Poema Livre de
José Temudo
[Vista parcial de Alcoutim na década de 30 do século passado]
A CRIANÇA ZECA
Vem, Zeca
vem comigo.
Não me estranhes,
nada receies de mim.
Sou teu amigo,
sê-lo-ei até ao fim!
O coração que em ti pulsa
é o mesmo que pulsa em mim.
Porque tu és o meu
primeiro eu.
Talvez o melhor,
o mais livre,
o mais natural,
o mais sincero,
o menos convencional!
O que só nadava na margem do rio,
o que não gostava da escuridão,
o que não ia ao monte sozinho,
o que temia a solidão.
O que gostava do amigo como de um irmão,
o que na luta não pontapeava o vencido!
O que viu, seduzido,
o amigo almoçar pão e toucinho cozido!
O que viu, em silêncio, amedrontado,
corpos a boiar no rio.
O que passava pelo cemitério a correr,
sentindo na espinha um calafrio.
O que nas árvores ou no chão,
entre estevas, alecrim e rosmaninhos,
como se fosse um ladrão,
roubava ovos dos ninhos!
O que viu, sem compreender,
uma revolução a acontecer.
O que ouviu o silêncio que precede a morte,
dos que, em dia de má sorte,
vão ser pela manhã fuzilados.
O que viu e ouviu, espantado,
o relinchar do cavalo reprodutor,
cheio de entusiasmo, fremente,
montar a fêmea, aberta ao cio, obediente.
O que viu, admirado, atónito, aflito,
o nascimento de um burrito!
O que surpreendeu, sem deixar de olhar,
um homem e uma mulher a (é melhor calar...)
O que não perguntou aos Pais,
curioso, ingénuo, inocente,
Ele já sabia por demais,
Donde vinham os meninos/
O que não gostava da escola,
o que esquecia os livros na sacola.
O que gostava de jogar
à bilharda, ao berlinde, ao pião,
o que gostava de ganhar,
de ser sempre o campeão.
O que sofria quando a Mãe chorava,
o que, feliz, sorria, quando ela o abraçava.
O que ouvia falar de Deus,
de anjos, de arcanjos e de santos,
de crentes e de ateus.
O que tudo isso esqueceu,
o que ficou como nasceu!
O que saiu chorando
da terra que o viu crescer
e viver brincando,
sem saber,
sequer imaginar,
que jamais iria voltar,
àquele tempo, àquele lugar!
Vila do Conde, 31 de Dezembro de 2008.
J.T.
[Grupo de alunas com a Prof. D. Arminda. José Temudo, que não andava na escola, é o terceiro (está sentado) a contar do lado esquerdo e as duas meninas à sua esquerda são suas irmãs. Anos 30]
Pequena nota
De certa maneira já apresentei aos meus visitantes/leitores este colaborador do ALCOUTIM LIVRE que domina as vertentes poesia e prosa de uma maneira muito própria.
Neste poema o autor, colocando a memória ao seu serviço, após sete décadas passadas, rebuscando palavras simples mas muito ajustadas, dá-nos uma verdadeira panorâmica das vivências alcoutenejas observadas e retidas por uma criança inteligente e observadora.
Quem sabe o que era Alcoutim na década de trinta do século passado, encontrará aqui pontos proeminentes.
E mais uma vez o poeta termina demonstrando um grande carinho pela terra que o viu crescer e viver brincando, sem saber, sequer imaginar, que jamais iria voltar, àquele tempo, àquele lugar!
JV