sábado, 27 de junho de 2009

Dormir ao relento

A actual época do ano e devido ainda à sua prática na serra algarvia, levou-me a alinhavar estas linhas.

Vem de sempre o homem dormir ao relento (humidade atmosférica da noite) e fá-lo pelos mais variados motivos.

Não nos vamos alongar na matéria que pertence, entre outros, aos antropólogos, vamos procurar referir o seu uso na serra algarvia, nomeadamente no concelho de Alcoutim.

Numa zona onde o pão foi e continua a ser a base da alimentação deste povo, as terras delgadas de xisto iam produzindo o que era possível e quando se chegava às nove sementes de produção era considerada uma excelente colheita!

Todos os trabalhos do campo são árduos, mas ceifar com foice numa época cálida é um trabalho desumano e hoje praticamente extinto, mas na primeira metade do século passado era “o pão-nosso de cada dia”, e os algarvios da serra deslocavam-se a pé e em grupos fazendo as ceifas do sul do Alentejo, muitas vezes efectuadas de empreitada.

Mas é ao concelho de Alcoutim que nos queremos referir.


As ceifas locais eram de uma maneira geral feitas pelas pessoas da casa e muitas vezes auxiliadas pelos vizinhos. O lema era este:- Hoje fazemos a tua, amanhã a minha. Já que o trabalho devido à época quente em que se realizava tinha todo o interesse efectuar-se ao nascer do sol, havendo que dormir junto das searas para que assim que raiasse o sol, começar o trabalho.

Por outro lado, devido ao calor, tornava-se mais convidativo dormir ao relento do que em casa.

Muitas das refeições, quase totalmente constituídas por gaspacho, eram confeccionadas no local e outras vezes feitas pela “patroa” que à hora aprazada a levava aos ceifeiros, montando um macho ou outro animal de sela.

Outro dos trabalhos que originava dormir ao relento era a apanha dos figos, cuja maioria das figueiras se situava nas margens do Guadiana, local que devido à água se tornava mais fresco.

Era hábito levar os porcos para a engorda que os figos provocavam.


[Hotel *****]
Os que se iam apanhando secavam-se, sobre palha no chão, metidos em sacas e transportados por alguém, normalmente aquele que ia levar o abastecimento dos que realizavam a tarefa.

Havia naturalmente a selecção, para um lado aqueles que iam fazer parte da alimentação humana, ou outros, os de fraca qualidade destinavam-se ao sustento dos animais, nomeadamente das bestas.

Ainda que quase todos os proprietários tivessem uma cabana na sua várzea, não se dormia nela pois tornava-se mais agradável dormir ao relento.

Depois do trabalho concluído era o regresso a casa, ao “monte”.

Esta tarefa fazia juntar nas margens do rio muita gente que quando tinham um pequeno período de descanso, confraternizavam dado que se conheciam todos.

Quando cheguei à vila de Alcoutim em 1967 fiquei admirado de grande partes dos moços, no Verão, irem dormir para a eira da Fonte Primeira, onde se encontra hoje situada a chamada praia fluvial, o que resta do vasto rossio oportunamente usurpado pelos políticos da época por maneiras ridiculamente ardilosas.

Lembro-me bem que os moços sentiam a protecção de um respeitado ancião da vila, conhecido por Ti Mário e que era o Sr. Mário Vicente, um agricultor e homem de bem muito considerado na vila e redondezas.

Também este costume se esvaiu no decorrer dos tempos mas ainda vivem na vila pessoas que o praticaram com regularidade.

As tarefas a que nos reportámos estão completamente extintas, mas ficaram reminiscências do dormir ao relento.

Quando em 1987 restaurei uma casa situada num monte da freguesia de Alcoutim e que desde essa data comecei a frequentar assiduamente, a população era mais do dobro da actual.

Havia três dias que eu e minha mulher, e isto no mês de Agosto, não conseguíamos dormir, nem de dia, nem de noite pois o calor abafado era sufocante e se fazíamos uso da “ventoinha”, ainda nos sentíamos pior.


[Hotel ***]

Cerca da meia-noite resolvemos dar uma volta pelo monte. Para nosso espanto verificámos que grande parte da população dormia nos pátios e nas varandas. Disse para a minha companheira, já encontrei a solução.

Cheguei a casa, peguei num colchão e estendi-o no pátio das traseiras da casa. : - Vais dormir aí? - É claro que sim como diz hoje a minha neta de três anos. - Eu não sou capaz! - Então dorme em casa.

Passado meia-hora estava junto de mim e dormimos até às 7 da manhã. Foi um regalo.

Ainda existe um homem que quando o calor começa a apertar não dispensa dormir ao relento, mas de uma maneira geral nas varandas que existem pelo “monte”.Diz-me que opta pelas varandas para evitar a bicharada, principalmente os lacraus.

Leva duas mantas, das de trabalho, (premedeiras) que ainda existem no concelho, deixadas por mães e avós.

Deitam-se numa e a outra serve para se taparem ao raiar do dia.
Quando o encontro pela manhã, costumo perguntar:- Qual foi hoje o hotel. A resposta é imediata, foi no hotel tal (nome do proprietário da varanda!).

Aqui têm a reminiscência do DORMIR AO RELENTO!