[D. Pedro IV]
Já se passaram 40 anos quando estas coisas nos foram contadas. Nessa altura, ainda o tempo não tinha apagado da memória dos mais idosos habitantes do concelho, os factos contados pelos pais e avós à lareira, nas longas noites de Inverno, como era hábito nesse tempo.
Foi tal a impressão causada que aqueles pequeninos seres de então, naquela altura venerandos anciãos, logo que ouviam falar em guerrilhas o seu semblante torna-se mais carregado e recordavam factos contados pelos velhos das suas meninices.
Tinham dificuldade em coordenar ideias, deturpam por vezes, mas a imagem de pavor permanecia.
[D. Miguel]
Por essas aldeias e “montes” há uma história para contar, um local para indicar.
Em Giões, o “moinho dos guerrilhas”, na Portela, uma casa que serviu de “forte”, na freguesia de Vaqueiros, a “horta” e o “cemitério dos guerrilhas”.
A “horta dos guerrilhas” ficava entre Soudes e Alcaria Queimada e nela apareciam sepulturas com ossadas. (1)
Iremos continuar a relatar o que apanhámos na tradição oral.
Contam-nos que as mulheres dos Balurcos escondiam-se no Barranco da Nora, perto do Montinho do Cerro, para se esquivarem às tropelias dos guerrilhas. O local era matoso, o que propiciava um bom esconderijo.
[Um aspecto actual do Balurco de Baixo. Foto JV]
Uma família desta zona tem o apelido “Alferes”. É um dos seus elementos que nos faz a explicação de como o nome foi aglutinado.
Um seu antepassado era abastado lavrador que tinha residência nos Balurcos e que sempre pisando as suas terras deslocava-se ao Vale do Pereiro, onde também possuía habitação, casas que ainda existiam em ruína, segundo o nosso informador.
A vida decorria ora num lado ora noutro, segundo as necessidades do trabalho.
Um dia, deslocando-se ao Vale do Pereiro, foi encontrar a companheira constrangida que lhe contou terem lá estado os guerrilhas, levando tudo o que apanharam, depois de se banquetearem.
Abrindo o pipo do vinho, beberam até fartar e não satisfeitos deixaram-no correr ao desbarato.
Nessa noite, os locatários voltaram a ter visitas, talvez por se terem dado bem da primeira.
[Um aspecto do pequeno monte dos Guerreirinhos. Foto JV]
O lavrador escondendo-se, possibilitou ao freguês uma fácil comezaina, rebatida com apaladado vinho caseiro, para o que se deitou debaixo da torneira do barril, abrindo-a. Quando o viu meio grogue, o lavrador vibra-lhe valente trancada e deixa-o prostrado. Ao verificar que tinha morto o homem, ficou atrapalhado, sem saber o que fazer, pensando em severa punição, talvez a morte. Acaba por resolver dirigir-se a Odeleite e contar o sucedido ao capitão de ordenanças. Este louvou-lhe o procedimento a tal ponto que o seu acto dava-lhe direito a ser nomeado “alferes de ordenanças”. No dia seguinte o lavrador transformado em autoridade é incumbido de conduzir a Mértola uns tantos presos que ali se encontravam, amarrados aos rabos dos cavalos.
Foi assim que apareceu o apelido de “Alferes” nesta zona e que ainda se mantém.
Explica-nos o nosso interlocutor o que já tínhamos ouvido, mas a sua explicação torna-se mais clara.
[Alcaria Alta da Serra. Foto de RV]
O produto do roubo em moedas de ouro e prata efectuado por estas zonas, era conduzido para o “quartel general” situado na serra de Cachopo - Vaqueiros, no monte de Alcaria Alta da Serra (506 m de altitude), local dos mais elevados das redondezas e de difícil acesso.
[O guerrilheiro Remechido]
Com a normalização da situação imposta pelas tropas de D. Maria II, restaram alguns focos isolados de miguelistas, refugiados na serra e sequazes de Remechido.
Ao terem conhecimento da morte do seu chefe, os de Alcaria Alta da Serra fugiram espavoridos com medo que lhe fizessem o mesmo. A diminuta população local dividiu as moedas de prata aos meios-alqueires (7 litros), tal a quantidade existente. Muito calados, os novos-ricos desceram a serra, cada qual seguiu o seu caminho, comprando os terrenos que encontravam (o Estado era o grande vendedor), tornando-se assim, na maioria dos lavradores das redondezas e que na altura no-los identificaram.
