sábado, 31 de março de 2012

Notas sobre a desertificação em Portugal e em Alcoutim em particular




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Daniel Teixeira




Quando comecei a colaborar com o amigo José Varzeano e o seu exemplar Blogue Alcoutim Livre estava longe de supor que as coisas tomariam este bom caminho que desde cedo foram tomando.

Enquanto que o José Varzeano e os restantes outros colaboradores do seu blogue, de uma forma geral, referem factos concretos, cimentados em documentação escrita ou gráfica na sua maior parte, eu, sem ser pretensiosamente modesto, vou escrevendo sobre aquilo de que me lembro dos meus tempos passados num isolado Monte do Concelho - Alcaria Alta.

Por diversas vezes ao longo destes tempos tenho reparado que existe naquilo que sinto e leio, uma demarcação, entre a visão documental e a visão memorial (mesmo aquela que refere Alcoutim / Vila) quase semelhante ou pelo menos aproximada com a dualidade campo / cidade.

Esta minha percepção, minha e só minha, quer dizer sem contas feitas nem grandes análises, tem-me levado também a pensar por vezes, que existem dois Concelhos de Alcoutim: aquele que eu conheci na parte que conheci e aquele que rodeia a Vila e os interesses e vontades das suas gentes e daqueles que lá foram formados e / ou criados.

Claro será que este facto tem a ver mais com a dificuldade (e impossibilidade por vezes) que as pessoas dos Montes têm em expressar, sobretudo via Internet, aquilo que gostariam de dizer. Portanto o meu retrato das situações comparativas que refiro terá sempre de ter isso em conta: não se fala mais dos Montes porque as pessoas que poderiam falar deles ou não estão habilitadas para tal ou simplesmente porque não têm grande interesse nisso. E esta falta de interesse liga-se a muito daquilo que eu escrevo...uma prosa que eu mesmo já defini como sendo depressiva e que vem de forma indirecta de um meio rural deprimido. Mas não só...

Seria complicado ter de admitir isto mas poderia parecer que a solução para as gentes e os Montes do Concelho de Alcoutim tendo de passar por eles, conforme já disse em crónicas ou declarações anteriores, teria de ser encontradas fora deles, gentes e Montes e Aldeias e Vila e que daí, dessas soluções, poderia passar ou não o futuro do Concelho de Alcoutim e da sua Vila sede. Nada mais errado, na minha opinião e por aquilo que me parece é este o caminho que se segue de uma forma maioritária.

Reclama-se contra os poderes centrais, contra o esquecimento a que Alcoutim está votado, pede-se a construção de uma ponte que ligue Alcoutim a San Lucar que se facilite a implantação de empresas vindas não se sabe de onde nem para fazer o quê uma vez que matérias primas não há e mão de obra (mesmo pouco qualificada) muito menos.

Para estes casos e nesta situação as empresas que se implantem no Concelho acabam por custar mais em benefícios fiscais e outros do que aquilo que vierem a produzir de facto. Vejamos o caso dos eucaliptais e contemos (talvez com os dedos de uma só mão) o número de trabalhadores locais que a eles foram afectados. No entanto os dinheiros para a sua implantação foram obtidos por via da referência à desertificação alcouteneja e ao baixo preço dos terrenos.

Ainda não há muito tempo fiz um esboço de um pequeno trabalho sobre a dualidade campo / cidade e, não o tendo completado da forma que desejaria, ficaram no entanto as recolhas e as ilações que se puderam retirar.
Esse meu trabalho de pesquisa levou-me a encontrar um trabalho de tese «QU’EST-CE QUE LA LITTERATURE FRANÇAISE REGIONALE? - (DES ECRIVAINS DU SUD-OUEST DE LA FRANCE) - Lect. univ. dr. SILVIA MIHUT- Univ. 1 Decembrie 1918, Alba Iulia (Roménia) que não sendo exaustivo deixa bastantes pistas sobre as diferenças entre quase galáxias diferentes.

O Concelho de Alcoutim, que eu saiba (e acho que deveria saber se as coisas fossem difundidas de forma conveniente) não tem qualquer forma de incentivo à literatura rural ou de inspiração rural, por exemplo. Em certo sentido – e não me importo muito com as criticas negativas que possam aparecer – de uma forma geral as pessoas que estão ligadas aos Montes e Aldeias do Concelho e que adquiriram alguma cultura nas cidades e vilas para onde se deslocaram pelas razões de todos conhecidas, não são nem estão motivadas para escreverem sobre as suas origens e difundirem a sua memória.

Ora a memória, o estudo da história, ainda que vista de forma ficcional é essencial para aferição e correcção daquilo que foram e são os caminhos do presente. Lá onde a força cultural existente acaba por não existir, por falta de manifestação, as coisas acabam por ser mais complicadas e por vezes parecem-nos ciclópicas.

Sobre este tema veja um artigo do Engº Gaspar Santos no Blogue Alcoutim Livre.

Aliás é esse o mote (a memória) das declarações do Arqt.º Ribeiro Telles no texto que publicámos e sobre o qual fazemos em seguida alguns comentários também.

Dentro daquele espírito que se considera razoável parece-me evidente que o diagnóstico do Arq. Ribeiro Telles acaba por esclarecer muito ainda que se tenha em atenção que se trata acima de uma recolha jornalística, feita com o intuito de informar.

Já escrevi algures que o desenvolvimento (e a vida) dos concelhos e freguesias rurais depende do amparo que for dado à base que esteve na origem da sua constituição e ordenação. Mas não é só a vida dos concelhos e freguesias rurais...

Numa altura em que pretende ter lugar uma reforma administrativa com englobamento, fusão e extinção de Freguesias e mais tarde, provavelmente Concelhos é bom que se tenha presente uma coisa que me parece evidente: não há super-estrutura (mesmo micro) que se mantenha sem estrutura.

Debruçando-me exclusivamente sobre Alcoutim (Concelho, Vila, Aldeia e Montes) pode dizer-se uma evidência que nos parece ...evidente. As razões da sustentabilidade de umas depende das outras numa cadeia lógica que quase nem justifica desenvolver.
Com bastante pena vejo que esta verdade (para mim insofismável) tem dificuldade em impor-se junto de algumas mentes.

Primeiro a terra e o seu cultivo, isso é boa e coerente gestão: criou-se a ilusão de um emprego artificial com obras públicas (ainda que de relativamente pouco valor) e esqueceram-se as vertentes da sobrevida económica e social por arrasto. E a educação para o desenvolvimento...

Lembro aqui um resumo sobre Tomaz Cabreira em «O Algarve Económico» de 1918: «Uma escola móvel do ensino industrial, mas com uma secção comercial, deveria deslocar-se por toda esta região, dando esclarecimentos e fornecendo novas técnicas, quer aos rurais quer aos pequenos industriais, delas carentes. Tomaz Cabreira defende ainda para a região, a criação de escolas agrícolas e de pescas.»
E isto foi escrito em 1918 (e antes e depois por outros certamente) ou seja, há praticamente 100 anos que se fala nisto.

Não estamos no tempo das Escolas Móveis mas estamos no tempo das brigadas móveis e faltará saber o apoio técnico e tecnológico que foi dado à agricultura e à indústria no Concelho de Alcoutim. Se disser que foi zero não ando longe da realidade. Eu, pelo menos nem o vi passar...

Agora o que se quer? Inverter situações com dezenas de anos de ovulação com os mesmos meios que se usavam no início dessa ovulação?
Tenhamos pelo menos tento...já que a inteligência faltou.

sexta-feira, 30 de março de 2012

Guerrilhas - Lenda e tradição oral

[D. Pedro IV]
Já se passaram 40 anos quando estas coisas nos foram contadas. Nessa altura, ainda o tempo não tinha apagado da memória dos mais idosos habitantes do concelho, os factos contados pelos pais e avós à lareira, nas longas noites de Inverno, como era hábito nesse tempo.

