno mundo de afectos de infância e da juventude – cheio de emoção, levando na bagagem a lembrança dos belos tempos passados no meio daquela gente boa que ia novamente abraçar.
Mas verdade seja dita que também levava alguma curiosidade
nas algibeiras, pois tinha-lhe constado que os seus conterrâneos estavam
profundamente divididos ideologicamente, com listas negras de um lado e do
outro dizia-se à boca pequena. Armando não conseguia imaginar a sua gente
chegar a tais níveis de agressividade, numa região que lhe parecia uma “zona
branca” apesar de encostada à “zona vermelha” latifundiária alentejana de quem
sofria bastante influência cultural, sobretudo ao nível dos cantares, do vestir
e da comezaina. Mas era tudo...
De facto nunca tinha tido conhecimento de qualquer tipo de
conflitos sociais no Concelho ao longo de todo o século XX, naturalmente por se
tratar de uma região de pequena propriedade rural e de tentativas embrionárias
de pequenas indústrias que não passariam disso mesmo, aonde as classes estavam
pouco extremadas e os interesses sociais pouco divergiam, chegando-se no máximo
a uma pequena burguesia popular comercial e de serviços e a uma ou outra
família de classe média rural ou citadina, pouco convencidas do seu estatuto e
com tendência a cair pela escada abaixo.
Contudo, mal abraçava ao fim de tantos anos com a emoção do
regresso um dos velhos companheiros de tanta farra na juventude e já este o
avisava logo à chegada: “sabemos que és comunista, mas podes andar à vontade
pela Vila que ninguém te faz mal, pois sabemos que és um comunista bom”!
Armando lembrando os tempos passados e o seu Alcoutim de antigamente ficou
petrificado, pois estava longe de imaginar uma recepção daquelas. Mas do mal ao
menos, afinal de contas era considerado um “comunista bom” o que já não deveria
ser nada mau pela tolerância que demonstrava! Mas dava para perceber a divisão
que existia realmente entre os seus conterrâneos!
Ainda que não soubesse lá muito bem o que é que era aquilo
de ser um “comunista bom”, o facto é que a magana da frase intrigava-o e
vinha-lhe martelar a cabeça vezes sem conta: o que será que eles querem dizer
com aquilo de ser um “comunista bom”, será que eles pensam que uns são-no pela
razão e por amor e outros apenas por ódio, inveja e vingança, por desconhecerem
a revolta contida naqueles para quem a vida foi madrasta, calcando-os e
espezinhando-os sem dó nem piedade como uns farrapos?
Mas Armando lá ia percorrendo os cantos à Vila em busca das
suas memórias, escondidas numa casa derrubada mais aqui ou numa cara já
enrugada mais adiante, sem dar grande importância àqueles “conselhos”, falando
com todos e a todos respeitando naturalmente. Curiosamente sentia também o
respeito de todos, apesar do rótulo que lhe tinham colado sem saber bem porquê,
pois nunca tinha mexido uma palha no seu “quintal” alcoutenejo. Mas o mais interessante
era que vinham desabafar com ele, fazendo-lhe queixas uns dos outros. Armando
tentava arranjar uma explicação para tanto ódio acumulado naquela gente tão
pacata e colocava a hipótese da existência de algum radicalismo inicial ou de
contradições mal resolvidas entre eles, pois tinha-lhe constado à distância ter
existido um ou outro saneamento durante o PREC!
Vinha-lhe à memória as estórias trágicas das matanças que
tinha ouvido em criança sobre a Guerra Civil em Sanlúcar e era-lhe fácil
perceber a linha tão ténue que separa a lucidez da loucura, a vida pacata e
normal da tragédia. Ficava arrepiado só de pensar naquelas coisas! Era difícil
ser padre naquela freguesia. Armando sentia-se profundamente triste por ver os
seus conterrâneos chegar àquele patamar de ódio, quando nada justificava aquela
separação dada a similitude dos seus interesses e o seu inimigo ser basicamente
o mesmo.
