terça-feira, 26 de maio de 2009

A ferrajaria no concelho de Alcoutim

(Publicado no Nº 57, do Jornal Escrito, de Novembro de 2003, encarte de O Algarve nº 4776.)

A recolha recente e a catalogação de alguns utensílios e objectos de ferro de feitura local e com dezenas de anos, ultrapassando alguns o século, fizeram-me pensar mais profundamente no assunto, tentando encontrar explicações, ainda possíveis a nível oral, e isto em breve acabará com o desaparecimento da lucidez dos últimos octogenários, conjugadas com os elementos que sobre o assunto temos vindo a adquirir em leituras de documentação local.

A arte de trabalhar o ferro vem de tempos imemoriais e não é para essa época que o nosso escrito se vai dirigir. As notas que iremos referir, têm por base os três últimos quartéis do século XIX e a primeira metade do seguinte.

Em meados do século XIX, os ofícios mecânicos mais referidos na documentação camarária, eram os seguintes e de que havia nomeação do competente juiz: pedreiro, moleiro, ferrador, alfaiate, sapateiro, oleiro e ferreiro.

Pela relação se compreende o equilíbrio das profissões, todas as indispensáveis para que a vida decorresse nos parâmetros de época.

O pedreiro para a construção das habitações, o moleiro para transformar o trigo em farinha, base da alimentação deste povo, o ferrador para que os animais bem calçados pudessem ser os preciosos auxiliares na vida do campo, lavrando e como animal de carga e sela; o alfaiate para a confecção das vestimentas, o sapateiro que tratava do indispensável calçado, ora fazendo novo, ora remendando até ser possível, o oleiro que abastecia as pilheiras de tigelas, saladeiras, canecas e alguidares, isto só para falar nos de maior uso e o ferreiro, actividade a que nos iremos referir mais em pormenor.

A Câmara Municipal de Alcoutim nomeava periodicamente os Juízes dos Ofícios Mecânicos, a quem competia avalizar a carta, nos termos de hoje entendida como carta profissional. Ao candidato, depois de examinado pelo Juiz do Ofício e achando-se hábil e com a necessária aptidão para o seu desempenho, é-lhe passada a competente carta de examinação a qual poderá usar em todas as terras do “Reino de Portugal e Algarves”, devendo os zeladores da Câmara não lhes porem coima alguma por não tirar licença anual, servindo a carta de licença perpétua, com a qual se apresentarão quando lhe for determinado. (1)

A Câmara, velando pelo fiel cumprimento das suas Posturas, determinou que os indivíduos que exercerem os ofícios de (...), ferreiro (...) sem estarem encartados, item as suas licenças até ao fim do mês de Junho pelo tempo que decorrer até ao fim do corrente ano, tirando-as depois em conformidade com a Postura, em Janeiro de cada ano. O que assim não proceder, pagará a multa de 500 réis sempre que for encontrado a trabalhar no ofício sem estar munido da respectiva licença. (2)

A arte de trabalhar o ferro teve expressão em todas as freguesias do concelho.


[Trabalhos de ferreiro]

Em 1799, Manuel Dias, ferreiro em Giões, fez a cruz de ferro forjado para a Capela de Nª Sª da Conceição, na vila, pela qual recebeu cinco mil réis. (3)

Em 1819, António Rodrigues, de Giões, obtém a carta de ferreiro e serralheiro, em Tavira, junto do Juiz de Fora e Presidente do Senado, Dr. Bernardo José Vieira Mota

Sabemos que em 1853 exercia a actividade nesta aldeia um António Rodrigues que poderá tratar-se da mesma pessoa.

Identificámos também na mesma aldeia, Lourenço Rodrigues Júnior cuja carta foi obtida em 20 de Outubro de 1841. (4)

A freguesia de Martim Longo foi um centro importante de ferrajaria. O mestre ferreiro José Henriques, que tirou a sua carta de ofício, prestando provas em 5 de Dezembro de 1842, António Fernando de Campos que obteve a sua em 28 de Janeiro do ano seguinte, António Marques (1844.09.07) e António Rodrigues Júnior (1849.02.01) foram outros mestres ferreiros que localizámos como trabalhando naquela freguesia.

