quinta-feira, 1 de março de 2012

Lisboa - Paris por cinco contos de réis! [1]




Um conto de


Amílcar Felício



Palavras Necessárias:

Este conto é uma homenagem às centenas de milhar de desertores, uns mais conscientes outros menos conscientes que viveram aventuras semelhantes, algumas delas dignas de filme – heróis solitários e silenciosos que não procuravam nem glória, nem sequer notícia de Telejornal – e que ultrapassando os seus próprios medos com coragem, recusaram engrossar a máquina de guerra salazarista que contra os ventos da história, tinha lançado o Povo Português numa aventura sem sentido.

É também uma homenagem aos milhões de trabalhadores portugueses que trilharam com a alma destroçada os mesmos caminhos, em condições dramáticas a maior parte das vezes, em busca de uma vida com dignidade e que com a sua quota parte, foram criando condições para a realização do 25 de Abril e a possibilidade da construção de um Novo Portugal, de aonde já não fosse preciso emigrar.

A cáfila da quase generalidade dos politiqueiros que assumiria o poder desde então, revelaria contudo não estar à altura de tão nobres sacrifícios, conduzindo o país ao caos em que se encontra mergulhado nos nossos dias: uma verdadeira “sucata”!


AF

Pouco passaria das 13 horas naquele dia soalheiro mas friorento de Janeiro dos finais dos anos sessenta. Era a hora ideal para passar despercebido, no meio daquele bulício lisboeta de quem ia ou vinha para o almoço. Armando esperava no Largo de Alcântara em Lisboa junto aos carris do Caminho de Ferro pelo “passador” que não conhecia, mas de quem tinha algumas referências que lhe permitiriam reconhece-lo e que o iria levar para bem longe daqueles e daquilo que tinha constituído o seu mundo até então. Tinha a sensação de que estava a passar uma esponja no seu curto passado de vida e a enterra-lo definitivamente naquele preciso momento. Sentia que estava a começar uma nova vida a partir do nada, a partir do zero.
Era uma sensação estranha aquela, a de cortar radicalmente no mais profundo segredo do seu íntimo com os entes que lhe eram mais queridos e de deixar tudo para trás de um dia para o outro! Imaginava para os seus botões de que seria a mesma sensação que teria um moribundo nas últimas horas de vida, se ainda lhe restasse um pouco de lucidez. Vazio e escuridão salpicados por retalhos da vida, uns mais nítidos outros mais nebulosos e já meio esbatidos que já não faziam qualquer sentido recordar naquela altura, mas que persistiam em vir-lhe à memória...



Tinha sido mobilizado há cerca de duas semanas em rendição individual para o Quartel General da Guiné Bissau, precisamente 1 dia antes de passar a ficar livre definitivamente. Não tinha dúvidas de que aquilo era uma represália que aqueles malandros lhe estavam a fazer, pois pelas sucessivas conversas que mantivera com o Comandante de Batalhão, um simpático Major que o chamava ao gabinete a seguir às diversas participações de que tinha sido objecto, este lhe dizia sempre depois de acaloradas discussões: “óh homem estou completamente de acordo com as suas ideias e asseguro-lhe de que as participações vão ficar todas arquivadas aqui na minha gaveta (!), mas você tem que ter mais cuidado pois se eu for substituído eles estragam-lhe a vida e ainda são capazes de me chatear, pode ter a certeza...”

Assim perante esta nova realidade não hesitou e decidiu desertar, ideia que já tinha amadurecido há muito se tal cenário se lhe viesse a deparar! A primeira ideia que lhe ocorreu foi desertar na frente de batalha -- “teoria” muito defendida pelas forças vivas na altura que se opunham à guerra -- pois constituiria diziam, um factor de desmoralização para os que faziam a guerra e serviria de exemplo para que outros fizessem o mesmo. Mas depois de se informar e refletir um pouco sobre o assunto, concluiu que na Guiné era muito difícil de desertar na frente de batalha e depois de lá estar, mais não seria do que um parafuso na engrenagem da máquina de guerra: ou matas ou morres! Esta “tese” naturalmente, acabaria com o correr do tempo por ficar muito desacreditada e de ter cada vez menos seguidores...