Foi tal a impressão causada que aqueles pequeninos seres de então, naquela altura venerandos anciãos, logo que ouviam falar em guerrilhas o seu semblante torna-se mais carregado e recordavam factos contados pelos velhos das suas meninices.

Tinham dificuldade em coordenar ideias, deturpam por vezes, mas a imagem de pavor permanecia.

[D. Miguel]
Por essas aldeias e “montes” há uma história para contar, um local para indicar.

Em Giões, o “moinho dos guerrilhas”, na Portela, uma casa que serviu de “forte”, na freguesia de Vaqueiros, a “horta” e o “cemitério dos guerrilhas”.

A “horta dos guerrilhas” ficava entre Soudes e Alcaria Queimada e nela apareciam sepulturas com ossadas. (1)

Iremos continuar a relatar o que apanhámos na tradição oral.

Contam-nos que as mulheres dos Balurcos escondiam-se no Barranco da Nora, perto do Montinho do Cerro, para se esquivarem às tropelias dos guerrilhas. O local era matoso, o que propiciava um bom esconderijo.

[Um aspecto actual do Balurco de Baixo. Foto JV]

Uma família desta zona tem o apelido “Alferes”. É um dos seus elementos que nos faz a explicação de como o nome foi aglutinado.
Um seu antepassado era abastado lavrador que tinha residência nos Balurcos e que sempre pisando as suas terras deslocava-se ao Vale do Pereiro, onde também possuía habitação, casas que ainda existiam em ruína, segundo o nosso informador.

A vida decorria ora num lado ora noutro, segundo as necessidades do trabalho.

Um dia, deslocando-se ao Vale do Pereiro, foi encontrar a companheira constrangida que lhe contou terem lá estado os guerrilhas, levando tudo o que apanharam, depois de se banquetearem.

Abrindo o pipo do vinho, beberam até fartar e não satisfeitos deixaram-no correr ao desbarato.

Nessa noite, os locatários voltaram a ter visitas, talvez por se terem dado bem da primeira.

[Um aspecto do pequeno monte dos Guerreirinhos. Foto JV]

O lavrador escondendo-se, possibilitou ao freguês uma fácil comezaina, rebatida com apaladado vinho caseiro, para o que se deitou debaixo da torneira do barril, abrindo-a. Quando o viu meio grogue, o lavrador vibra-lhe valente trancada e deixa-o prostrado. Ao verificar que tinha morto o homem, ficou atrapalhado, sem saber o que fazer, pensando em severa punição, talvez a morte. Acaba por resolver dirigir-se a Odeleite e contar o sucedido ao capitão de ordenanças. Este louvou-lhe o procedimento a tal ponto que o seu acto dava-lhe direito a ser nomeado “alferes de ordenanças”. No dia seguinte o lavrador transformado em autoridade é incumbido de conduzir a Mértola uns tantos presos que ali se encontravam, amarrados aos rabos dos cavalos.

Foi assim que apareceu o apelido de “Alferes” nesta zona e que ainda se mantém.

Explica-nos o nosso interlocutor o que já tínhamos ouvido, mas a sua explicação torna-se mais clara.

[Alcaria Alta da Serra. Foto de RV]

O produto do roubo em moedas de ouro e prata efectuado por estas zonas, era conduzido para o “quartel general” situado na serra de Cachopo - Vaqueiros, no monte de Alcaria Alta da Serra (506 m de altitude), local dos mais elevados das redondezas e de difícil acesso.

[O guerrilheiro Remechido]
Com a normalização da situação imposta pelas tropas de D. Maria II, restaram alguns focos isolados de miguelistas, refugiados na serra e sequazes de Remechido.

Ao terem conhecimento da morte do seu chefe, os de Alcaria Alta da Serra fugiram espavoridos com medo que lhe fizessem o mesmo. A diminuta população local dividiu as moedas de prata aos meios-alqueires (7 litros), tal a quantidade existente. Muito calados, os novos-ricos desceram a serra, cada qual seguiu o seu caminho, comprando os terrenos que encontravam (o Estado era o grande vendedor), tornando-se assim, na maioria dos lavradores das redondezas e que na altura no-los identificaram.

Segundo o narrador, isso podia confirmar-se ainda hoje, se fosse feito um inquérito, os antepassados, na maioria, seriam oriundos da “serra”(2)

Ao lado, outro amigo conta-nos ter ouvido dizer aos velhos que na serra, deitando fogo a um chaparreiro seco, verificaram com espanto que de um buraco corria prata (?!) por se terem derretido as moedas que lá estavam escondidas desde o tempo dos guerrilhas! (3)

[Pego dos Penedos, arredores de Afonso Vicente. Foto JV]

No “monte” de Afonso Vicente, no extremo norte da freguesia de Alcoutim, recolhemos a tradição de também ali o povo se esconder nos barrancos vizinhos, temendo os guerrilhas e levando os burros ao rabo dos quais atavam uma pedra, evitando assim, segundo afirmavam, que zurrassem o que podia denunciar os esconderijos.

Tem a mesma origem a estória seguinte:- Passando por ali uma hoste de “malhados”, lobrigou à porta de seus pais uma donzela e logo se propõem levá-la. Aflito, o pai impotente para salvá-la, concorda com o chefe do grupo, mas antes, teriam de comer e beber em sua casa para festejar o acontecimento. Com o desenrolar da festa, o chefe acabou por reconsiderar e deixar a moça, prestando-se o pai a ceder sempre a sua casa quando por ali voltassem. (4)

Na Corte da Seda é apanhado um homem que negando-se a dar dinheiro afirmando que não o tinha, é atado ao rabo de um cavalo. Perto da Corte Tabelião, já exausto, acede a voltar para trás e entregar todo o dinheiro que tinha em prata e não era pouco.(5)

Na vila, recolhemos outros dados de origem tradicional.

Muitos alcoutinenses abandonaram a vila e refugiaram-se em Faro onde encontravam mais segurança. O Capitão de ordenanças, oriundo de Tavira, não o quis fazer, apesar de aconselhado a isso.

Dizem-nos que era pessoa abastada. Vivia com uma governanta no edifício que actualmente pertence à Câmara Municipal e onde estão instaladas a Repartição de Finanças, Tesouraria da Fazenda Pública e Posto da G. N. R.

Preso, é levado debaixo de escolta em direcção às Cortes Pereiras e a governanta, seguindo atrás, oferecia e atirava sacos com moedas de prata, numa tentativa para o resgatar. Acabam por fuzilá-lo perto do monte de Afonso Vicente, em cujo local se ergueu um calvário.

O capitão de ordenanças, Paulo José Lopes, avô de quem nos contou o facto, acabou por comprar à viúva, que residia em Tavira, parte desse prédio que ainda se mantinha na posse da família. (6)

Nas estórias contadas existe muita imaginação, motivada pelo decorrer dos anos e pela vontade de compor para lhe dar maior brilho.

Nesta época agitada em que imperava o assassinato e o saque, muito dinheiro e metais preciosos eram metidos em panelas que escondiam nos mais variados locais, evitando assim o roubo.

Muitas foram levantadas pelos próprios, outras, devido ao falecimento dos escondedores, foram encontradas por outros, e outras, quem sabe, permanecerão nos seus sítios, locais menos acessíveis ou que a força das circunstâncias ainda não originou o seu encontro.

Na vila, tivemos oportunidade de ver uma panela de barro encontrada e escondida numa parede sobre uma porta. Se a encontraram com valores, naturalmente que ninguém o revelou.

