segunda-feira, 20 de outubro de 2008

GUARDADOR DE GADO HÁ 60 ANOS!


É localmente designado por maioral das ovelhas pois é o gado ovino a que mais se dedicou e ainda pastoreia aos sessenta e oito anos de idade, nas redondezas do monte que o viu nascer.

Viu a luz do dia em Afonso Vicente, freguesia e concelho de Alcoutim, no ano de 1940, sendo um dos cinco filhos do casal.

Dos cinco, só ele não foi à escola por razões que o têm atormentado toda a vida e não encontra explicação.

Aos sete anos, quando devia de ir para a escola, começou a guardar duas ovelhas pretas, uma branca e uma cabra, igualmente branca, e que eram do pai.

Pouco depois e no monte em que nasceu, vai guardar quatro vacas do padrinho, recebendo o pai 15$00 por mês, referente ao seu salário.

Numa ida ao mercado do Pereiro, uma residente num monte vizinho, ao fazer trajecto por Afonso Vicente, viu o moço que lhe pareceu poder ser útil e sabendo quem eram os pais, com eles falou, contratando-o para lhe guardar duas porcas parideiras. Tinha dez anos e o pai recebia 20$00 por mês.

De regresso do Pereiro, sede da freguesia mais central do concelho de Alcoutim, voltou a passar por Afonso Vicente para que o moço fosse com ela e iniciasse o trabalho para o qual já tinha idade bastante, segundo as concepções da época! Lá seguiu o mocinho com a nova patroa.

A experiência não podia ser muito gratificante. Lá partia com as duas porcas, conduzidas por uma varinha.

Como o guardador das ovelhas se tivesse despedido, passou ele a executar tal trabalho. Eram trinta as ovelhas à sua guarda. O pior era o conteúdo do taleigo, constituído por um bocado de pão, umas peles de chouriça, ou um bocado de toucinho rançoso. Em alternativa, umas azeitonas ou uma mão cheia de figos secos, alguns com bicho.

Ainda que o patrão fosse, segundo afirma, boa pessoa, o pior era a patroa que não suportava pela sua maneira de ser e pelo tratamento.

Em tal situação, escolheu a alternativa de fugir para casa dos pais aos quais afirmou que se o obrigassem a regressar, sabia o que havia de fazer.

É preciso aqui dizer que a situação do Francisco não era inédita. Nesta zona da serra algarvia, onde a pobreza dos solos era notória e as famílias numerosas um facto, não havendo possibilidades económicas de criar a prole, logo que os moços pudessem realizar alguma tarefa, sendo a mais utilizada o guardar gado, eram encaminhados para quem os concertava, recebendo o pai mensalmente determinada quantia que iria ajudar a criação dos irmãos mais novos. Era uma situação aqui considerada inteiramente normal e muitos dos que por aqui nasceram, passaram por essa situação, como ainda hoje se pode comprovar.

A patroa perdeu aquele moço que dormia no palheiro, logo arranjou outro pois, os candidatos ao “emprego” eram sempre muitos.

O regresso à casa paterna levou-o a guardador de ovelhas, no próprio monte, pois era necessário arranjar outro “patrão”.

Esteve uns tempos pelo monte guardando vacas ou porcos aqui e ali, até que um dia teve de abalar novamente e por volta dos catorze anos foi substituir na vila o irmão que lhe seguia na idade, guardando vacas. Nesta altura, o pai recebia 75$00 por mês.

Por lá se manteve cerca de dois anos e é nesta altura que perde a mãe, o que provoca a degradação da situação.

Aos dezoitos anos é concertado por um lavrador da freguesia do Espírito Santo, concelho de Mértola para maioral das ovelhas e começa ganhando, já para si, 100$00 por mês. Ali se manteve vinte e três anos, no mesmo patrão, pelo que, certamente se sentia bem. Entretanto foi melhorando as condições económicas com a criação do seu pegulhal que chegou a sessenta e seis ovelhas e três cabras, tal como o salário que era de 12 contos por ano quando deixou a casa.

É no período “Marcelista”, segundo afirma, que começa a descontar para a segurança social, mas quando chegou à idade de reforma (65 anos), não possuía os descontos que afirmava que lhe tinham feito, eque acabaram por não entrar onde deviam. Ao ser verdade esta situação e não tenho razões para pensar o contrário, alguém se aproveitou do seu analfabetismo e principalmente da confiança depositada.

