quinta-feira, 16 de junho de 2011

O monte de Clarines (Alcoutim),de ontem e de hoje

(PUBLICADO EM STILUS, REVISTA DE CULTURA ALGARVIA, JAN/DEZ DE 2001)

[Entrada da povoação. Foto JV, 2009]

Há anos que tencionava escrever algo sobre esta pequena aldeia, na Serra Algarvia designada por monte, chegando mesmo a iniciar o escrito que acabei por não concluir.

Já fiz publicar alguns apontamentos sobre montes do concelho de Alcoutim, mas ainda nenhum da freguesia de Giões.

Todos os lugares, por mais pequenos que sejam, têm algo para se dizer, podemos é não o conhecer suficientemente bem para o fazer.

Conhecemos Clarines em 1974, quando a estrada ainda não estava asfaltada e o troço de acesso ao monte era uma miragem.

CLARINES suscitou-nos sempre uma certa curiosidade e já o visitámos várias vezes, encontrando sempre novos motivos de interesse.

Iremos começar por localizá-lo, tendo como ponto de referência a sede do concelho a que pertence - Alcoutim. Uma vez aí, tomamos a estrada nacional nº 122 - l que nos leva seis quilómetros andados ao Cruzamento ou Quatro Estradas. Seguindo em frente, tomamos a estrada nacional 124 e percorridos oito quilómetros passamos pela aldeia de Pereiro. Continuando a rolar pela mesma estrada, cerca de dois mil metros depois cortamos à direita, seguindo a indicação toponímica de Tesouro. Entrámos na estrada municipal nº 507, estreita mas asfaltada. O movimento rodoviário é quase nulo. Passamos pelo pequeno monte do Tesouro, da freguesia de Pereiro, descemos e ultrapassamos a ponte sobre o Barranco do Malheiro que divide esta freguesia da de Giões. Pouco depois, nova povoação surge, são os Farelos. Continuando na mesma estrada, voltamos a cortar à direita tomando a pequena estrada nº 1044 (cerca de dois quilómetros) que nos leva ao monte que procuramos - CLARINES.

Ao aproximarmo-nos da pequena povoação, os terrenos vizinhos estavam limpos, isto é, desprovidos de mato.

À esquerda, o Centro de Convívio local, casa arrendada, com uma divisão e onde funcionava um televisor. (1) Era o local de reunião.

Chama-nos a atenção uma interessante moradia ao gosto regional. Baixa e de área considerável, destaca-se no telhado, de telha de canudo, engraçada e altaneira chaminé, de influência alentejana. Vidraças de quatro e seis vidros. Porta de madeira e de postigo saliente e envidraçado. O branco da cal impõe-se e a ocre amarelada faz o contraste nas cercaduras das aberturas e noutras barras.

As ruelas são estreitas e desalinhadas e ainda se pode ver um ou outro forno de cozer pão, alguns em ruína e outros praticamente desactivados, funcionando uma ou outra vez, em dias especiais e isto, enquanto houver quem o saiba fazer e já poucos são.

Igualmente é possível ver palheiros, também quase todos sem utilização. Com portas de madeira que rodam por um original sistema que consiste num buraco feito numa laje de xisto e onde encaixa, pau de azinho ou zambujo de forma curva e que se fixou às três ou quatro tábuas que constituem a porta. É claro que o sistema é utilizado nos dois gonzos. O ferrolho, igualmente rudimentar como não podia deixar de ser, a lingueta encaixa num buraco feito na pedra da ombreira. Eram todos iguais na região e de fabrico local, tendo a sede da freguesia fama de ter bons ferreiros, que aliás existiam em todo o concelho.

De referir igualmente o “boqueirão”, ou “biqueirão”, abertura rectangular feita na parede mais alta, onde o lintel é quase sempre um ou mais paus de madeira rija, com relevo para o zimbro que consideram a mais resistente ou, menos frequente, uma pedra comprida de grauvaque, aqui designado por pedra rija.

