domingo, 26 de outubro de 2008

UM CASAMENTO EM ALCOUTIM NO ANO DE 1885

No meu livro, Alcoutim, Capital do Nordeste Algarvio (…), 1985 e como explico a pág. 261, ao abordar os casamentos à antiga, ainda que possuíssemos alguns apontamentos, acabámos por transcrever um interessante artigo com o título “Velhos usos de Alcoutim” que o nosso saudoso amigo, Sr. Luís Cunha fez publicar no Jornal do Algarve de 3 de Fevereiro de 1973.

Pensávamos nós, na altura, que seria a única coisa publicada sobre o assunto e hoje sabemos que assim não é e admitimos que possa existir algo mais sobre o tema.

O Dr. Tito de Bourbon e Noronha, que refiro a pág. 32 do meu trabalho, Saúde e Assistência em Alcoutim, no séc XIX, 1993, formado em medicina pela Escola Médica do Porto, concorre e é colocado em Alcoutim em meados de 1885, onde só permaneceu um mês, mas o suficiente para se ter inteirado de muitas coisas que acabou por transpor para o papel num artigo intitulado ALCOUTIM e publicado no jornal de Vila Franca de Xira, Vida Ribatejana (meados dos anos 30).

Muitíssimo bem escrito, surpreende-me como em tão pouco tempo conseguiu apanhar tanta coisa típica da região

Com a devida vénia transcrevemos parte daquele artigo, no qual descreve primorosamente um casamento a que assistiu e que muito apreciou pelo seu ineditismo, pelo menos para ele.

Escreveu assim:


“Nem só aborrecidas atribulações passei naquele inolvidável mês da minha iniciação como médico municipal, não senhor; para desopilar o baço e o fígado tive a boa sorte de assistir a uma cerimónia que, pela sua inédita originalidade, me deixou as mais graciosas e hilariantes recordações.

Foi um casamento de serranos aborígenes. Descem a serra em direcção à vila dois cortejos separados, o do noivo e o da noiva, montados nos imprescindíveis muares engalanados à espanhola, de cores berrantes, envergando as mulheres os trajes domingueiros da região e os homens pesados capotes de três cabeções e chapéu largo de feltro.

A noiva vem entre as duas madrinhas, com toda a seriedade e compostura, olhos no chão e nas orelhas de algum animal mais recalcitrante.

Após a cerimónia religiosa são atiradas sobre os nubentes mãos cheias de trigo, símbolo da abundância, e, e retiram, caminho da serra, separados como vieram, parentes e amigos da noiva para casa dos pais desta, os do noivo para a casa respectiva, às vezes em lugares muito afastados.

Em cada uma das duas casas se celebra o banquete nupcial, tendo como peça obrigada um carneiro assado a meio da mesa e aos quatro cantos alguidares de vinho.

Bebem os comensais por tigelas, que enchem nos alguidares, sendo da praxe, para mostrar fartura, entornar-se muito líquido, de modo a que no fim da refeição a toalha mudou totalmente de cor, não tendo uma só nódoa branca. Depois, já noite, vai o cortejo do noivo para casa da consorte.

Espera esta a visita na quadra maior, sentada em uma cadeira ou canapé, ladeada das madrinhas, cobertas as três cadeiras com vistosa manta alentejana.

À volta, os convidados conservam para a ocasião, o maior recato e compostura, falas em surdina, gestos ponderados.

A meio da casa ergue-se um montão de móveis, mesas, cadeiras, bancos, tripeças, o mais avantajado possível e igualmente coberto de colchas, é o trambolho.

Ouve-se o reboliço fora e tropear de animais; é o noivo que chega.

Bate-se à porta; levanta-se, solene, uma das madrinhas e, pausadamente, se dirige à porta, e, sem abrir, pergunta:

- Quem bate, quem está aí?

E o noivo, fora, responde:

- É o António do Pereiro; está cá a senhora Maria da Cruz, a rosa de Jericó que veio, para aqui de manhã?

- Não está cá, vá procurá-la a outra parte.

- Mas como, com uma noite tão escura e tão maus os caminhos? Darão comigo as bruxas! Diga para onde ela foi.

- Foi para o pego.

A estas horas? Para lá não foi ela que é muito medrosa.

- Foi para o poço.

- Ao poço me deitava eu por ela, mas já por lá passei e não a vi.

E o diálogo continua, mandando-o a madrinha procurar a partes várias, nem todas limpas e bem cheirosas, com grande gáudio dos assistentes de dentro e de fora, até que esgotada a fantasia e a paciência do noivo, é aberta a porta e entra tudo de roldão, noivo à frente.

- Ah! lá está a minha rosa de Jericó!

E, cego de amor, investe denodadamente para diante, esbarra com o trambolho, que com grande fracasso desmorona tombando o rapaz no meio dos destroços.

Ferve ao rubro o entusiasmo; a madrinha, solenemente, ainda cede o seu lugar ao noivo e, esquecido o comedimento, começa o bailarico, que deixa a perder de vista um batuque cafreano.”

Entre estas duas descrições existem coisas comuns e naturalmente algumas diferentes, mas no seu essencial, são coincidentes. Temos que tomar em consideração que entre os casamentos a que ambos assistiram, haverá um espaço de tempo de cerca de quarenta anos o que apesar do isolamento existente, sempre teria provocado algumas alterações com ajustamento ao tempo.

O Dr. Tito de Noronha foi substituído pelo Dr. José Cunha que veio a ser o pai do Sr. Luís Cunha, autor do artigo que já referimos.


Está no nosso pensamento procurar localizar este casamento no Arquivo Distrital de Faro.

Aqui deixo estas pequenas considerações que possibilitam certamente a alguns alcoutenenses o conhecimento de tal descrição e que de outra maneira lhes seria mais difícil obter.