terça-feira, 4 de agosto de 2009

O último carcereiro ou a morte do Senhor Jerónimo

Pequena Nota

O artigo que irão ler do nosso Amigo e colaborador, Gaspar Santos, é mais um da série que tem vindo a publicar neste blogue e com o mesmo interesse dos anteriores.
É claro que há assuntos que se prestam a uma análise mais profunda devido ao seu desenvolvimento e ao próprio conhecimento que se tem das coisas, mas o interesse é patente em todos.
No meu trabalho que vulgarmente é conhecido por Monografia de Alcoutim (1985), apresento a pág. 23 um desenho da cadeia e refiro-me esporadicamente a ela no decurso do livro.
Na altura, o conhecimento sobre o assunto era quase nulo, mas nunca foi esquecido.
Em 30 de Novembro de 1993 publiquei no Jornal do Algarve um estudo sobre a mesma e a que dei o título “A desaparecida cadeia”, inserido no Magazine que já nos dá uma panorâmica sobre ela, abordando vários aspectos que vão desde a construção em si, até às funções que teria tido, passando por alguns dos presos que albergou, funcionários que teve, indo até à função da sineta.
Os crimes mais hediondos costumam ficar na memória do povo e vão passando de geração em geração e ainda hoje se fala de alguns.
Em 2006 tive conhecimento de um crime de canibalismo passado “nos campos de Alcoutim” e praticado em 24 de Dezembro de 1909 de que nunca ouvi falar e já perguntei a várias pessoas idosas que nada me souberam dizer.
Só a ida da documentação da Conservatória para o Arquivo Distrital de Faro irá, segundo penso, possibilitar a quem o desejar, recolher mais elementos.

“O Último carcereiro ou a morte do Senhor Jerónimo “ é um assunto que desconhecia totalmente e enriqueceu o meu conhecimento sobre a temática.
Obrigado, Eng. Gaspar por mais este importante contributo.


JV






Escreve
Gaspar Santos





Morreu o Senhor Jerónimo! Morreu o Senhor Jerónimo! Foi assim de boca em boca que o triste acontecimento se transmitiu entre a miudagem que tinha por amigo este homem.

O Senhor Jerónimo, após a morte de sua mulher, vivia sozinho no primeiro andar da Cadeia. Era o Carcereiro. E foi o último. Mais tarde esta residência ainda foi ocupada pelo Marciano, um antigo pescador de Castro Marim que veio com a mulher viver para Alcoutim e também aqui faleceu. Só uma vez subi ao primeiro andar deste edifício, já no tempo do Marciano, tendo observado de perto e de cima o alçapão que dava acesso à cadeia.

O Senhor Jerónimo tivera um talho, de cuja prática lhe ficara a marca na última falange do dedo polegar esquerdo. A última falange e a unha eram bífidas. Quando o conhecemos e com ele privámos era uma pessoa simpática e disponível devido á sua pouca ocupação. Vestia sempre um fato de macaco azul e passava as tardes a pescar à linha, em geral com pescas de fundo de fio de pesca (ainda não aparecera o fio de nylon) à sombra da muralha entre os dois cais. E era aqui que a miudagem lhe fazia todas as perguntas e ele ensinava tudo sobre aquele tipo de pesca e sobre os utensílios que ele manufacturava: empatar anzóis, fazer bóias de cortiça, guizos para ampliar o sinal de peixe a picar, manobra de ajudar o peixe ferrar, etc.


Gostávamos dele. Constou que a sua morte se dera por tuberculose. O corpo do Senhor Jerónimo foi metido em caixão e colocado na Igreja de Santo António. A miudagem curiosa e por sentir já saudades do seu amigo Jerónimo teria gosto em lhe fazer uma última companhia. Mas as mães, atentas perante o pavor da tuberculose para a qual não havia remédio nesse tempo, fizeram esta séria recomendação:

Nada de irem acompanhar o Senhor Jerónimo! Os micróbios abandonam o morto e tratam de se instalar nos vivos!

[Desaparecida Cadeia. Desenho de J.V.]
E por este motivo, cheios de receio, nós só assomávamos à porta da Igreja, porque o nosso corpo ficava convenientemente entrincheirado no seu umbral. E foi assim que o Senhor Jerónimo esteve só, na morte, como tinha estado nos últimos anos de vida se não fossem os miúdos!

Quando hoje por causa da gripe H1N1 ou gripe A vemos todos os dias na televisão responsáveis sanitários e até a Ministra da Saúde a falar de uma coisa que ainda não existe ou se existe é em termos pouco significativos (mas parece que a desejam como uma espiação) a preocupação das nossas mães que pouco conheciam de epidemiologia são largamente justificadas.

Felizmente, os presos que vimos nesta cadeia, foram poucos. Podem contar-se pelos dedos. A cadeia não se destinava ao cumprimento de penas. Era uma cadeia para detenção de pequena duração de pessoa que cometera algum delito e apenas até transitar para a Judiciária ou Tribunais.

Os dois ou três casos de delitos simples que conheci deram para perceber como funcionava a cadeia. As autoridades entregavam o detido ao Senhor Jerónimo que lhe indicava uma escada de madeira para descer através do alçapão para o rés-do-chão que tinha umas grades e onde o homem ficava publicamente exposto. Depois a escada era removida e o detido não tinha por onde fugir. Essa escada por onde o detido iria sair um ou dois dias depois, não era o único elo de ligação que tinha com os outros, já que através das grades era possível passar um copo de água, um refresco ou simplesmente conversar – aspecto que suavizava o outro menos simpático da exposição pública.

Mas houve um detido por delito mais grave, o Romão, de Soudes freguesia do Pereiro, tocador de acordeão, que depois de constituir um grande problema para vários homens o conseguirem fazer descer pela escada, teve artes de fugir pelas grades. Com as unhas conseguiu arrancar uma pedra da parede e com essa pedra bateu tantas vezes nas grades que rebentou o mármore onde as grades estavam encastradas. Saiu depois pelo gradeamento que parcialmente removeu.
Ainda não fora possível dominá-lo nem impedir os danos no gradeamento, apesar das espectaculares e perigosas tentativas feitas. Homens em número e coragem suficientes para o dominar, tentaram descer por cordas e pela escada que a breve trecho se partiu. Mas antes de chegarem ao solo eram ameaçados pelo homem furioso com os restos esquirolados da escada. Era um doente mental, e só na rua, foi possível dominá-lo.

Depois desta detenção, não tenho conhecimento de que tenham procedido a outra, para este espaço.