sábado, 24 de março de 2012
Crónicas e Ficções Soltas - Alcoutim - Recordações - XXIV
Escreve
Daniel Teixeira
PEQUENO INVENTÁRIO SOCIAL
Para contar memórias ao fio da lembrança, mesmo que elas sejam, como são, diversificadas, é difícil não voltar a referir, ainda que noutros enquadramentos, noutras perspectivas aquilo de que já se falou. No meu caso as coisas, os acontecimentos, entrecruzam-se como se passássemos por uma rede de caminhos: é difícil por exemplo falar num caminho que está a norte sem fazer referência aos restantes e é difícil não descrever algo mais que se passou num desses caminhos que não estando directamente em causa já foi inclusivamente falado numa outra perspectiva.
Como já foi seguramente dito no período em que íamos passar algum tempo a Alcaria Alta durante as férias de verão na escola, já havia anos que o meu avô tinha passado de cavalo para burro. A minha mãe recordava-me de quando em vez que no seu tempo de mais nova tinham duas vacas que levavam a pastar as 4 irmãs, ainda, dado que uma faleceu depois com vinte anos sensivelmente. Tinham também algumas cabras e algumas ovelhas e o meu avô tinha um cavalo (ou égua) e uma parelha de mulas. Como também já disse eu comecei as minhas idas a Alcaria Alta já no período asinino da vida do meu avô.
Esta morte da minha tia, falada acima, que não cheguei a conhecer senão pelas fotos esbatidas, algumas em castanho claro e outras em castanho avermelhado que estavam no quarto, foi uma ausência sempre sentida também por nós: no quarto onde ela faleceu, enviada para casa vinda do então Hospital da Misericórdia de Faro para morrer em família, guardaram-se sempre as garrafas de soro vazias, em vidro grosso naquela altura, assim do tamanho aproximado a uma garrafa de 33 cls de água, mas compridas e afuniladas nas pontas. Era um vidro grosso que manuseávamos com o maior cuidado e mesmo depois de falecidos os dois velhotes elas lá ficaram e não me parece que alguém as tenha deitado fora. Havia ali, apesar de tudo, uma recordação que ainda estava viva.
Havia uma janela falsa na parede, com duas ou três prateleiras que funcionava quase como uma guarita memorial a essa minha falecida tia e era nesse mesmo quarto com duas camas de casal que nós ficávamos.
A minha avó, pelo que me disse a minha mãe teve 9 filhos, cinco dos quais morreram ainda bebés. Calculo que apesar das possibilidades de adquirir algum difícil hábito a gerir essas mortes e a fazer lutos curtos também para não influir nos sentimentos das filhas vivas, cada uma delas sucedesse com grande desgosto de todos.
O desgosto natural pelo falecimento de um ser que não vinga e que sai de dentro de uma mãe e aquele sentimento bem expresso sempre de se viver uma fatalidade contra a qual nada havia mesmo a fazer no sentido absoluto do termo. Era mesmo o que Deus queria...pensariam talvez porque cuidados pré-parto não havia mesmo e levaram muitos anos a vir a ter lugar para além do facto quase inultrapassável de ter a futura mãe de trabalhar praticamente até aos últimos dias da gestação.
A minha bisavó, do lado da minha avó, tinha tido 13 filhos: ficaram após a idade infantil a minha avó, a Tia Marianita, a Tia Zabelinha, a «avó» Coelho e a avó Assunção e safou-se da razia da mortalidade infantil ainda um do sexo masculino, o tio Eurico com quem tive pouca lidação porque ele fez quase toda a sua vida na zona de Lisboa e de quem já falei numa outra crónica porque só vim a saber da sua existência muito tarde, já com cerca de 14 / 15 anos penso eu.
Veio no entanto este meu tio (então viúvo) a casar e anos depois a falecer em Faro, o que também já referi. Lembro-me bem dessa parte, dele ter ficado viúvo e das minhas tias procurarem arranjar-lhe casamento, a seu pedido, é claro, uma vez que ele para a vida de solitário não se sentia fadado.
Os conciliábulos de candidatura tinham lugar não sei bem porquê na casa de uma senhora que tinha uma mercearia aqui em Faro, a senhora Clara, casa essa onde eu também ia, a acompanhar a minha mãe e a minha tia (uma, a que vivia em Faro na altura). Houve uma verdadeira mobilização de apoio ao Tio Eurico e as possíveis candidatas talvez andassem pela dezena, originárias de vários pontos do país chegadas pela via da conhecida que conhece uma conhecida e assim sucessivamente.
Por vezes era solicitado para tentar decifrar algumas partes de cartas e pelas fotografias que vi e pelos trechos que li todas as candidatas eram bonitas, boas senhoras e trabalhadeiras, embora os anos lhes pesassem para além das fotos; nesse tempo havia sempre a desculpa das fotos tipo Bilhete de Identidade serem quase uma raridade e as outras fotos também. Assim eram muito raras as fotos que se podiam considerar actualizadas ou próximas dos tempos presentes na altura.
O meu tio acabou por casar com uma excelente senhora com a qual contudo não tive muita lidação: tinha uma chapelaria que acabou por vender, casaram mesmo, e durante os poucos anos que o meu tio avô viveu as informações que iam chegando à nossa casa eram das melhores.
Enviuvando essa minha tia avó por casamento acabou por arranjar um quarto num lar da misericórdia mas fora do regime geral, um quarto só para ela e levava a sua vida social normal fora do Lar. O meu tio tinha trabalhado nas oficinas de material de guerra e tinha para a época deixado «uma boa reforma». Quem a visitava sempre que vinha a Faro era a minha prima Marquinhas, uma jóia de pessoa desde sempre, e uma visitadora nata. Já falei dela também...Lembro-me bem dela dizer que achava o Lar tão bom que quando se reformasse pensava ir para lá viver...faleceu antes disso poder ter lugar.
O que conto são memórias de pessoas simples, conto também algumas excepções ou tentativas de se fazer o excepcional, conto os regressos da emigração e arranjar uma casa melhor a jeito, comprar um táxi ou um tractor e voltar a trabalhar, sempre: nunca conheci por lá ninguém encostado ao dinheiro que tinha nem à reforma que podia ter: na sua grande parte foram regressos com mais folga, com melhores condições de vida, mas empreender, ser empreendedor, transformar coisas ou procurar fazer evoluir as coisas não conheço ninguém.
«O seu primo M. foi o homem que mais Marcos trouxe da Alemanha!» - dizia-me um outro que tinha sido colega dele por lá: falei-lhe nisso, do que o outro dizia: «Achas que pode ser verdade? Então vê a minha vida: tenho de trabalhar todos os dias, as minhas filhas ficaram pelo 9º ano uma e a outra pelo 12º, começaram as duas a trabalhar aos 18 anos...depois de veres isso ficas a saber os Marcos todos que eu trouxe!»
Acho que a sociedade campesina naquele monte e noutros seguramente interiorizou e interiorizou-se no fracasso, desistiu pura e simplesmente como tinha feito desde sempre, com menos ou mais meios. Relatar esta tristeza incrustada não me agrada, como é claro, mas por vezes também sinto que um inventário correcto (pelo menos na minha perspectiva) é um elemento importante para se calcular o que se poderia fazer no futuro se houvesse futuro mesmo.