Ocorreu-lhe num segundo momento fugir de avioneta para Argel que era considerada um baluarte contra a guerra colonial e contra Salazar, mas depois de contactar meio a brincar meio a sério um antigo colega de liceu e agora de tropa com brevet, ficou completamente cilindrado quando este lhe disse de que estava totalmente de acordo com a guerra nas colónias. Saiu-se airosamente deste percalço e para compor o ramalhete lá lhe foi dizendo: “estava a brincar contigo pá, afinal também és cá dos meus quem havia de dizer!”

Já não era a primeira vez que Armando levado pelas aparências neste teatro da vida aonde nem tudo o que parece é, apanhava com um balde de água fria daquele tamanho, pois ainda há poucas semanas quando abordara um dos fogosos Cabos “anti-militaristas” do seu pelotão para lhe propor que se desejasse -- dado o seu aparente “anti-militarismo” -- teria todas as condições para o colocar no estrangeiro, recebeu como resposta daquele militar: “tinha toda a consideração e respeito por si meu Aspirante, mas a partir deste momento perdi tudo o que sentia por si. Aqueles países pertencem-nos e temos que os defender a todo o custo meu Aspirante”! Armando veio a saber mais tarde tratar-se de um menino-família, filho de um industrial da Covilhã e que o seu “anti-militarismo” refletia apenas o facto de não lhe ter sido facultado mais tempo para acabar os estudos e apresentar-se na tropa como Oficial.

Socorreu-se assim como último recurso, do seu velho amigo Coutinho para lhe arranjar um “passador”. O seu amigo Coutinho era um funcionário público na casa dos 50 anos, casado e com uma filhota de 4 ou 5 anos que era o enlevo da sua vida, mas que vivia constantemente sobressaltado: “óh Armando, dizia-lhe ele quando falavam, só me faz falta apanhar uma valente tareia da Pide para ver se perco o medo que tenho destes bandidos e que me atormenta noite e dia! Vivo em pânico 24 horas por dia acredite!”
Armando tinha ido a Alcoutim uns dias antes para se despedir quer da família, quer dos sítios aonde tinha passado uma infância feliz. Foi em Alcoutim que começou a ser perseguido por aquela estranha sensação de que se calhar, nunca mais voltaria àqueles lugares e despediu-se em silêncio com o coração destroçado, quer das gentes quer dos lugares que o tinham visto menino. Não sabia quando voltaria ou até mesmo se voltaria e perguntava-se a si próprio quantos daqueles de quem se estava a despedir agora, alguns deles já com mais de 70 anos e de que tanto gostava, nunca mais tornaria a abraçar? Aquele “último abraço”, aquela sensação de “última vez” era-lhe tremendamente dolorosa, mas não podia recuar! Para não atormentar os pais e a família com a aventura em que se ia meter, justificou aquela visita com a necessidade de pedir 5 contos ao pai -- 25.00€ na moeda actual – dando-lhe a entender que ainda teria possibilidade de se safar de ir para as colónias a troco de umas massas.

Os pais teriam tempo de saber tudo tintim por tintim sem sofrimento nem angústias, quando chegasse a Paris. Foi o que aconteceu mal chegou a Paris, telefonando à namorada que informou a irmã, deslocando-se as duas a Alcoutim para lhes contarem o sucedido. Os pais escusado será dizer, ficaram muito felizes e desanuviados com a decisão do filho! Sabiam que estava longe, não o viam mas ao menos estava vivo e isso é que era importante! Na realidade aqueles 5 contos era o preço da viagem Lisboa/Paris com alimentação e tudo incluído de que ele iria precisar provavelmente, pois tinha quase a certeza de que o Faustino -- um colega de tropa -- o acompanharia naquela aventura e os 5 contos que tinha recebido do Exército para o “enxoval” não dava para os dois.

E assim nesta lufa-lufa chegou o Dia D e ali estava Armando naquele gelado Largo de Alcântara meio perdido naquelas elucubrações, ruminando um turbilhão de memórias que não conseguia estancar e que lhe pareciam descabidas num momento daqueles. Queria-se afastar do seu passado e dos projetos de vida que já não faziam qualquer sentido apesar de estar na flor da idade, mas o passado por mais que tentasse vinha sempre cair-lhe em cima ainda com mais força. Até naquela hora solitária de despedida, ironia do destino, ainda se iria encontrar com uma sua prima que casualmente passava por ali, uma bela moçoila da Afonso Vicente e que lhe traria uma vez mais à memória um mundo de belas recordações. Estava difícil dar uma facada no passado que o perseguia até ao último instante. “Então primo e o que é que fazes por aqui”, perguntou-lhe ela finalmente depois de muita conversa sobre a vida, sobre Alcoutim? “Olha prima, estou à espera de um amigo que já não vejo há tempo para irmos almoçar”, respondeu-lhe ele e assim se despediram até qualquer dia... um dia que ele sabia que se tal viesse a acontecer seria longínquo.