O lugar de Juiz do Ofício de ferreiro era desempenhado em 1843 por José Manuel, da aldeia de Vaqueiros, (5) havendo pelo menos mais outro, José Joaquim, trabalhando naquela aldeia serrana.

Em 1844 exercia a sua actividade na aldeia do Pereiro, Joaquim Mestre.


[Cruz de ferro forjado na Igreja Matriz do Pereiro]
Na vila e sua freguesia, a arte também tinha os seus mentores, apesar de só ter identificado os mestres dos meados do século passado.

Ainda hoje é referido com frequência a forja que existia no São Martinho (Cortes Pereiras) e que a tradição aponta como tendo sido criada por D. Miguel, o quase lendário cidadão espanhol que presidiu ao município alcoutenejo e que foi assassinado no seu moinho da ribeira do Vascão.

São ainda em grande número e em pleno serviço, a ferragem de portas e alguma de janelas, com fechaduras de grandes chaves, gonzos, aldrabas e típicos ferrolhos. Até os pregos, aqui não se utilizavam parafusos, que fixavam as peças eram de fabrico local, toscamente facetados, de grandes cabeças, compridos de maneira que a ponta se pudesse voltar para uma melhor segurança.

Ainda admirámos na vila algumas grades protectoras de espaços e de gosto com algum requinte. Não nos esquece uma de certa dimensão e que se encontrava numa desaparecida casa que pertencia à família Rosário e no local onde se encontra hoje instalada a barbearia da vila. Essa grade que me disseram ter sido recolhida pela Câmara Municipal, possivelmente desapareceu. Lembro-me, que além do trabalho artístico, tinha um monograma constituído por três letras (JJM). A partir destas iniciais procurei conhecer o personagem, não numa pesquisa directa mas sim por aquilo que nos ia aparecendo nas leituras documentais que íamos efectuando. (6)

As “casas nobres” da vila ostentavam varandas com gradeamento de fabrico local, como ainda acontece no designado edifício do capitão-mor, hoje ocupado em parte pelo posto da GNR.

A vila foi a última sede de concelho do país a receber o saneamento básico, em 1965. Até aí havia homens que se dedicavam à actividade de aguadeiros, isto é, acarretavam em asininos cântaros de barro ou folha zincada cheios de água do Poço das Figueiras que vendiam pelas portas da vila. Estes homens estavam colectados e pagavam os seus impostos!

Nos “montes”, todos tinham um burrinho, e os que não tinham pediam-no emprestado para irem ao poço do monte buscar a água que necessitavam.

Os cântaros de zinco eram transportados em cangalhas de ferro, obra dos ferreiros locais e normalmente de quatro bolsas. Ainda que essas tarefas tenham desaparecido após 1975 e os burros estejam quase extintos, a verdade é que ainda existem muitas cangalhas deste tipo.


[Cangalhas de ferro (duplas)]

Os candeeiros que alumiavam a vila desde o Século XIX, abastecidos de petróleo, eram igualmente obra de artistas locais, existindo, que eu saiba, dois que foram electrificados e colocados no edifício dos Paços do Concelho, a quando do seu restauro, quando presidia António Maria Corvo. Feliz ideia.

Nunca me esqueci de uma craveira do século XIX em serviço na Conservatória do Registo Civil, toda em ferro, de uma beleza e robustez extraordinárias e igualmente obra de um conceituado artesão local. Se a memória não me atraiçoa, tinha gravado o nome do artista e a data da feitura. Perguntei por ela, ninguém soube dizer-me o seu destino! Que linda peça de museu e os museus só se fazem com peças e não com palavras.

Outras peças que só os bons mestres faziam, eram balanças romanas, próprias para pesar produtos agrícolas. A sua confecção chegou até aos últimos anos da década de sessenta, primeiros da seguinte, na aldeia do Pereiro onde trabalhava um conhecido especialista.

