(PUBLICADO NO JORNAL DO ALGARVE DE 3 DE DEZEMBRO DE 1976)
Um centenário é tradicional e habitualmente uma data a assinalar, tanto no que se refere a acontecimentos que nos apraz registar, como a outros que, pelo seu significado, nos obrigam a meditar.
Estamos habituados, assim, a comemorar centenários do mais variado jaez, desde a descoberta científica humanitária, passado pela data de nascimento de figura célebre, até ao fim de uma calamidade local, regional ou mundial
A velha, pequena e histórica vila de Alcoutim, pagou caro, há um século, aquilo que outrora lhe deu vida e importância, fazendo-a ombrear com as principais vilas algarvias de então: a sua posição na margem direita do Guadiana (Ana Flumen dos romanos e a que os árabes chamaram Uádi Ana), no preciso lugar onde a navegação à vela, condicionada pelo regime fluvial e dos ventos, fazia ponto (paragem forçada de seis horas aguardando o virar da maré).
A razão principal da sua existência e da importância e que desempenhou, fez passar, há um século, aquela a quem os árabes chamaram Alcatiã, por dias de verdadeira preocupação e angústia. É a esse acontecimento que nos vamos referir, baseado em documentos vários e na tradição oral.
Na época invernosa, os rios engrossam os caudais e muitas vezes transbordam, inundando os terrenos marginais. Nas regiões planas, chuvadas e degelos originam inundações que atingem grandes superfícies. Quando correm junto a terrenos montanhosos, possuem leito mais profundo e consequentemente suportam maiores volumes de água; contudo ainda que com menor frequência, também saltam para os terrenos marginais, fertilizando-os mas causando pânico e prejuízos.
Alcoutim, na margem direita do caudaloso Guadiana, que por aqui corre entre cerros, servindo de linha divisória dos dois países ibéricos, definitivamente acordada em 1297, no Tratado de Alcanises, e na confluência da ribeira de Cadavais, sempre sofreu o efeito das cheias, recentemente insignificantes e mais espaçadas, para o que tem contribuído a construção de barragens no país vizinho.
[O Guadiana. Óleo de J.V., 1988]
De todas, uma alcançou nível bastante elevado, a tal ponto que a sua altura ficou gravada em duas placas de mármore: uma na fachada principal da Igreja da Misericórdia e que tem a inscrição: A esta altura chegou a enchente do Guadiana no dia 7 de Dezembro de 1876. E a outra no edifício que serviu de cadeia, conhecido por Cadeia Velha e que diz: C. M. A. – 1876. Placas da mesma natureza encontrámos na vila de Mértola e em Vila Real de Santo António.
Ficou esta enchente conhecida entre a população por Cheia Grande.
É com frequência que os visitantes, principalmente estrangeiros, prendem o seu olhar nesses marcos indicativos de tão grande e nefasto acontecimento, admirando e chegando mesmo a pôr em dúvida a veracidade do facto.
Se ficou gravado na pedra, muito mais ficou na memória por quem passou por dias tão preocupantes.
Transmitiram-no aos filhos, em noites frias de Inverno, junto das lareiras local aproveitado então para dissertações de carácter educativo e prática de vida, pondo em relevo os maus e bons momentos e reacções consequentes. Alguns desses dados estarão deturpados pelo decorrer dos anos e pela fragilidade da memória de quem já ronda as oito décadas.
O “Portugal Antigo e Moderno”, refere-se ao facto, da seguinte maneira: O Guadiana subiu a uma altura de que não há memória. Em Espanha destruiu as pontes de Mérida e de Badajoz, datando a primeira do tempo dos romanos; em Mértola entrou no andar nobre dos Paços do Concelho a uma prodigiosa altura e, até ao mar, causou grandes prejuízos, nomeadamente no Pomarão, onde arrasou todo o povoado que ali tinha feito a empresa da Mina de S. Domingos.
No “Diária da Manhã” de 17 de Dezembro daquele ano, lê-se o seguinte: Foi medonha a cheia do Guadiana. Alcoutim está quase submergida, abatendo muitas casas. Ficou destruída a Alfândega e muitas repartições públicas.