Segundo o narrador, isso podia confirmar-se ainda hoje, se fosse feito um inquérito, os antepassados, na maioria, seriam oriundos da “serra”(2)
Ao lado, outro amigo conta-nos ter ouvido dizer aos velhos que na serra, deitando fogo a um chaparreiro seco, verificaram com espanto que de um buraco corria prata (?!) por se terem derretido as moedas que lá estavam escondidas desde o tempo dos guerrilhas! (3)
[Pego dos Penedos, arredores de Afonso Vicente. Foto JV]
No “monte” de Afonso Vicente, no extremo norte da freguesia de Alcoutim, recolhemos a tradição de também ali o povo se esconder nos barrancos vizinhos, temendo os guerrilhas e levando os burros ao rabo dos quais atavam uma pedra, evitando assim, segundo afirmavam, que zurrassem o que podia denunciar os esconderijos.
Tem a mesma origem a estória seguinte:- Passando por ali uma hoste de “malhados”, lobrigou à porta de seus pais uma donzela e logo se propõem levá-la. Aflito, o pai impotente para salvá-la, concorda com o chefe do grupo, mas antes, teriam de comer e beber em sua casa para festejar o acontecimento. Com o desenrolar da festa, o chefe acabou por reconsiderar e deixar a moça, prestando-se o pai a ceder sempre a sua casa quando por ali voltassem. (4)
Na Corte da Seda é apanhado um homem que negando-se a dar dinheiro afirmando que não o tinha, é atado ao rabo de um cavalo. Perto da Corte Tabelião, já exausto, acede a voltar para trás e entregar todo o dinheiro que tinha em prata e não era pouco.(5)
Na vila, recolhemos outros dados de origem tradicional.
Muitos alcoutinenses abandonaram a vila e refugiaram-se em Faro onde encontravam mais segurança. O Capitão de ordenanças, oriundo de Tavira, não o quis fazer, apesar de aconselhado a isso.
Dizem-nos que era pessoa abastada. Vivia com uma governanta no edifício que actualmente pertence à Câmara Municipal e onde estão instaladas a Repartição de Finanças, Tesouraria da Fazenda Pública e Posto da G. N. R.
Preso, é levado debaixo de escolta em direcção às Cortes Pereiras e a governanta, seguindo atrás, oferecia e atirava sacos com moedas de prata, numa tentativa para o resgatar. Acabam por fuzilá-lo perto do monte de Afonso Vicente, em cujo local se ergueu um calvário.
O capitão de ordenanças, Paulo José Lopes, avô de quem nos contou o facto, acabou por comprar à viúva, que residia em Tavira, parte desse prédio que ainda se mantinha na posse da família. (6)
Nas estórias contadas existe muita imaginação, motivada pelo decorrer dos anos e pela vontade de compor para lhe dar maior brilho.
Nesta época agitada em que imperava o assassinato e o saque, muito dinheiro e metais preciosos eram metidos em panelas que escondiam nos mais variados locais, evitando assim o roubo.
Muitas foram levantadas pelos próprios, outras, devido ao falecimento dos escondedores, foram encontradas por outros, e outras, quem sabe, permanecerão nos seus sítios, locais menos acessíveis ou que a força das circunstâncias ainda não originou o seu encontro.
Na vila, tivemos oportunidade de ver uma panela de barro encontrada e escondida numa parede sobre uma porta. Se a encontraram com valores, naturalmente que ninguém o revelou.
NOTAS
(1)–História- Lenda contada pelo Sr. Manuel Pinto, da vila.
(2 –História- Lenda contada pelo Sr. José António (ferrador) - Cerro dos Balurcos
(3)–História- Lenda contada pelo Sr. António Afonso, Montinho do Cerro
(4)–História- Lenda contada pela Sra. Ana da Costa, de Afonso Vicente
(5)–História- Lenda contada pela Sra. Aurora Canelas de Alcoutim
(6)–História– Lenda contada pela Sra. Belmira Lopes Teixeira.