O boqueirão é fechado na sua grande maioria das vezes pela colocação harmoniosa de pedras sobrepostas e nas casas de lavradores e nem sempre, por porta de madeira nos mesmos moldes da porta de entrada. Era por esta abertura na parede (boqueirão significa grande boca ou abertura) que se metia anualmente a palha no palheiro indispensável para a manutenção dos animais. A utilização da pedra está relacionada com a sua abundância e o trabalho, visto que não pesa pois trata-se de uma tarefa realizada uma vez no ano.

Depois deste olhar, pronunciada descida leva-nos a uma baixa onde se situa a capela cuja alvura é notória.

A primeira vez que visitámos Clarines, tivemos bastante dificuldade em fazer tal descida, na altura um rudimentar caminho e a capela encontrava-se em completa ruína. Hoje, tudo é diferente. Tudo mais arranjado, mais condições de vida mas ... muito menos gente.


[Vista parcial da povoação. Foto JV, 2009]

Em frente e em posição mais elevada, a restante povoação constituindo um beco mais ou menos alinhado, casas típicas, de paredes de xisto, rebocadas nas frontarias e caiadas, onde junto das portas as malvas e gerânios floridas de cores variadas dão brilho ao local já que são misturados com cactos de troncos de configurações diferentes. Vasos de origens dispares e alguns pendentes das paredes, tornam o local bucólico. De notar ainda uma simples e interessante chaminé.

Não faltam também os ocres, com predominância do amarelado e do azul vivo para realçar as portas e janelas com barras mais ou menos direitas.

A minha atracção por este monte, penso que começou pelo topónimo, enigmático, com uma sonoridade que nos cativou e que verificámos ser único no País, pelo menos não aparece nos dicionários da especialidade que normalmente consultamos.
José Pedro Carvalho (2) admite que Clarines possa ser o plural de clarim.

[Habitação típica. Foto de JV, 2009]

É povoação muito antiga, provavelmente de origem romana ou mesmo anterior. É possível que se tenha desenvolvido a partir de um edifício religioso que se situava nas proximidades de uma capela tardo - medieval / moderna, hoje restaurada, como nos indica a Professora Doutora Helena Catarino.

A presença humana em Clarines e suas redondezas, vem de longe. O período calcolítico está representado no Cerro da Perdigôa, a cerca de 2 km da aldeia, rodeado por pequenos cursos de água, características que no seu conjunto se assemelham às do Cerro do Castelo de Santa Justa.

Os vestígios da Idade do Bronze / Ferro, situam-se na Cerca do Jogo e no Cerro das Curraladas e são representadas por cistas (vasos funerários) e materiais diversos.
Neste último local foram encontradas telhas decoradas e cerâmica comum: bordos, paredes de potes, tampas com bordo em bisel, asas e fundos planos.

O período romano é notado na Cerca das Oliveiras onde se encontraram materiais de construção e recolheram fragmentos de ânforas e de cerâmica comum.

No mesmo local está representada a ocupação muçulmana igualmente por materiais de construção e cerâmicas, destacando-se as não vidradas representadas por panelas, pucarinhos e pucarinhas. As vidradas são de cor melada, decorada a óxido de manganés.

No sítio do Reguengo, topónimo que significa propriedade do rei, foram também encontrados vestígios da presença tanto romana como islâmica.(3)

Foi recolhida uma placa epigráfica de mármore do período visigótico e estão incrustados nas paredes da capela fragmentos de elementos decorativos de calcário, de frisos ou pilastras da mesma época.

[Capela de NªSª da Oliveira ou de Clarines. Foto JV, 2009]

A minha outra atracção por este monte foi a existência da Capela de Nª Sª da Oliveira, ou Nª Sª de Clarines, por aqui se situar.´

Contra o que é habitual, situa-se numa baixa entre os dois pólos da povoação da povoação que se encontram em posição mais elevada.