NOTAS
(1)–História- Lenda contada pelo Sr. Manuel Pinto, da vila.
(2 –História- Lenda contada pelo Sr. José António (ferrador) - Cerro dos Balurcos
(3)–História- Lenda contada pelo Sr. António Afonso, Montinho do Cerro
(4)–História- Lenda contada pela Sra. Ana da Costa, de Afonso Vicente
(5)–História- Lenda contada pela Sra. Aurora Canelas de Alcoutim
(6)–História– Lenda contada pela Sra. Belmira Lopes Teixeira.

quinta-feira, 29 de março de 2012

Oleões!


Se o concelho de Alcoutim aparece, frequentemente, na cauda das estatísticas realizadas a nível nacional e no pior sentido, não me parece que sobre este aspecto isso venha a acontecer, o que se torna gratificante.

Eu não tenho dados para me pronunciar, mas o que sei é que, por exemplo, na cidade onde vivo e na área onde resido não existe nenhum oleão, não conhecendo mesmo que esse sistema de recolha de óleos usados tenha sido implementado pela autarquia, o que penso acontecer na maioria dos concelhos do país.

Chegou-me a notícia que foi estabelecido entre a autarquia local e as empresas Reciclimpa e Oleão Sul um protocolo no âmbito do qual foram colocados oito oleões no concelho de Alcoutim.

Concordo totalmente com a sua distribuição ou seja Alcoutim (2), Martim Longo (2), Pereiro, Giões, Vaqueiros e Pessegueiro, o maior e mais dinâmico monte do concelho.

É necessário sensibilizar os munícipes para que não continuem a despejar os óleos usados na rede pública o que provoca corrosão e entupimentos nas canalizações.

Além de evitar estes inconvenientes, o seu reaproveitamento pode servir para a produção de energia térmica e eléctrica, biodiesel, sabão, velas, detergentes, graxas, etc. o que cria, naturalmente, postos de trabalho tão necessários para combater o desemprego.

Sobre este aspecto, é certo que Alcoutim não está na cauda!

Eu continuo a ser obrigado a deitar os óleos velhos na rede pública de esgotos1!

terça-feira, 27 de março de 2012

Afonso Vicente foi um grande monte da freguesia de Alcoutim [9]

POIAIS



Poial é como os dicionários indicam um local onde se coloca alguma coisa, banco fixo de pedra.

A definição ajusta-se perfeitamente a Afonso Vicente, aliás a todo o concelho, talvez com o pormenor de popularmente ser designado por pial, que constitui uma expressão popular.

Até aos anos 60 do século passado eram bastante frequentes pois consideravam-no indispensável e com várias utilizações como já temos referido. Então eram feitos maciçamente com xisto ligado por areia dos barrancos amassada com barro, sendo a parte superior constituída por lajes, quantas menos, melhor.

Já não restam muitos ao modo antigo mas nalgumas reconstruções não se tem deixado de olhar por eles dando-lhe naturalmente uma “vestimenta” actualizada marcada por ladrilhos de vários tipos.

Além das utilizações que têm tido ao longo dos tempos e ultimamente mais reduzidas, os de dimensões maiores temo-los visto servir para dormir grandes folgas quando a sombra a isso proporciona.

Pensamos que os piais (poiais) ainda têm condições para se manterem por largos anos mesmo que o local seja invadido por estrangeiros muitos dos quais como tenho verificado preservam melhor as tradições do que nós próprios.


PALHEIROS E “ARRAMADAS”

Enquanto houve vida agrícola por estas zonas, tornava-se indispensável a sua construção. Como o nome indica era o lugar onde se guardava a palha e o feno para sustento dos animais na altura indispensáveis auxiliares nas tarefas agrárias, tanto nas lavras como no transporte de coisas e pessoas.

De uma maneira geral constituíam construções toscas, de paredes altas e de
xisto, geralmente de uma água, telha de canudo assente um toscos caniços, muitas vezes de “salto de rato” ou onde não houve a limpeza da palha das canas, defendendo-se assim a economia de tempo a quando da execução.

Na parede mais alta oposta à porta, havia o boqueirão, uma espécie de janelão cujo lintel era uma pedra comprida de grauvaque ou em alternativa dois ou três paus de zimbro, a madeira mais resistente. À falta desta, usava-se o chaparro ou zambujo.

O seu fecho era feito com pedra devidamente empilhada e mais raramente e nas casas mais abastadas por janelas de madeira.

O uso da pedra tem a ver com duas coisas: primeiro era muita e ninguém a disputava, por outro lado o boqueirão só servia uma vez por ano, quando após a
debulha ficava

a palha para arrecadar no palheiro para alimentação dos animais e que mais comodamente se fazia pelo boqueirão, enquanto pela porta seria impraticável arrumá-la. Por outro lado a madeira era pouca e cara.

Na parede oposta à do boqueirão, situava-se, como já dissemos, a porta com lintel nos mesmos moldes do boqueirão, funcionando por um sistema original pois dois paus de azinho e curvos eram pregados às tábuas da porta e a outra ponta fixava-se num buraco feito na laje de xisto colocada como poial. Uma em baixo, outra em cima possibilitavam a rotação da mesma sem problemas de maior.

O fecho era feito através de um ferrolho.

No palheiro dormia o ganhão ou almocreve e os moços que guardavam os porcos ou outros animais em pequeno número. Tapavam-se com mantas premedeiras.

Dormiam muitas vezes os filhos do proprietário. Uns porque em casa não havia espaço e outros porque se sentiam muito mais libertos para irem aqui ou ali, estando assim mais à vontade. Em casa, o lugar era para as moças que tinham de estar resguardadas.

Competia ao ganhão tratar de noite os animais, isto é dar-lhe de comer e quando necessário limpar-lhes as camas.

As bestas recolhiam-se na arramada que ficava próxima do palheiro. Aí se situavam as manjedouras que tinham muitas vezes como base um muro de xisto e colocando-se para a palha ou outra ração não sair, uma tábua ou um ou dois paus sobrepostos.

Próximo ficava a poça ou estrumeira para onde era deitada a palha suja pelos animais para acabar de curtir.

Tudo isto faz parte de um passado relativamente recente mas que se vai afastando pois os poucos jovens que habitam por estas redondezas já não conheceram estas actividades. Os idosos que hoje constituem a maioria da população, os que aqui nasceram e viveram, conhecem bem toda esta situação.

Sempre que há qualquer restauro ou construção nova, já se sabe que palheiros e “arramadas” desaparecem, pois já não fazem falta, quando foram indispensáveis à vida de então.


PRISÕES DE GADO



Os arqueólogos têm identificado em várias construções castrejas, embutidas nas paredes, argolas de pedra onde se amarrava o que quer que fosse, admitindo-se neste caso os animais.

Alguns exemplares deste tipo encontram-se depositados em museus.

Essas “prisões” foram-se adequando e ajustando às novas realidades e tecnologias, no decorrer dos tempos.

Depois da utilização da pedra, umas vezes perfurada, outras originando uma espécie de espigão, de estrutura sólida, que teria de ser o mais forte possível, para que se pudesse amarrar bem a corda (arreata), sem possibilidade de se safar, passou-se depois à trabalhada argola de ferro segura por cravejamento efectuado em pedra resistente. (1)

Em Afonso Vicente só existe um asinino, uma burra que vai comendo a erva por aqueles ferragiais. Nem machos nem mulas que sempre existiram na casa dos lavradores.

Era rara a casa que não tivesse uma “besta”para as mais variadas tarefas. Transporte de pessoas e de coisas das mais diversas espécies que iam desde o estrume ao sacos de farinha, amêndoas, azeitonas ou alfarrobas passando pela lenha e os indispensáveis cântaros de água. Por outro lado tinham de lavrar as terras para as sementeiras.

Quem não tivesse pelo menos um burrinho não se dava governado para utilizar uma expressão local.

Os animais foram desaparecendo mas algumas prisões vão resistindo como podem no decorrer dos anos como as fotos mostram. Por quanto tempo será?

