(Publicado no Jornal do Baixo Guadiana, nº 84, de Abril de 2007, pág. 11)
Pequena Nota:
Se estivesse entre nós, faria hoje 84 anos. Teríamos, como era hábito, almoçado juntos.
A horta nunca mais foi o que era no tempo dele.
Estava sempre em cima do acontecimento. Não lhe passava nada.
Aqui o lembramos mais uma vez.
JV
No dia de Natal do ano transacto, logo pela manhã o telefone tocou e do outro lado do fio a notícia estridente fez-se ouvir com todas as características próprias da comunicação de uma morte.
Levantei-me, um duche rápido, mal almocei e pus-me a caminho de Afonso Vicente pois ainda são cerca de quatrocentos quilómetros a percorrer.
Tive de andar cem quilómetros para encontrar gasolina à venda e ainda pensei em ficar pelo caminho.
Galgando os quilómetros a velocidade moderada a “cassete” que se tinha instalado no meu cérebro começou a desbobinar.
Ainda que o seu estado de saúde se considerasse grave, não esperava que o desenlace fosse tão rápido, até porque me mantinha actualizado relativamente à situação.
De tudo admitia que pudesse morrer, menos daquilo que o vitimou!
Não me lembro de uma pessoa tão cuidadosa com a alimentação, peixe grelhado ou cozido, verduras e muito pouco sal. Bacalhau era o seu prato favorito mas muitíssimo bem dessalgado. Nada de gorduras animais, de presuntos ou enchidos. Álcool, só em dia de festa e um copinho da Hortinha das Lajes. Provava-o sempre, mas em todo o ano não bebia seis copitos!
O fumar, há muito tinha acabado! Não faltava a uma consulta ou a um exame médico. À mais pequena coisa procurava o clínico. Não se esquecia de tomar a sua medicação. MAS PARA MORRER, É SÓ PRECISO ESTAR VIVO, como diz o povo, no seu saber!
Manuel Carvalho era um verdadeiro alcoutenejo, ainda que não tivesse nascido neste concelho serrano, pois viu a luz do dia na freguesia de Molares, concelho de Celorico de Basto, distrito de Braga.
Seus pais eram caseiros na Quinta do Campo, no lugar do Tojal e tiveram prole razoável., tendo Manuel nascido naquela quinta em 1925 e ser conhecido por Manuel do Tojal. Fez a 4ª classe sem dificuldades na escola de Molares, para onde se deslocava diariamente, aprendia com facilidade mas não era aluno aplicado, como nos dizia.
Depois e até “à vida militar” trabalhava para a casa ajudando os pais que apesar de caseiros, a vida era bastante dura como nos contava pois do produzido muito pouco ficava para eles.
Aprendeu assim todos os trabalhos do campo que nunca esqueceu e que relatava com minúcia fazendo a diferença do que encontrou por estas paragens.
Era um exímio contador de histórias, transmitindo os factos com grande realismo. Tinha-as muitíssimo engraçadas e ao contá-las, fazia-o de maneira que se via que era verdadeira. Depois, rematava com as suas conclusões, umas vezes a seu favor, outras contra.
Faz a recruta e a escola de cabos na cidade do Porto, em Cavalaria, e passa por Chaves, regressando ao Porto onde foi impedido do Comandante da Região Militar.
Em 11 de Outubro de 1946 faz parte da coluna revolucionária que sai do Porto, comandada pelo tenente Fernando Queiroga e que é detida na Mealhada pelo Ministro Santos Costa.
Ainda esteve uns dias detido em Coimbra com os outros camaradas acabando por ser libertado, só havendo penalizações para oficiais e sargentos.
Contava-nos o acontecimento com muita graça pois quase não vai na coluna. Pararam para ele entrar e aproveitou a boleia, não sabia ao que ia. A maioria dos veículos ia ficando pelo caminho avariada!
Só depois se apercebeu onde se tinha metido!
Após o cumprimento do serviço militar, regressou à Quinta do Campo mas deixando já feito o requerimento para o Recrutamento da Guarda Fiscal.
Pouco tempo depois é chamado para a prestação de provas de que fica aprovado, passando depois ao período de formação, sendo considerado apto é colocado no Batalhão com sede em Évora, acabando por vir para a Secção de Alcoutim, sendo colocado, se a memória não me falha, no posto do Barranco do Álamo.
Pouco tempo depois acaba por casar com uma alcouteneja, no monte do Vascão e onde lhe nasce o filho.
Após concurso é promovido a 1º Cabo e colocado num posto da área de Aljezur mas logo que lhe é possível aproxima-se de Alcoutim.
Entre outros, exerce funções no posto dos Salgueiros, que comanda, no Pomarão, na Mina de S. Domingos e em Mértola.