Sª da Oliveira por, segundo a lenda, ter sido numa destas árvores que apareceu. No tronco da oliveira, junto à qual se erigiu, existia uma concavidade à maneira de nicho, aproveitada pelos crentes que padeciam de dores de cabeça, que lá a introduziam para assim ficarem livres desse padecimento. A fé era tanta que chegavam a levar como relíquia, pedaços do tronco.

Tinha romaria na primeira oitava da Páscoa da Ressurreição. (4)
Nos primeiros dias de 1566 já se diz que é muito antiga. É descrita como “huma soo casa pequena; as paredes são de pedra e barro desguarnecidas, madeirada

d’aguieiros, telhado de telha vãa de duas ágoas (...). O portal he d’alvenaria redondo com suas portas fechadas.

Interiormente, o altar era d’alvenaria cuberto com huns mantens e nelle huma imagem de Nossa Senhora de vulto muito velha. Tem hum çeo de quortinas de pano da terra sobre o altar. (5)

Os priores de Martim Longo achavam-se na posse immemorial de receberem e utilizarem (...) e ofertas pertencentes às ermidas da Senhora da Oliveira do monte de Clarines e de São Bento de Alcaria Queimada. (6)

Por volta dos anos cinquenta dos nossos dias, a capela estava completamente em ruína e a imagem da padroeira recolhida na igreja matriz da freguesia, colocada no altar das Almas, junto de Nª Sª das Neves, onde a admirámos. (7)

Nesta capelinha faziam-se novenas com intenção de que a chuva caísse, proporcionando melhores colheitas.

A ideia do restauro foi sempre uma constante, mas foi-se protelando até que se constituiu localmente uma comissão que, com a colaboração da Câmara Municipal, conseguiu o restauro, o que muito dignifica os clarinenses, procedendo-se a abertura ao culto no dia 6 de Agosto de 1989, após o regresso da imagem de Nª Sª da Oliveira, entretanto restaurada na cidade de Beja.

Em fins da década de sessenta rebolava numa gaveta de secretária da autarquia, uma planta para o restauro da capela que penso se terá perdido e da qual desconheço a origem.


[Imagem de Nª Sª da Oliveira. Foto JV, 2010]
Ainda que só a tenhamos visto exteriormente, parece-nos que o seu restauro procurou manter a traça primitiva e a descrição de 1566 ainda hoje a identifica de certo modo. Sabemos que tem uma pia de água benta, de pedra e muito antiga que está embutida na parede, ao lado direito da entrada.

O portal, de arco de volta inteira e de pedraria, é muito antigo e até existe uma oliveira, na sua frente, já não muito nova, mas sem buraco no tronco !
Como já dissemos, elementos arquitectónicos visigóticos foram reaproveitados nas paredes, (8) quando deviam estar num museu.

A pastorícia e a cerealicultura foram as actividades fundamentais, o que se generaliza a todo o concelho, ainda que as mulheres tenham tido fama e certamente proveito de boas tecedeiras.

Em 1771 encontrava-se manifestado gado no qual avultam ovelhas e cabras embora o número de reses (gado bovino) também seja significativo.

O capitão (de Ordenanças), Rafael da Palma Pereira é o maior manifestante, mas é igualmente importante o manifestado por José Rodrigues, Domingos Afonso e António Rodrigues. (9)

Nos princípios da década de noventa ainda havia cabras e ovelhas e uma tecedeira trabalhava linha de algodão e lã.

[Porta da Capela mantendo a pedraria original. Foto JV, 2010] A florestação deu originou a existência de viveiros de pinheiros e azinheiras.