Dos três tipos que referimos, em Afonso Vicente só se encontram os dois primeiros, o tipo de espigão e o da pedra furada. Deste último só conheço um exemplar e do outro cinco.

Estas “prisões” estavam colocadas de uma maneira geral próximo das casas e estão condenadas a desaparecer logo que haja mexida no local onde se encontram.


NOTA
(1) – “Prisões de Gado”, Blogue Alcoutim Livre, de 13 de Março de 2009.

segunda-feira, 26 de março de 2012

Aspectos do Reino do Algarve nos séculos XVI e XVII - A "Descrição da Alexandre Massaii (1621)



A Descripção do Reino do Algarve é um minucioso relatório da visita de inspecção que o engenheiro Alexandre Massaii fez, em cumprimento de ordens bem definidas, o qual se destinava a ser presente a Filipe III de Espanha.
O autor deste estudo sistematiza e trata os elementos contidos na informação transmitida pelo documento e compara-a com o de corografias de data anteriores, do que resulta um leque de aspectos de ordem económica, social, demográfica e militar, que vão enriquecer o conhecimento da região, e, finalmente, divulga o texto na sua forma original
.

É a transcrição do que consta na contracapa deste trabalho de autoria de Lívio da Costa Guedes. De 16X23 cm e 269 páginas é uma edição do Arquivo Histórico Militar e teve lugar em Novembro de 1988.

Este estudo põe em comparação “A descrição do Reino do Algarve” com a descrição das ”Diligências efectuadas em 1617”.

Procura o estudo analisar a Economia, a Infantaria e postulação e a Fortificação permanente da costa.

São várias as referências, como não podia deixar de ser, a Alcoutim. Entre outras encontramos dados relativos à sua localização e fortificação, ao comendador, aos rendimentos e ao número de defensores que tem tanto na vila como espalhados pelo seu termo em que se incluem Fornazinhas, Pereiro, Alcaria Queimada, aldeia de Martim Longo, Giões e Vale do Corpo que presumo tratar-se de Cachopo.

Adquiri o trabalho numa livraria então existente na cidade de Faro.

domingo, 25 de março de 2012

Forquilha de ferro



Mais um utensílio que continua a ser usado pelas poucas pessoas que no concelho ainda têm alguma actividade agrícola ou ligada à criação de gado.

O exemplar que apresentamos é muito antigo e admitimos que possa ter sido feito por um ferreiro do concelho. Serve, actualmente, como peça decorativa.

Os modelos hoje existentes saem de fábricas e ainda que a sua essência seja a mesma apresentam cabos “industriais” e com pega diferente desta que é muito rudimentar e que oferece menos suporte.

O número de dentes é variável conforme as necessidades do seu utilizador.

Destina-se a movimentar algo de certo modo compacto como estrume, palha, feno e tudo o que seja do mesmo tipo.

Eram indispensáveis para limpar as malhadas dos animais e revolver o estrume para um melhor curtimento.

sábado, 24 de março de 2012

Crónicas e Ficções Soltas - Alcoutim - Recordações - XXIV




Escreve


Daniel Teixeira




PEQUENO INVENTÁRIO SOCIAL

Para contar memórias ao fio da lembrança, mesmo que elas sejam, como são, diversificadas, é difícil não voltar a referir, ainda que noutros enquadramentos, noutras perspectivas aquilo de que já se falou. No meu caso as coisas, os acontecimentos, entrecruzam-se como se passássemos por uma rede de caminhos: é difícil por exemplo falar num caminho que está a norte sem fazer referência aos restantes e é difícil não descrever algo mais que se passou num desses caminhos que não estando directamente em causa já foi inclusivamente falado numa outra perspectiva.

Como já foi seguramente dito no período em que íamos passar algum tempo a Alcaria Alta durante as férias de verão na escola, já havia anos que o meu avô tinha passado de cavalo para burro. A minha mãe recordava-me de quando em vez que no seu tempo de mais nova tinham duas vacas que levavam a pastar as 4 irmãs, ainda, dado que uma faleceu depois com vinte anos sensivelmente. Tinham também algumas cabras e algumas ovelhas e o meu avô tinha um cavalo (ou égua) e uma parelha de mulas. Como também já disse eu comecei as minhas idas a Alcaria Alta já no período asinino da vida do meu avô.

Esta morte da minha tia, falada acima, que não cheguei a conhecer senão pelas fotos esbatidas, algumas em castanho claro e outras em castanho avermelhado que estavam no quarto, foi uma ausência sempre sentida também por nós: no quarto onde ela faleceu, enviada para casa vinda do então Hospital da Misericórdia de Faro para morrer em família, guardaram-se sempre as garrafas de soro vazias, em vidro grosso naquela altura, assim do tamanho aproximado a uma garrafa de 33 cls de água, mas compridas e afuniladas nas pontas. Era um vidro grosso que manuseávamos com o maior cuidado e mesmo depois de falecidos os dois velhotes elas lá ficaram e não me parece que alguém as tenha deitado fora. Havia ali, apesar de tudo, uma recordação que ainda estava viva.
Havia uma janela falsa na parede, com duas ou três prateleiras que funcionava quase como uma guarita memorial a essa minha falecida tia e era nesse mesmo quarto com duas camas de casal que nós ficávamos.

A minha avó, pelo que me disse a minha mãe teve 9 filhos, cinco dos quais morreram ainda bebés. Calculo que apesar das possibilidades de adquirir algum difícil hábito a gerir essas mortes e a fazer lutos curtos também para não influir nos sentimentos das filhas vivas, cada uma delas sucedesse com grande desgosto de todos.

O desgosto natural pelo falecimento de um ser que não vinga e que sai de dentro de uma mãe e aquele sentimento bem expresso sempre de se viver uma fatalidade contra a qual nada havia mesmo a fazer no sentido absoluto do termo. Era mesmo o que Deus queria...pensariam talvez porque cuidados pré-parto não havia mesmo e levaram muitos anos a vir a ter lugar para além do facto quase inultrapassável de ter a futura mãe de trabalhar praticamente até aos últimos dias da gestação.

A minha bisavó, do lado da minha avó, tinha tido 13 filhos: ficaram após a idade infantil a minha avó, a Tia Marianita, a Tia Zabelinha, a «avó» Coelho e a avó Assunção e safou-se da razia da mortalidade infantil ainda um do sexo masculino, o tio Eurico com quem tive pouca lidação porque ele fez quase toda a sua vida na zona de Lisboa e de quem já falei numa outra crónica porque só vim a saber da sua existência muito tarde, já com cerca de 14 / 15 anos penso eu.

Veio no entanto este meu tio (então viúvo) a casar e anos depois a falecer em Faro, o que também já referi. Lembro-me bem dessa parte, dele ter ficado viúvo e das minhas tias procurarem arranjar-lhe casamento, a seu pedido, é claro, uma vez que ele para a vida de solitário não se sentia fadado.

Os conciliábulos de candidatura tinham lugar não sei bem porquê na casa de uma senhora que tinha uma mercearia aqui em Faro, a senhora Clara, casa essa onde eu também ia, a acompanhar a minha mãe e a minha tia (uma, a que vivia em Faro na altura). Houve uma verdadeira mobilização de apoio ao Tio Eurico e as possíveis candidatas talvez andassem pela dezena, originárias de vários pontos do país chegadas pela via da conhecida que conhece uma conhecida e assim sucessivamente.

Por vezes era solicitado para tentar decifrar algumas partes de cartas e pelas fotografias que vi e pelos trechos que li todas as candidatas eram bonitas, boas senhoras e trabalhadeiras, embora os anos lhes pesassem para além das fotos; nesse tempo havia sempre a desculpa das fotos tipo Bilhete de Identidade serem quase uma raridade e as outras fotos também. Assim eram muito raras as fotos que se podiam considerar actualizadas ou próximas dos tempos presentes na altura.