A força que as ideologias têm caramba (!) – pensava ele para
os seus botões-- e ainda andam para ai uns quantos “teóricos” da treta a
proclamar e a escrever livros sobre “o fim das ideologias” (!). Mas a verdade é
que já não se reconhecia nem se sentia confortado naquele seu Alcoutim! Era-lhe
penoso conviver naquele ambiente de cortar à faca e na verdade regressou a Lisboa
um pouco desiludido e tristonho.
Em Lisboa Armando e Faustino embora não se falassem,
continuavam a ter notícias um do outro. Faustino tinha prosseguido e
“aprofundado” o seu percurso iniciado em Bruxelas e tinha-se deixado encantar
em toda a linha pelos Cantos de Sereia da Sociedade de Consumo, naquilo que ela
tem de mais perverso e mais degradante para a dignidade humana que se possa
imaginar. Um dia foi a casa da mãe visitá-la. Pediu-lhe para ir à rua
comprar-lhe um maço de cigarros. Quando a mãe voltou encontrou-o enforcado.
Possivelmente foi a maneira mais simples que Faustino
engendrou para regressar de novo ao útero materno e recomeçar uma nova vida a
partir dali. Um caso que dá que pensar. Um “case-study” para psicólogos dirão
outros mais eruditos. Era mais uma vida desestruturada, que tinha sido desviada
do seu curso normal e que Salazar ceifava ao retardador, entre tantas outras.
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Alcoutim visto do Cerro da Castanha. Foto JV, 1973 |
Aliás, na sua cabeça já o tinha desenhado há muito:
trabalhador, pois as coisas deixariam de cair do céu aos trambolhões para
alguns e com a dignificação que o trabalho – verdadeiro responsável da transformação
do macaco em homem – merece, solidário que olhasse o mundo para além do seu
próprio umbigo, livre de qualquer amarra económica ou social e até do medo de
si próprio, a pensar pela sua própria cabeça libertando toda a sua imaginação
criadora e sem a espinha e a razão dobradas perante nada nem ninguém,
consciente de que com as suas mãos e a sua inteligência era o bem mais precioso
e extraordinário deste mundo e era a ele que tudo produz, a quem competia
organizar as coisas da sociedade à sua maneira.
Mas apesar dos seus sonhos e ideais Armando não se
considerava um idealista na verdadeira acepção da palavra, nem um filósofo como
o pai lhe chamava na juventude, pois tinha fortes convicções materialistas
partindo do princípio de que uma boa terra bem trabalhada e adubada, produzirá
sempre boas e grandes colheitas. E afinal de contas não será sempre o homem –
mais coisa menos coisa – um produto do meio e das suas raízes e circunstâncias?
Contudo, não seria apenas a agricultura tradicional a ser
abandonada depois do 25 de Abril. Também a “agricultura moderna” que começou a
ser cultivada na altura por aqui e por ali, seria posta de lado aos poucos e
poucos havendo cada vez menos “agricultores” a pratica-la. Daí que as “colheitas”
sejam cada vez mais miseráveis. Mas ficaria sempre amigo daquele homem
“primitivo e pré-histórico” com quem conviveu anos de sonho e em sonho. Possivelmente
com os outros que andam por aí também não se entenderia lá muito bem e talvez
não conseguisse ser feliz, sabe-se lá...
Duas Notas Finais:
1) Nem todos os contos
poderão ter sempre um final feliz e acabar da mesma maneira: “casaram, tiveram
muitos meninos e foram felizes para sempre”, senão quem é que ainda tinha
pachorra para ler um conto nos tempos que correm?
2) Este conto é
dedicado por inteiro ao Amigo Nunes, pois sem este espaço caseiro, intimista e
de liberdade absoluta chamado Alcoutim Livre, seguramente que nunca teria visto
a luz do dia. Armando se existisse, certamente de que também estaria de acordo.