A nível de ensino sabemos que o vereador da Comissão Administrativa da Câmara Municipal, José Teixeira, em 1934 propôs e foi aprovado, o pedir Superiormente a criação de vários posto de ensino para o concelho, entre os quais um para este monte, comprometendo-se a Câmara a fornecer o material necessário para o seu funcionamento e bem assim tomasse o encargo da casa e iluminação, enquanto funcionasse. (10)

Este pedido deve ter sido aceite e sabemos que nos fins da década de quarenta, Maria dos Santos era a regente do Posto. Nesta altura só os montes mais populosos e importantes aspiravam a possuir um posto escolar onde os seus filhos aprendessem as primeiras letras.

Este posto veio a dar origem na década de sessenta à criação de uma escola perto do monte dos Farelos que recebia as crianças deste monte e as de Clarines.


A posição fronteiriça do concelho dava origem à passagem ilegal de produtos. Em 1876 é preso em Clarines um indivíduo por crime de contrabando. (11)

[Oliveira fronteira à Capela. Foto JV, 2010]
Em 1932 o poço do monte beneficiou de grande reparação, tendo dirigido os trabalhos o lavrador José Gomes Alves. (12)

Hoje a população tem água fornecida por fontanários, dispõe de energia eléctrica e os arruamentos pavimentados em 1989. (13)

No decorrer dos tempos alguns naturais da povoação desempenharam funções de responsabilidade a nível local. Assim, José Pereira Jacinto é o Juiz Eleito da freguesia em 1854/55 e três anos depois faz parte da Junta de Paróquia

Como vem acontecendo em todo o concelho, o monte tem vindo a perder população de uma maneira muito acentuada desde a década de cinquenta.

Sabe-se que em 1839 tinha vinte fogos, sendo nessa altura suplantado a nível de freguesia por Alcaria Alta (43) e Farelos (30).

Em 1976 num recenseamento feito pelos serviços concelhios de saúde, foram-lhe atribuídos 95 habitantes, número só ultrapassado por Farelos (98).

No censo de 1991 já tinha descido para sessenta e cinco, agrupados em vinte e cinco famílias que se alojavam em vinte e nove habitações. Mantinha assim a segunda posição, continuando os Farelos em primeiro com oitenta e sete, por isso a uma distancia muito mais acentuada.

Actualmente e segundo informação de um morador, a população não chegará a duas dezenas. Caminhar-se-á a passos largos para o total despovoamento ? Esperemos que não.

Aqui fica o que foi possível compilar sobre este pequeno monte cuja origem se perde no recuar dos tempos.


NOTAS
(1)-Boletim Informativo , Delegação Regional do Sul,Faro,1989
(2)-Dicionário Onomástico Etimológico , Horizonte/Confluência.
(3)-"O Algarve Oriental Durante a Ocupação Islâmica", Helena Catarino in Al`-Ulyã ,nº6 da Revista do Arquivo Histórico Municipal de Loulé, 1997/98.
(4)-Dicionário Geográfico , Vol. 17 - 1758.
(5)- Visitações da Ordem de Santiago no Sotavento Algarvio, Hugo Cavaco, Edição da C. M. de Vila Real de Santo António, MCMLXXXVII.
(6)-Da Certidão que passou o Ver. Prior da Igreja de São Sebastião de Boliqueime, termo de Loulé, Francisco José de Barros, 11 de Julho de 1791.
(7)-Informação prestada por D. Catarina Mestre, natural de Giões e que foi professora durante muitos anos no concelho.
(8)- "Vestígios Arqueológicos", Helena Catarino, in Alcoutim - Revista Municipal nº 1, Maio / Junho / 1955.
(9)-Tomo de Manifestoz Arlam toz da Camera doz Gadoz , iniciado em 1771 (?)
(10)-Acta da sessão da C.M.A. de 29 de Novembro de 1934.
(11)-Of. nº 66 de 1 de Agosto de 1876 do Administrador do Concelho de Alcoutim.
(12)-Acta da sessão da C.M.A. de 12 de Maio de 1932.
(13)-Boletim Municipal nº 4, de Abril de 1989.