Regressa a Alcoutim passando à reserva quando comandava o posto da vila.
Tal como os alcoutenejos do seu tempo, Manuel Carvalho aprendeu a fazer um cesto de cana, uma cadeira de fundo de tabua, a enxertar zambujeiros de garfo ou carteta e amendoeiras de canudo, a jogar “os três setes” ou a amanhar barbos.
Por outro lado teve de pôr de parte o caldo de couve com broa a que estava habituado ou o bacalhau frito com ovo na consoada, adaptando-se às açordas e gaspachos, às migas (que sabia fazer), às sopas (de muge, de tomate, de toucinho, de alhos areios, etc.) e aos jantares de grão, feijão ou couve.
Manuel Carvalho viveu cerca de sessenta anos em Alcoutim e ainda que tivesse habitação própria em Faro, não foi capaz de lá viver. Pelo que já escrevi e pelo que ainda escreverei, não é blasfémia chamar-lhe alcoutenejo. Ainda que já não oiça muito bem, tenho ouvido chamar alcoutenejo a gentes que lá não nasceram, não residiram com efectividade, que não conhecem o concelho, que a terra pouco lhes diz e que só lá vão em situações muito especiais, que me escuso de comentar. Para mim estas pessoas não devem ser tratadas por alcoutenejos. Respeitem aqueles que o são.
Manuel Carvalho foi um excelente caçador, sem dúvida dos melhores dos últimos cinquenta anos.
Sou do tempo em que ele abastecia a vila de caça! Quando ele não matasse, não matava ninguém!
Como tudo na vida, aquela propensão nasceu com ele e soube cultivá-la. Saber bater o terreno, ter resistência, bom ouvido, rapidez de reflexos, além de saber apontar com precisão, são factores que bem dominou nos seus tempos áureos.
Além da caça, gostava imenso de jogar às cartas, onde por vezes gastava tardes inteiras. Quando perdia, ficava doente! Por causa das cartas, era capaz de fazer um banzé, uma tempestade num copo de água! Era muito nervoso e fervia em pouca água. Os parceiros já o conheciam e desculpavam-no.
Há uma história com as cartas, passada com ele, que nunca esquecerei mas não a contarei aqui. Que a conte o seu parceiro, José Ribeiros, do Vascão.
Após a passagem à reserva foi eleito vereador da Câmara Municipal de Alcoutim, o que aconteceu em três mandatos, tendo assumido a Presidência quando o presidente perdeu o mandato.
Foi mandatário de Mário Soares quando este foi eleito Presidente da República e do PS em algumas eleições autárquicas.
Era militante do Partido Socialista.
Mas Manuel Carvalho não deixou de ser minhoto apesar de só ter vivido no Minho, cerca de 30% da sua vida! Todos os dias falava na sua terra e na família, nos seus amigos. Ainda recentemente tinha estado com um que não via há mais de sessenta anos!
Sabendo bem o sentido que ele nutria pela família, organizei a sua árvore genealógica completa e composta de seis gerações. Verifica-se que é tudo gente do concelho de Celorico de Basto, excepto um elemento que é do concelho vizinho de Cabeceiras de Basto. Ficou muito satisfeito com a oferta, acabando por decorar o nome dos seus ascendentes que não conhecia.
Recordava a sua mocidade, os trabalhos do campo, as feiras e as romarias de que ainda se lembrava bem das datas! Seguindo a tradição familiar, sabia defender-se com um pau, manuseando-o com destreza.
Ainda que já lá não tivesse família chegada, sempre que podia dava lá uma volta e dizia-me se lhe saísse o euro milhões ainda ia lá fazer uma casa.
Nunca disse o meu moço, como em Alcoutim se usa, mas sim o meu rapaz.
Nunca falava numa pessoa falecida sem dizer Deus lhe perdoe, hábito que trouxe das suas origens.
Nunca perdeu a pronúncia do norte!
E o dedilhar da viola, que nunca esqueceu, também tem lá a sua origem.
O ALGARVIO NÃO TRAIU O MINHOTO!
Manuel Carvalho não andou a penar esperando debilitado que a morte chegasse. Fez tudo o que gostava fazer praticamente até morrer. Conduziu, mexeu na horta, preencheu o boletim do euro-milhões e foi à caça trazendo três ou quatro peças!
Ele que nunca deixava de ler um meu escrito, que apreciava, não vai ler este que escrevi em sua homenagem.
[O "Feitor" não entragava a ninguém a tarefa da apanha da batata. Foi a última que realizou, em 2006]
Recordarei sempre o amigo com quem convivi relativamente de perto durante os últimos dez anos.
As dezenas de fotografias que possuo, ajudarão a recordá-lo com saudade.