Infelizmente isto não aconteceu só nesta área, aconteceu igualmente no comércio e na indústria e até em autarquias locais. Tenho conhecimento de várias situações, algumas badaladas na imprensa diária. Isto tem a ver com as pessoas e não com as áreas de acção.

Ainda hoje, aquele monte, que foi muito habitado e hoje está quase deserto, tem para ele um sentido especial.

Dentro da mesma freguesia, arranja novo patrão onde se manteve seis anos e começa a vencer 35 contos ano e comer.

Desentende-se com ele (1987) e vai exercer a sua profissão para a zona de Moura, Serpa e Vidigueira. Vence 23 contos mês e levam-lhe uma casa onde dorme, que o patrão desloca conforme a necessidade de pastagem. Guardava entre 400 – 500 ovelhas e mantém-se aqui três anos.

Em 1990 regressa ao anterior patrão, que tinha abandonado por um desaguisado, (vencendo 25 contos mensais) mantendo-se aqui até 2002, altura em que resolve regressar ao monte onde nasceu com o seu pegulhal, dizendo que agora não trabalhava para mais ninguém, por dinheiro nenhum. Estava farto de sofrer por esses xarazes!

Depois disso várias pessoas dele se abeiraram para com ofertas tentadores procurarem levá-lo para a vida que bem conhece. A todos resistiu devido à experiência acumulada.

Quantas noites de temporal passou deitado em cima da parede de um curral protegido por um plástico, para assim evitar a água proveniente da chuva que caía ininterruptamente!

Dias e dias seguidos passados atrás dos rebanhos sem regressar ao ponto de partida, alimentando-se do pouco que levava e sempre a mesma coisa, afastado de qualquer local onde pudesse adquirir qualquer alimento!

Dias e dias sem ver ninguém!

A única ligação afectiva era com os cães que o acompanhavam, fiéis servidores de uma dedicação sem limites e com quem repartia o pecúlio e carinhos!

Nunca o deixaram brincar em criança, hoje brinca com os guias do rebanho que o conhecem muito bem e se prestam às brincadeiras, entre as quais consta o medir forças! É interessante ver a relação de amizade que tem com os cães que frequentemente lhe pedem festas que prontamente satisfaz.

De toda a vida de pastor, o pior que lhe acontece é quando, por dever de ofício, tem de espetar a faca para matar alguma cabeça do seu rebanho! Zanga-se com elas, chama-lhe muito nomes (ah ovelha de um cabrão!), atira-lhe pedras, dá-lhes pauladas, mas custa-lhe muito ter de matá-las, o que raramente acontece. Rejeita igualmente comer a sua carne ou fá-lo com muita dificuldade!

Este homem praticamente nunca tem um dia livre! Os animais necessitam de comer todos os dias.

Pela amizade que lhe dedico tenho tentado convencê-lo a vender o rebanho que lhe dá muito trabalho, ocupando-lhe o dia e a noite e até porque a saúde é precária. –Fique com meia dúzia de cabeças para matar o vício e descanse alguma coisa depois de tantos e tantos anos de trabalho de grande dureza. Assiste-lhe esse direito! O que tem é pouco mas chega-lhe perfeitamente, já que sempre viveu com pouco. Não o consigo convencer, aquela foi e será sempre a sua vida!

Comprou umas casinhas na sua terra natal, mandou-as arranjar, mobilar e tem o indispensável para viver. Gosta muito de ver televisão, tem máquina de lavar, frigorífico, esquentador, etc. Regressa todos os dias a casa.

Vive com um irmão que é igualmente solteiro e está reformado.

Este homem que passou uma vida repleta de desumanidades, seria considerado numa situação de risco para a prática de atitudes menos correctas e que por aí proliferam. É precisamente o contrário, um coração bondoso e sempre disposto a auxiliar quem dele precise, preocupa-se mais com os outros que o rodeiam do que com ele.

É incapaz de ofender alguém, só o fará involuntariamente.

Apesar de tudo, tem ainda boa memória.

Em sua casa está sempre posta a mesa para quem chega. É lá que se juntam as poucas pessoas do monte.

Francisco André, um homem que passou uma vida duríssima, e contrariando o que os técnicos dizem muitas vezes, fez desenvolver em si o sentido humanitário!

Este texto antes de ser publicado foi lido ao protagonista da vida real para o poder confirmar, o que naturalmente fez.

MOIRAL CHICO, VENDA AS OVELHAS E DESCANSE QUE BEM MERECE.