[Um aspecto de Linda-a-Velha]

Esse amigo apareceu pouco depois. Era o Faustino, colega da tropa e a quem ele tinha ido convidar de surpresa a Santa Margarida 2 dias antes, depois de ter tudo organizado pois até o “passador” já estava em Linda-a-Velha em casa do amigo Coutinho, há quase 1 semana. Armando sabia que o Faustino apesar do seu vozeirão de trovão de locutor da Rádio Renascença, do seu anti-militarismo militante e de ser contra a guerra colonial, escondia uma falta de coragem tremenda que o impedia de dar o salto sozinho. Sabia também que o Faustino às vezes bebia o seu copito para esquecer as agruras da vida da tropa e nesse estado de espírito etéreo podia-se descuidar e assim era mais seguro usar o factor surpresa, para não lhe dar tempo a qualquer escorregadela que deitasse tudo a perder.

Foi o que aconteceu. Armando deslocou-se com um familiar a Santa Margarida 2 dias antes da partida para Paris a pretexto de se despedir de um amigo que ia para Angola. Logo que ali chegou mandou chamar Faustino que cheio de curiosidade por tão inesperada visita apareceu de imediato. Armando deu-lhe um abraço cúmplice e entre-dentes segredou-lhe ao ouvido: “tenho viagem marcada para Paris depois de amanhã e venho-te convidar se queres ir comigo, pois até já tenho o dinheiro também para a tua passagem”! A felicidade e a alegria jorravam dos olhos do Faustino! “Óh pá tu nunca me enganaste respondeu-lhe o Faustino, mas metes-te-me um grande susto no Porto quando fizemos o jantar de despedida e te pedi para ir contigo para o Quartel! Quando te perguntei por meias palavras se sempre ias para a Guiné e tu me respondeste: então queres que vá para Angola contigo (?) fiquei completamente desorientado... não fui capaz de te dizer mais nada e assim seguimos os dois em silêncio até ao Quartel, lembras-te? Vou já falar com o Comandante, dizer-lhe que a minha mãe está muito mal e ainda hoje vou para Lisboa para prepararmos as coisas e amanhã encontra-mo-nos no Vává”.

No outro dia encontraram-se no Café Vává como combinado e o Faustino achava importante fazer uma reunião com o colega e jornalista Carlos -- um “profissional” com tarimba na passagem da fronteira pela porta do cavalo e que naturalmente fazia estes “biscatos” por amor à camisola -- para trocarem uma última opinião e tomar uma decisão final. Grande Carlos que haveria de realizar anos mais tarde já na 2ª metade da década de setenta, umas belas crónicas de divulgação da Frente Polisário a partir do Sahara Ocidental, quebrando o manto de silêncio que ainda hoje continua sobre a luta do Povo Saharauí contra o Reino de Marrocos! Mas Carlos há muito que não fazia esse trajeto desconhecendo os esquemas de vigilância na altura e assim, decidiram ser mais seguro ir com o “passador” arranjado pelo amigo Coutinho. No entanto as dicas do Carlos seriam muito úteis na passagem de outras fronteiras para lá da França.

Mas o relógio não parava e a Hora H aproximava-se a todo o vapor ali para o Largo de Alcântara. Faustino chegaria impreterivelmente à hora combinada. Mal chegou, Armando e Faustino começaram a trocar dois dedos de conversa fiada entre duas fumaças bem puxadas, com o ar mais calmo e descontraído deste mundo que conseguiam teatralizar, para disfarçar a ansiedade e o nervosismo que os percorria de cima a baixo, quando apareceu o “passador” homem dos seus 40 anos, precisamente à hora marcada. Abriram as portas do carro, entraram, cumprimentaram-se, deram-lhe cada um cinco contos de réis -- preço ajustado pela viagem até Paris -- e assim se entregavam nas mãos de um desconhecido, que os iria conduzir na maior aventura das suas curtas vidas.

Mal sabiam eles o aventureiro que lhes tinha saído na rifa e os sobressaltos por que ainda haveriam de passar naquele dia e naquela madrugada. Mas isso fica para outra altura...

(CONTINUA)