[Cheia de 1976. Foto JV]
O correspondente de Alcoutim para a “Gazeta do Algarve”, expressa-se da seguinte maneira: O Pomarão desapareceu. Todas as casas foram arrasadas e nem se conhece o lugar onde existiam. Apenas ficaram algumas no ponto mais elevado daquela povoação. Em Alcoutim houve perdas consideráveis; em S. Lucar, aldeia espanhola na margem esquerda do Guadiana, também houve enormes perdas. Os campos de Alcoutim estão debaixo de água que entra na vila em muitas casa e quintais. As carreiras do vapor foram interrompidas. Em Vila Real de Santo António há desgraças a lamentar. Morreram onze homens, três que foram buscar madeira e viram-se perdidos na volta e oito que lhes foram acudir. As ribeiras da serra correm caudalosas e consta que têm morrido dois ou três homens e muitos outros têm escapado com grande dificuldade e perigo. Desde Mértola até Castro Marim, ambas as margens do Guadiana estavam orladas e revestidas de formoso arvoredo, nomeadamente figueiras e romanzeiras espontâneas, silvestres que, pendendo sobre o rio, não só o embelezavam, mas davam abrigo aos barcos, no Verão, e aos marinheiros, passageiros e pescadores. Tudo a cheia derrubou, deixando ambas as margens escalvadas e nuas.
[Cheia de 1976. Ribeira de Cadavais. Foto JV]
Por muitos dias se conservou a região do Guadiana coberta de água.
Depois destes dados, de carácter geral e lidos na Imprensa da época, viramo-nos concretamente para Alcoutim. Terão as actas das sessões camarárias, algo para nos dizer? Certamente que sim.
Em 21 de Dezembro e em sessão extraordinária realizada na casa onde provisoriamente devido à cheia, passaram a efectuar-se, o presidente da edilidade, José Joaquim Madeira, abrindo a sessão, relatou os tristes acontecimentos ocorridos pela extraordinária cheia do Guadiana nos dias 6 e 7, que fez desabar mais de sessenta prédios nesta vila e “montes do rio”, tornando também infrutíferas todas as fazendas marginais, por lhes haver arrebatado o arvoredo, não deixando mais do que montes de areia. E continua: Neste aflito estado, é de toda a urgência empregar todos os meios ao nosso alcance para que sejam minorados tão tristes efeitos sendo esta a razão porque convocou a vereação, a fim de deliberar o melhor convenha em assunto de tanta magnitude.
Sendo por todos reconhecida a necessidade de levar brado ante o Favor de Sua Majestade, fazendo-lhe sentir os nossos infortúnios e pedindo lenitivo às nossas desgraças, unanimemente se acordou: 1º - Pedir ao Governo um empréstimo para poderem levantar os prédios que abateram pelam inundação; 2º - Pedir o dinheiro existente no cofre de Viação Municipal e o que a ele possa pertencer durante os dez anos seguintes para a edificação dos novos Paços do Concelho, em lugar dos que caíram, 3º - Finalmente, que não sendo conveniente a edificação no local em que se achavam por estarem sujeitos às cheias do rio, se peça o castelo, onde, sem receio se pode construir, não só aqueles Paços, mas também casas para a delegação da Alfândega e outras.
[Cheia de 1997.11.06.Foto de Dr. Luís Menezes]
Destas deliberações algo foi conseguido. Os subsídios concedidos atingiram 9 926$000, cabendo à Câmara, para reconstrução dos Paços do Concelho, 1 800$000. Também foram contemplados cento e quarenta e sete agricultores que perderam sementes e cujas fazendas foram arrasadas. Neste aspecto e consequentemente no que respeita a propriedades rústicas, foi D. Ana Xavier de Brito Teixeira, a maior contemplada, visto ter sido a que sofreu maiores danos.
Foram também concedidos 500$000 para matar a fome e o frio aos inundados. A distribuição desta verba levantou forte polémica movida pelo cidadão espanhol, Miguel Angel de Lion, que mais tarde foi assassinado em circunstâncias trágicas na sua residência junto do monte do Vascão.