Apesar de já pouco usadas, ainda existem bastantes exemplares operacionais espalhados pelo concelho.

Junto ao “fogo”, onde girava a vida, existiam sempre tenazes, trempes, triângulos e grelhas, indispensáveis na confecção dos alimentos. Os garfos de ferro, existiam em todas as casas.

O gado necessitava de estacas que, para além de evitarem o seu afastamento, não davam origem a danos em árvores e culturas.


[Ferrando]
Numa zona onde o xisto abunda, a palanca tinha uma acção importante, auxiliada por guilhos, marretas e picaretas, removendo a rocha conforme as necessidades.

O pescador também necessitava do ferreiro a quem encomendava a feitura de fisgas, de oito, dez dentes, então e ainda hoje utilizadas na pesca ao candeio, destinada ao muge.

A agricultura, como actividade basilar no concelho, ocupava os ferreiros com o fabrico de muitos utensílios, como cavadeiras, sachos de formatos variados, enxadas, forcados, peças para arados, rastilhos, como aqui designam os ancinhos por influência do espanhol rastrillo, foices e muitos mais.

As foices feitas pela firma José do Rosário & Cª tinham fama em toda a região, como sendo de excelente qualidade.

Pelos meados do século passado, ainda trabalhavam na ferrajaria, entre outros, Francisco Madeira do Rosário e Luís Fernandes Teixeira, na vila; Elisiário Soares, Manuel Rodrigues Ferrador Júnior e Francisco Romba, no Pereiro; António Barão Salvador, em Giões; Sebastião Gregório Mendes, António Soares, Manuel Soares Júnior, Alípio Rodrigues Mendes, e Manuel Sebastião Mendes, em Martim Longo e Joaquim Neto e José Manuel das Neves, em Vaqueiros. (7)

Depois da execução de trabalhos inerentes à época, com a feitura, entre outros, dos objectos e utensílios que indicámos, os artistas procuraram adaptar-se à execução de novas peças que a mudança de vinha impunha, mas a vaga industrial de fabrico em série, a utilização de novas matérias e a abertura de estradas com mais fácil chegada dos produtos, a preços mais competitivos, acabou por matar esta arte, de que existe leve resquício.

Ferrarias, plural de ferraria, sinónimo de ferrajaria, é o nome de um pequeno monte da freguesia de Vaqueiros, situado perto de uma grande mina explorada já pelos romanos.
Procurámos dar uma perspectiva do que foi esta arte de trabalhar o ferro, pelo menos no espaço de um século, no concelho de Alcoutim.



NOTAS

(1)-Registo da Carta de Examinação do ofício de ferreiro passada a favor de Joaquim José, da aldeia de Vaqueiros, in Livro (nº 2) do Registo das Mercês e outros diplomas para uso da Câmara de Alcoutim, iniciado em Outubro de 1841, pág. 16 verso.
(2)-Acta da Sessão da Câmara Municipal de Alcoutim de 21 de Abril de 1842.
(3)-Livro de Receitas e Despesas da Real Confraria de Nª Sª da Conceição, iniciado em 1785.
(4)-Registo da Carta de Examinação do ofício de ferreiro passada a favor de Lourenço Rodrigues Júnior, da aldeia de Giões, in Livro (nº2) do Registo das Mercês e outros diplomas para uso da Câmara de Alcoutim iniciado em Outubro de 1841, pág. 3.
(5)-Acta da Sessão da Câmara Municipal de Alcoutim de 4 de Fevereiro de 1843.
(6)-Foi Regedor, Juiz de Paz, Provedor da Santa Casa da Misericórdia, Vereador, o homem que levantou a sua voz contra a tentativa de mudança de sede do concelho, em 1867 e depois Presidente da Câmara Municipal. Foi fiel do Director do Correio na vila de Alcoutim e vogal da Junta de Repartidores da Contribuição Industrial.
(7)-Dados recolhidos em Anuários Comerciais da época.