O meu tio acabou por casar com uma excelente senhora com a qual contudo não tive muita lidação: tinha uma chapelaria que acabou por vender, casaram mesmo, e durante os poucos anos que o meu tio avô viveu as informações que iam chegando à nossa casa eram das melhores.

Enviuvando essa minha tia avó por casamento acabou por arranjar um quarto num lar da misericórdia mas fora do regime geral, um quarto só para ela e levava a sua vida social normal fora do Lar. O meu tio tinha trabalhado nas oficinas de material de guerra e tinha para a época deixado «uma boa reforma». Quem a visitava sempre que vinha a Faro era a minha prima Marquinhas, uma jóia de pessoa desde sempre, e uma visitadora nata. Já falei dela também...Lembro-me bem dela dizer que achava o Lar tão bom que quando se reformasse pensava ir para lá viver...faleceu antes disso poder ter lugar.

O que conto são memórias de pessoas simples, conto também algumas excepções ou tentativas de se fazer o excepcional, conto os regressos da emigração e arranjar uma casa melhor a jeito, comprar um táxi ou um tractor e voltar a trabalhar, sempre: nunca conheci por lá ninguém encostado ao dinheiro que tinha nem à reforma que podia ter: na sua grande parte foram regressos com mais folga, com melhores condições de vida, mas empreender, ser empreendedor, transformar coisas ou procurar fazer evoluir as coisas não conheço ninguém.

«O seu primo M. foi o homem que mais Marcos trouxe da Alemanha!» - dizia-me um outro que tinha sido colega dele por lá: falei-lhe nisso, do que o outro dizia: «Achas que pode ser verdade? Então vê a minha vida: tenho de trabalhar todos os dias, as minhas filhas ficaram pelo 9º ano uma e a outra pelo 12º, começaram as duas a trabalhar aos 18 anos...depois de veres isso ficas a saber os Marcos todos que eu trouxe!»

Acho que a sociedade campesina naquele monte e noutros seguramente interiorizou e interiorizou-se no fracasso, desistiu pura e simplesmente como tinha feito desde sempre, com menos ou mais meios. Relatar esta tristeza incrustada não me agrada, como é claro, mas por vezes também sinto que um inventário correcto (pelo menos na minha perspectiva) é um elemento importante para se calcular o que se poderia fazer no futuro se houvesse futuro mesmo.

sexta-feira, 23 de março de 2012

Passaram-se 37 anos!



A Câmara Escura de hoje apresenta-nos uma fotografia tirada em Alcoutim já lá vão 37 anos!

Além das duas adultas que se podem divisar, temos um conjunto de crianças, não todas da vila de Alcoutim, algumas são do monte de Tacões (Pereiro) e que serão facilmente identificáveis pelo menos por quem as conheceu nessa idade.

Tratava-se de festejar um aniversário ocorrido no mês de Fevereiro.

Estas crianças têm hoje entre os 40 e os 50 anos. Muitas têm filhos bem crescidos e possivelmente alguém já será avô ou avó.

quinta-feira, 22 de março de 2012

A desaparecida Ermida do Espírito Santo, na Vila de Alcoutim, estaria ao culto em 1855?

(PUBLICADO NO JORNAL DO BAIXO GUADIANA Nº 83 DE 27 DE JANEIRO DE 2007)


Há dezoito anos fizemos publicar no Jornal do Algarve, mais precisamente no número de 2 de Fevereiro de 1989, um pequeno escrito que intitulámos “A desaparecida Ermida do Espírito Santo, na Vila de Alcoutim”.

Tinha por fim acrescentar alguma coisa ao pouco que tínhamos escrito sobre ela no nosso trabalho, Alcoutim, Capital do Nordeste Algarvio, (subsídios para uma monografia), Edição da C:M.Alcoutim, 1985 e isto devido ao que tínhamos obtido no excelente trabalho Visitações da Ordem de Santiago no sotavento algarvio, Edição da C.M. de Vila Real de Sto. António, 1987 e de autoria de Hugo Cavaco.

Quando chegámos a Alcoutim na década de sessenta, existiam um mínimo de ruínas que o nosso desenho procura retratar e não foi fácil saber o nome da invocação pois todos diziam que era a “igreja do rossio” por se localizar perto daquele que ainda existia na altura mas que em meados do século XIX e antes da alienação da sua melhor e maior parte, dividida em vinte e sete fracções, nele se situava.

Sobre a ermidinha, eu tinha-a visto desenhada e por deferência do sr. José Madeira Serafim, num quadro oferecido pelo Doutor José Leite de Vasconcelos a Manuel António Torres, natural da vila, considerado seu informador epistolar, (1) que foi vereador e presidente da Câmara e mais tarde seu secretário, funções de que se aposentou.

Mais tarde verifiquei que se tratava de uma reprodução do desenho existente no Livro de Duarte de Armas que eu já sabia existir mas que desconhecia o seu conteúdo.

A minha curiosidade levou-me a tentar encontrar alguma referência escrita o que não consegui obter nos arquivos que me foi possível consultar: Misericórdia, Câmara Municipal e Repartição de Finanças! Nem uma palavra, nem mesmo a quando da Cheia Grande do Guadiana (1876/77) onde admiti que algo tivesse sido escrito já que com certeza ficou completamente submersa. Já estaria em absoluta ruína nessa altura e daí não terem sido referidos os estragos? É possível.

Um dos principais aliciantes de quem investiga é por vezes encontrar “coisas”que não está procurando e que quando o fez lhe levou muitas horas de trabalho e mesmo de desespero! Foi o que me aconteceu no passado mês de Novembro quando me desloquei propositadamente a Faro para no Arquivo Distrital procurar dados que considerava importantes para um trabalho que ando a realizar, o que de certa maneira obtive, só não sendo mais positivo porque enquanto uns dos dados estarão na Torre do Tombo, os outros encontram-se ainda na Conservatória do Registo Civil de Alcoutim.

Ao pesquisar os assentos de óbito da freguesia de Alcoutim, aparecem-me dois, seguidos e do mesmo dia, 20 de Agosto de 1855, o primeiro referente a D. Maria do Carmo Xavier Casqueiro de Sampaio, casada com Manuel Francisco Piçarra, natural da cidade de Elvas, residente na cidade de Tavira, o outro de Eduardo Augusto Xavier Casqueiro de Sampaio, solteiro, natural da Vila de Moira, (Moura) igualmente residente em Tavira e que presumo serem irmãos ou pelo menos parentes próximos. Não se indica a idade em qualquer deles e os assentos são lavrados pelo Padre António José Madeira de Freitas (tio).

O que a nós nos chamou a atenção foi o facto de ambos terem sido sepultados na Ermida do Espírito Santo, extramuros desta Vila de Alcoutim.

Significará isto que nessa altura a ermida ainda se encontraria de pé e ao culto? Não encontrámos nas proximidades daquela data mais ninguém com tal sepultura.

As pessoas viviam em Tavira, o que teriam vindo fazer a Alcoutim? Teriam aqui familiares ou seriam aqui proprietários? A família Xavier por essa altura possuía vários elementos espalhados pelo concelho, nomeadamente em Alcoutim, Pereiro e Martim Longo (nesse ano era um Xavier o maior contribuinte da freguesia) e nas freguesias vizinhas de Odeleite, Cachopo e do Espírito Santo. Igualmente temos conhecimento da deslocação para a cidade de Tavira de um membro, pelo menos, desta família.

A situação sugere-nos a deslocação das vítimas de Tavira, onde a cólera-morbo já se faria sentir, para estas paragens de ares mais puros e com a epidemia mais distante. Sabemos que de 28 de Julho a 15 de Outubro de 1856 a presença da terrível epidemia, tinha obstado à realização das sessões da Câmara. (2)

A sepultura na ermida porquê, uma vez que o cemitério já estava em funcionamento há alguns anos?