Veremos agora o que se passou na reunião da Irmandade da Santa Casa da Misericórdia. Também se realizou fora do lugar habitual, na sacristia da Real Capela de Nossa Senhora da Conceição, a mandato do provedor, Justo António Torres, no dia 24 de Dezembro, que expõe aos irmãos o seguinte:.. "visto os parcos fundos que a Santa Casa dispõe para os gastos a fazer na mesma em vista dos distúrbios causados pela cheia, nos dias 6, 7 e 8 do corrente, achava muito justo que se dirigissem a todas as Santas Casas do Reino, solicitando das mesmas uma esmola a fim de minorar os males que sofreu, o que foi aprovado por todos."
Os auxílios solicitados tiveram eco e, juntando o valioso contributo do Visconde de S. Domingos, a Irmandade conseguiu reedificar a igreja que reabriu ao culto no dia 18 de Janeiro de 1880, com solenidades pomposas.
Nas reconstruções, considerou que as paredes não deviam ser construídas em taipa, pois foi devido a essa maneira de construir que ruíram maior número de edificações.
[Cheia de 1997. Foto Dr. Luís Menezes]
A igreja matriz também sentiu o efeito da inundação, pois em 4 de Abril de 1878, reúne a Irmandade da santa Casa da Misericórdia que se nega a contribuir com qualquer quotização à Administração do Concelho e Junta de Paróquia desta freguesia, para as despesas da Fábrica da Igreja, visto não ter fundos que chegassem para as suas própria necessidades.
Em 1 de Março de 1877 e devido aos efeitos da cheia, resolve a Câmara acudir ao reparo da muralha que defende e resguarda a igreja matriz.
O encarregado da barca de passagem para S. Lucar, António Marques, apresentou-se na sessão camarária, pedindo abatimento na renda devido à inundação não lhe permitir fazer serviço de Dezembro a Janeiro, continuando a passagem a ser muito diminuta, pelo estado em que se achavam as margens do rio, que dificultava o embarque e desembarque. A Câmara acordou e fez abatimento (1 de Setembro de 1877).
Deixemos porém as actas que nos ajudaram a compilar os factos que descrevemos, e recorramos à boca do povo, à tradição.
O nível das águas alcançou a cruz de alvenaria da fachada da capela de Santo António; as águas corriam da Rua do Quebra-Costas (actual Dr. João Dias), para a da Misericórdia (que mantém a designação), pela Rua da Parada. Entrando pelo barranco do cemitério, chegavam ao largo da Rua Portas de Tavira (actual D. Sancho II).
Os barcos, numa tentativa de resguardo, eram amarrados às grades da cadeia e a força da enxurrada era tão grande que as cordas cediam e as embarcações lá iam, rio abaixo, sem destino.
É também tradição que a população desalojada acolheu-se à Capela da senhora da Conceição que, situada no ponto mais elevado da vila, os acolhia com maior segurança. Junto da imagem da Padroeira de Portugal oravam pedindo para que interferisse, minorando os seus males.
De tudo aparecia boiando, havendo mesmo quem se dedicasse à recolha de “despojos”, avultando sacos cheios de farinha. Flutuavam cadáveres de animais domésticos que os donos não puderam salvar pois, por vezes, até a sua própria vida esteve em perigo.
Já vimos que os “montes do rio” também foram muito martirizados. Entre o Montinho e as Laranjeiras, apareceu um cadáver humano boiando, o qual, avistado por uma mulher, foi motivo para alarme e terror das populações.
São repassadas de angústia, tristeza e terror as palavras insertas nas actas de reunião da Santa Casa e da Câmara Municipal.
[Cheia de 1997. Foto Dr. Luís Menezes]
Quero terminar este apontamento com uma referência em que episodicamente participei e que se enquadra na Cheia Grande.
Quando o então presidente do município tentou a construção da ponte sobre a Ribeira de Cadavais, velha aspiração da população das Cortes Pereiras e montes vizinhos, e para o efeito se deslocou ao local o técnico dos serviços competentes e quando tudo parecia estar bem encaminhado, ou qualquer coisa do género, reparou na placa indicativa da altura da cheia de 1876 e deu o assunto por terminado, não havendo viabilidade em tal construção.
Dias depois, cavaqueando num passeio higiénico com o nosso bom amigo relatava-me o acontecido, desabafando assim: Se tenho sabido, tinha mandado arrancar a fulano a placa.
Parece, mas não é anedota.