Sugerimos duas hipóteses: ou a ermida pertenceria à família, obtida após a implantação do liberalismo, fazendo parte de um dos vinte e sete talhões em que o melhor terreno do rossio foi divido por deliberação da Câmara Municipal da altura (3) e assim a família teria o interesse e autorização para o efeito, ou tratando-se de vitimações por tal doença haveria a necessidade da sepultura ter lugar em local distante para evitar contágios e daí a referência no assento a extramuros desta Vila.

Será assim? Não sabemos, mas com os elementos que dispomos até agora, são as hipóteses que consideramos mais viáveis.

Para quem não sabe, dizemos que as ruínas da ermida foram removidas para possibilitar a construção do Lar de Alcoutim.


NOTAS

(1) - Etnografia Portuguesa, Tentame de Sistematização pelo Dr. J. Leite de Vasconcelos, VOLVI, organizado por M.Viegas Guerreiro, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1983.

(2) - Saúde e Assistência em Alcoutim no século XIX, António Miguel Ascensão Nunes (José Varzeano), Ed. da Câmara Municipal de Alcoutim, 1993, pág. 16

(3) – "Coisas Alcoutenejas . Os Rossios", José Varzeano, in Jornal do Algarve – magazine, de 30 de Junho de 1994.

quarta-feira, 21 de março de 2012

Guerras de 1252 / 1253 (Pela posse do Algarve)

D. Fernando, rei de Castela, não se opôs à conquista do Algarve.

Morrendo em 1252, sucedeu-lhe o filho, Afonso X, o Sábio que contestou a legitimidade das conquistas feitas pelos portugueses no Algarve, invadindo com grandes forças o País, entrando por esta vila, pondo cerco a Tavira, que levantou e apossando-se de algumas povoações algarvias e isto para manter pelas armas a primazia dos seus direitos.

[D. Afonso III]
Os incidentes de fronteira continuaram aqui e ali e com desvantagem para os portugueses. Afonso III, reconhecendo a sua inferioridade militar, procura resolver a situação através de conversações.

O papa Inocêncio IV, em 1253, consegue uma trégua entre as duas partes desavindas e pela conferência de Chaves chegou-se a uma concórdia, propondo-se o rei português casar com D. Beatriz de Gillen, filha bastarda de Afonso X. Por outro lado o rei de Castela guardaria para si o usufruto do Algarve até que o primeiro filho varão do matrimónio atingisse sete anos, altura em que reverteria à Coroa portuguesa o domínio soberano do Algarve.

O nascimento de D. Dinís, ocorrido em 9 de Outubro de 1261, veio resolver o dissídio, o que se firmou pelo Tratado de Badajoz, em 1268.

Estas guerras são mal conhecidas nos seus pormenores havendo mesmo quem as ponha em dúvida à falta de qualquer notícia expressa.

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Nota
Para a organização deste assunto consultámos, entre outras, as seguintes obras:

Corografia do Algarve , 1841, João Baptista da Silva Lopes.
Portugal Militar, de Carlos Selvagem.
Dicionário Corográfico de Portugal Continental e Insular , 1968, de Américo Costa.
História de Portugal, Direcção de José Mattoso.

[Extraído da 2ª Edição de Alcoutim, Capital do Nordeste Algarvio, Subsídios para uma monografia (em preparação)]

terça-feira, 20 de março de 2012

Afonso Vicente foi um grande monte da freguesia de Alcoutim [8]

ASPECTOS CONSTRUTIVOS DESAPARECIDOS OU QUASE

FORNOS

Os fornos eram no século XII importante meio de produção no conjunto das actividades económicas, sendo numerosíssimas as referências feitas nos forais.

Se muitos se encontravam sob o poder senhorial, havia os que constituíam propriedade comunal, como eram os fornos dos concelhos, públicos que chegaram aos tempos modernos e sobre os quais no concelho ainda se encontram resquícios.

Os fornos hoje quase desaparecidos no “monte” e os poucos que existem estão desactivados, foram numerosos e indispensáveis até meados do século passado.

Garantiam o cozer do pão principal sustentáculo da alimentação destas gentes.

Enquanto alguns montes possuíam o seu forno comunitário que chegámos a conhecer em actividade, não nos consta que aqui tivesse existido.

Nem todos os fogos possuíam o seu forno recorrendo aos dos familiares, compadres ou vizinhos.

De uma maneira geral as pessoas ajudavam-se tanto nestas tarefas como nos trabalhos agrícolas, organizando-se conforme as circunstâncias, tomando em consideração os trabalhos considerados prioritários.

As amassaduras eram semanais e juntavam-se duas ou três no mesmo forno pois assim gastava-se menos lenha para o aquecer. A que cozia primeiro num dia, chamada a “aquentadeira”, era substituída por outra na semana seguinte e assim iam rodando. O sistema proporcionava uma ajuda mútua.


Existiam vários tipos de fornos que de uma maneira geral se situavam perto da casa do seu proprietário e mais raramente no seu interior, ao jeito do que acontecia no Alentejo.

O tipo mais vulgar tinha um formato redondo, cúpula levemente abaulada, variando de construção para construção. A cobertura que muitas vezes no vértice levava uma panela de barro velha e emborcada, era resguardada por telha com beiral redondo e na maior parte das vezes por lajes de xisto o que se tornava menos dispendioso.

A porta do forno muitas vezes feita com dois velhos ferros de charrua dando-lhe uma forma quase ogival, tapava-se habitualmente com o fundo de um bidão suportado por um pau.

A base do forno era feita de tijolo de burro ao alto ligado por barro amassado que se arranjava, por vezes bem distante, num pequeno filão que ia sendo explorado. Na altura não havia barro refractário que hoje se adquire com facilidade.

A abóbada do forno requeria o mesmo material auxiliado com cacos de telha de canudo e de objectos de barro não vidrado que se iam partindo e a que davam aproveitamento adequado.

O forno tinha que ter um buraco, a que chamavam ouvido, para poder respirar, isto é, entrar o ar que alimentava a combustão, entrada que era regulada por uma pedra.

A parede que envolvia a abóbada, muitas vezes circular, era feita de xisto e grauvaque, ajustando-se com barro, pedra e cacos e com o sentido da conservação do calor ser mais eficiente.

Estes fornos circulares tinham junto um pequeno poial de apoio e por vezes uma pequena laje saída (pilheira) para colocar algo a proteger de cães e gatos.

Havia fornos com telheiro ainda que tudo o resto funcionasse da mesma maneira.

Menos vulgar era o aparecimento de forno resguardado por pequena casa.

O último forno construído em Afonso Vicente teve lugar em 2002 e está representado em foto que aqui apresentamos.

O aquecimento fazia-se com lenha sendo utilizada preferencialmente a esteva seca que além de arder bem produzia bom calor.

O pão é um alimento elaborado com farinha, neste caso, de trigo, água e sal, levando fermento.

Depois de convenientemente amassado o produto apresenta-se elástico o que permite dar-lhe várias formas.

Quando se cozia, aproveitava-se também para fazer “costas”.

Como utensílios a utilizar, temos a pá de enfornar, para colocação e retirada do pão, constituída por cabo e pá, o “varredoiro”, constituído pelo cabo e as “barbas” (farrapos de pano) e que serve para varrer o solo ou cepo. O forcado para espalhar o brasido e o rodo para retirar a cinza.

Em Abril de 1990 segundo inventário que realizámos existiam ainda 22 fornos no monte, ainda que a maioria já estivesse em completa ruína. Foram rotulados como pertencentes a: Florinda Madeira, Sebastião Costa, Joaquim Gomes, Francisco Valadas, Maria Florência, Maria Jesuina, José Marques, Maria Custódia Canelas, António Cavaco, José Romão, Antónia Maria, Silvina Dias, Francisco André, António Bento, António Lima, Fernando Mestre, José Mestre, Manuel Joaquim, Joaquim Patrício e José Martins. Alguns já não sei onde se situavam.


PILHEIRAS

O substantivo pilheira significa principalmente lugar onde se empilham coisas
Como regionalismo significa vão na parede, onde se arrumam vários objectos, cantareira aberta na parede, buraco na parede, que serve para arrecadação ou arrumos e aparece como sendo próprio do norte do país.

Acontece que com o mesmo significado é usado no concelho de Alcoutim e possivelmente em zonas confinantes.

Mas aqui não tem apenas este significado como já algumas vezes tentámos explicar.

A falta de madeira, a pobreza da região e outros factores levaram o alcoutenejo a arranjar locais onde pudesse colocar os poucos utensílios de que dispunha. Ao construírem as grossas e toscas paredes de xisto e grauvaque, aproveitavam pedras com alguma largura e compridas, que não partiam com facilidade, chamando-lhes assim pedras rijas e colocavam-nas a servir de lintel em portas e janelas e também nos buracos que iam deixando na parede. A base, onde se empilhavam os objectos, era feita de pequenas lajes ajustadas com barro. Havendo falta de grauvaque utilizavam paus de zimbro ou de azinho, tendo preferência o primeiro que resistia muitas dezenas de anos. Quem tiver espírito de observação ainda poderá verificar esta situação principalmente em edifícios em ruína.

Ainda que as velhas pilheiras tenham vindo a ser eliminadas, o afonso-vicentino não as deixou de construir adequando-as aos novos tempos.

Nos anos 40 do século passado já se faziam pilheiras para bilhas e cântaros como a figura ao lado apresenta.

Aqui já aparecia o tijolo de burro que possibilitava uma estrutura diferente e em que a parte cimeira era feita com o auxílio de arcos de cintar barris e de canas.

Outro tipo de pilheira que conhecemos, e foi o primeiro que nos chamou a atenção pois desconhecíamo-lo completamente, é o constituído por uma pedra de xisto, saída da parede, perto da porta e igualmente nos fornos, e em posição elevada.

A nossa curiosidade levou-nos a perguntar qual era a sua utilidade, que nós não descortinávamos. A resposta não se fez esperar, tendo-me sido dito que se chamava pilheira e que tinha servido, em tempos mais antigos, para colocar o tacho das papas para arrefecer, ficando assim protegido de cães e gatos.

Vim depois a verificar que a sua existência era vulgar pelos “montes”.

Das três que conheci no “monte”, ainda existem duas, apesar das moradias terem sido restauradas, os seus proprietários entenderam conservá-las como símbolo de um passado que é preciso preservar.

Recentemente descobrimos mais duas em casas abandonadas.


Mas ainda falta referir outro tipo de pilheira e que não foi muito fácil de definir.

Ao pretender analisar este tipo que conhecemos desde que chegámos a Alcoutim, perguntámos como se designava aquela construção-utensílio. Todos me responderam:-PILHEIRA.

Por volta de 1986 ao visitarmos um monte da freguesia de Vaqueiros encontrámos o mesmo “objecto”e com funções idênticas. Aproveitamos a presença de uma habitante que dela se estava servindo, perguntando como se chamava. Resposta:- uma fornilha.

Considerámos o termo mais consentâneo com a sua utilização e pensámos que tivesse origem, tal como tantos outros por aqui utilizados, na vizinha Espanha que no decorrer dos tempos teve sempre relações de trabalho e consanguíneas com esta região.

A palavra, pelo menos foneticamente, aproxima-se do nosso fornalha.

A designação de fornalha ou de fornilha, ajustava-se bem ao seu desempenho.

Desejando agora voltar ao assunto, até porque os poucos exemplares existentes deixaram de funcionar e por isso são removidos na primeira oportunidade, comecei por perguntar como se chamava aquilo. As pessoas responderam-me todas o mesmo: PILHEIRA!

Ao dizer-lhes que a designação de pilheira nada tinha a ver com as outras que eu conhecia, acrescentando que me tinha sido referido como fornilha, o que no meu entender, mais se ajustava, disseram-me que aqui, foi sempre PILHEIRA.

De uma maneira geral situavam-se perto da casa e muitas vezes na extremidade do pial (poial)que além de servir para as pessoas se sentarem a descansar, muitos eram utilizados para lavar a louça, primeiro em alguidares de barro, depois de plástico.

Esta pilheira servia para cozinhar as refeições principalmente no Verão para assim evitar que a "casa do fogo" nessa época se tornasse ainda mais quente.

O seu formato foi evoluindo conforme as necessidades, acabando por ser coberto e levar chaminé além de por vezes na parte inferior aparecer espaço para arrumar a lenha trazida regularmente em faxinas

Hoje poucos exemplares restam mas já sem essa funcionalidade.

(CONTINUA)

segunda-feira, 19 de março de 2012

D. Miguel Luís de Meneses, 1º Conde de Valadares, neto do 5º Conde de Alcoutim, do mesmo nome

D. Miguel Luís de Meneses era filho de D. Carlos de Noronha, Comendador de Marvão na Ordem de Avis e presidente da Mesa da Consciência e Ordens, um dos Conjurados e de D. Antónia de Meneses, filha legitimada de D. Miguel Luís de Meneses, 5º Conde de Alcoutim, seu avô materno a quem foi buscar o nome.

Nasceu em 1638, por isso, dois anos antes da Restauração.

O título criado pelo rei D. Pedro II de Portugal, por carta régia de 20 de Junho de 1702, o que veio a pôr cobro a uma longa questão jurídica encetada por D. Carlos de Noronha.

Foi acordado que ficaria pertencente do novo condado certas rendas em Leiria, sucedendo nos bens da Casa de Vila Real doadas a sua mãe pelo avô e sendo comendador de São João da Castanheira, São Gião de Montenegro e da Granja de Alpiarte, na Ordem de Cristo.

Casou aos 16 anos com D. Madalena de Lencastre e Abranches, filha herdeira de D. Álvaro de Abranches da Câmara que foi conselheiro de Estado e Governador de Armas da Província do Minho e Beira e de sua mulher D. Maria de Lencastre, filha do 4º Barão de Alvito, D. João Lobo.

Deste matrimónio nasceram seis filhos, sendo o primogénito D. Carlos de Noronha, tal como o avô, herdou o título e veio a ser assim o 2º Conde de Valadares. D. Álvaro de Abranches, nascido a 7 de Junho de 1661, foi um dos seus filhos que mais se notabilizou. Entre outros cargos, exerceu o lugar de Bispo de Leiria não tendo aceite o de Arcebispo de Évora com que D. João V o pretendeu distinguir.

No séc. XVII, o Palácio de Valadares em Lisboa estava na sua posse habitando-o com a esposa desde o casamento, tendo aí falecido em 1 de Fevereiro aos 76 anos, foi sepultado no jazigo de família no vizinho Convento do Carmo.

Neste palácio continuaram a viver os Condes de Valadares até 1755, ano em que sofreu os efeitos do terramoto e teve de ser reconstruído, obra mandada realizar pelo 6º Conde e concluída em 1785.

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História Genealógica da Casa Real Portuguesa, António Caetano de Sousa, Edição QuidNovi/Público – Academia Portuguesa da História.

Wikipédia, a enciclopédia livre

http://www.geneall.net

http://www.monumentos.pt

domingo, 18 de março de 2012

Grade



Este tosco aparelho era constituído por dois troncos de cerca de um metro de comprimento ligados por duas barras de ferro e que eram embutidos por cavilhas de ferro pontiagudas, a que chamavam dentes e com algum espaço entre eles.

Era puxado por bois ou machos, destinando-se a gradar a terra ou seja esterroar ou aplanar a mesma depois de lavrada.

O presente exemplar é bem antigo e rudimentar. Havia-os de diversos tamanhos, conforme as necessidades dos utilizadores.

Reparar que a peça dianteira tem uma configuração um pouco abaulada ao contrário da outra e isto acontece para que qualquer empecilho seja deitado para os lados com mais facilidade.

Com a evolução, estas peças passaram a ser todas em ferro e os tractores substituíram os animais.

Naturalmente que os poucos objectos deste tipo existentes no concelho constituem verdadeiras peças de museu, o que não existe no concelho de Alcoutim.

sábado, 17 de março de 2012

Crónicas e Ficções Soltas - Alcoutim - Recordações - XXIII




Escreve


Daniel Teixeira




VOLUNTARISMO E IMPOSIÇÃO

Alcaria Alta era e sempre foi uma grande terra, um grande Monte que conseguia conciliar uma população relativamente alta (na proporção) com alguma tranquilidade e muito poucos conflitos.
Havia sempre, como em todos os lados, penso, pessoas que tinham uma noção não muito exacta sobre aquilo que era conviver por lá visto na perspectiva ética cimentado nos costumes mais antigos e por vezes outras tinham alguma escassez de ética quase natural que não tinha nada a ver com conflitos de interpretação geracional mas sim com a tal falta de chá em pequenino.

Os poucos conflitos que conheço sendo de quase somenos importância têm sobretudo a ver com relações de vizinhança mal digeridas o que por vezes tinha também a ver com a difusa demarcação de territórios. De uma forma geral, e conheço isso por razões profissionais, os maiores destruidores da unidade familiar alargada, na minha modesta opinião - é claro - são os divórcios e as heranças.

Deixemos a sociedade moderna e o espartilhamento relacional que a habitação empilhada e o distanciamento métrico favorece, muitas vezes como desculpa, mesmo, teremos de reconhecer, metendo neste caso eu mesmo a mão na minha poluída consciência neste aspecto.

Ora e feita esta minha mea culpa e entendendo que os divórcios não eram abundantes no meu tempo de criança e jovem no campo, resta-nos as heranças que normalmente são discutidas ao milímetro quadrado em qualquer parte do mundo. De facto era aborrecido - penso eu que seja lógico pensar-se - que um longínquo sobrinho cuja existência até se desconhecia venha a obter parte numa coisa para cuja construção e ou consolidação e ou manutenção nunca mexeu uma palha.

E esses rumorejares aconteciam, ficavam, deixavam as pessoas indispostas, por vezes repetitivamente revoltadas, enfim...penso que seja fácil entender: já é mais difícil ter de ouvir bater sempre na mesma pedra, isso sim..., ser naturalmente simpático e ouvir, e ouvir, e ouvir e não ter coragem de dizer que já vamos na audição do centésimo relato.

[Acesso ao monte. Escola há muito desactivada. Foto JV]

Contudo alguns dos mais fortes embates tiveram lugar após o 25 de Abril não propriamente por razões políticas mas dada a relativa e inesperada liberdade que houve dificuldade em gerir. Um mundo novo parece ter-se aberto e qual artesões confrontados repentinamente com novas tecnologias o pessoal acabou por se ver um bocado à nora.

O voluntarismo institucional, máquinas do exército para arranjar caminhos, por exemplo, foi bem aceite e neste caso cabe perguntar (esta minha curiosidade intelectual ainda me vai «matar» um dia) cabe perguntar, dizia eu, se neste composto voluntário institucional não terá contado para a imediata aceitação o facto de haver neste composto também alguma imposição implícita.

Na verdade e pelos recontos que obtive tudo foi feito «pela tropa», «foram eles que arranjaram», «chegaram aqui um dia com as máquinas e em três dias endireitaram aquele caminho todo», etc. etc. - a tal de democrática consulta popular talvez fosse um processo demasiado lento para a urgência militar, neste caso, pelo que o facto consumado acabou por funcionar. Não vi mas calculo que os mirones das obras fossem todos os habitantes disponíveis no Monte. No entanto o voluntarismo local não teve a mesma sorte daí que eu me tenha lembrado de falar atrás do factor impositivo.

Por exemplo, o Rossio de Alcaria Alta, que era um descampado que começava em termos métricos a seguir á Escola Primária para quem entra no Monte pelo lado de cima e se estendia quase em redondo até à taberna da Ti Inácia contornando para a esquerda junto às pocilgas da minha «avó» Assunção (e depois também as do Chico Artur) que ficavam junto à Portela de Santa Justa, subindo depois um pouco no sentido contrário até onde agora está (penso eu) um poço com roda de puxar, tinha um afundamento ligeiro no terreno sensivelmente a meio do seu circulo, afundamento esse que ia desaguar quando chovia junto ao poço já na entrada da zona da Valdégua, que até tinha agora as rochas arrumadas e calcadas pela tropa.

Ora o Ti Zé Luís, um agricultor comerciante e vice-versa, que fornecia linhas, agulhas, elásticos e material do género mesmo em sua casa e que de quando em vez fazia surtidas pelos montes com o macho aparelhado e encaixado nas laterais à comerciante era tido como sendo simpatizante comunista.

Ora, por aquilo que me apercebi em Alcaria Alta para algumas pessoas bastava ter barba comprida para se ser apelidado de comunista. Eu safava-me com a minha barbicha a meio caminho e talvez porque fosse «bom moço demais» para ser isso...não sei. Acho também porque lá eu nunca cresci e que mesmo de barbas, casado e depois pai de filhas ainda me viam de calções curtinhos e botas cardadas chutando as pedras.

Bem, o Ti Zé Luís tinha «contra» si pelo menos um factor: tinha trabalhado ao que me constou na Mina de S. Domingos e de lá «saíam todos comunizados». Até um tio indirecto meu que era das Velhas e que também tinha andado a penar debaixo de terra «era comunista», mas neste acertavam eles sem saber porque embora não percebesse nada de política o PC ou coligações tinham nele um voto certo.

[Antigo poço do monte. Foto JV]

Pois, o certo ou errado «comuna» do Monte resolveu um dia fazer uma coisa que até tinha bastante jeito que era uma vala de escoamento a meio do Rossio, que no Inverno tinha de ser contornado na sua enchente. O homem meteu o seu trabalho, meteu o seu macho a puxar o arado, teve o trabalho de escavar em complemento sem ajuda de ninguém (e sem mirones, pelos vistos) e acabou por levar um arraso verdadeiramente desmotivador de qualquer exercício cívico.

A minha prima queixou-se que tinha de ir deitar a minha Tia Zabelinha e tinha de atravessar o Rossio à noite e que podia partir uma perna, outros queixaram-se por causa dos animais que tinham de contornar a vala e a hipótese de fazer pontões ou meter manilhas de cobertura para passagens estava fora de causa (financeira e técnica).

Breve...parece que o estou a ver de mãos na cintura a olhar o trabalho completado com aquele olhar de satisfação próprio de quem acaba de cultivar um mortiço baldio ao mesmo tempo que o vejo irritado com a críticas.

Houve mais outra operação de voluntariado deste tipo realizada já por um grupo local de cinco ou seis homens mas essa acabou por ser levada no gozo. Eles diziam que tinham feito uma estrada de Alcaria Alta até Santa Justa, cabendo a este lado a ida até ao ribeirão e ao lado de Santa Justa o caminho inverso até ao Ribeirão na sua margem: quando chegaram quase ao fim viram que os dois caminhos (chamados de estrada) não encaixavam por uma centena de metros: um foi muito para a esquerda e/ou o outro foi muito para a direita pelo que vá de fazer uma curva de emergência.

Acontece que eu tive oportunidade de percorrer essa «estrada» anos depois e para além das pedras a bordejar o «traçado» fiquei com a sensação de que o conceito de estrada se tinha ficado por aí...para mim terá ficado o gesto e o voluntarismo.