sexta-feira, 10 de junho de 2011

Velhos costumes alcoutenejos - O rabisco

Pequena nota
Esta por acaso conheço, mas como diz em Alcoutim já não é do meu tempo.
Na minha juventude o rabisco era praticado na região de onde sou natural e tinha precisamente esse nome, mas não à amêndoa que não existia em quantidade que o justificasse, mas sim à azeitona e à uva e mesmo ao melão, na lezíria.
Para cada um dos produtos havia datas respeitadas tradicionalmente e a partir das quais qualquer pessoa podia fazê-lo.
Nos tempos que correm, em Alcoutim, 90% da produção fica nas árvores e constituem um regalo para os javalis.
O Dicionário do falar Algarvio, de Eduardo Brazão Gonçalves não deixa de referir o termo com esse significado.
Um abraço.

JV







Escreve


Amílcar Felício



[Velha amendoeira. Foto JV, 2010]

Mas que raio de bicho será este, que este tipo nos vem para aqui a falar hoje, perguntarão alguns dos leitores mais jovens do Alcoutim Livre? Por curiosidade pesquisei a palavra “rabisco” no velho dicionário do Torrinha e não consegui ir além de “gatafunho” e outras coisas do género, mas também descobri por lá a palavra “rebusco” que já me transmitia alguma familiaridade fonética. Mais curioso fiquei ainda e fui ver o significado de “rebusco” quer no Torrinha quer no Dicionário Online de Cândido de Figueiredo, já que no que respeita a “rabisco” não adiantavam grande coisa.

E não é que valeu a pena! Efectivamente conclui que há muitas semelhanças entre a prática do “rabisco” e a do “rebusco”. Vejam só, “rebusco ou rebusca: procura que os rapazes ou gente do povo fazem nas vinhas, depois da vindima, para descobrir algum cacho que escapasse aos vindimadores”, ou então, “é a invasão que a gente do povo faz na Beira-Baixa aos soitos, passado o San-Martinho para se apoderar das castanhas que por acaso lá tinham ficado”. Estava encontrada noutras regiões uma prática semelhante ao nosso “rabisco” alcoutenejo.

Mas afinal de contas o que era o “rabisco” alcoutenejo?
Posso ir ao “rabisco” nos seus cercados quando as mulheres acabarem de apanhar a amêndoa? Era a pergunta sacramental que se fazia aos proprietários e que eles de uma maneira geral nunca recusavam. E assim se apanhavam os restos das amêndoas que por ali ficavam escondidas ou no restolho ou entre as pedras de xisto tão abundantes em Alcoutim. Entregavam-se aquela tarefa do “rabisco” gente miúda, mas também muita gente graúda que aproveitava a ocasião para realizar uns cobres. Seguia-se à risca o slogan do Lavoisier: na vida “nada se perde...”, por isso aproveitava-se tudo. Hoje até parece que as coisas caem do céu aos trambolhões pelo menos para alguns...

O caricato da situação era que os intermediários pagavam a amêndoa de “rabisco” a metade do preço da outra calculem, como se a qualidade fosse inferior! Maldito sistema que não perdoa quando vê oportunidade de aumentar o lucro! Mas ninguém reclamava verdade seja dita, talvez por interiorizarem que nem os terrenos nem os amendoais eram seus e que afinal de contas, tudo o que viesse era lucro.

A miudagem era useira e vezeira nesta prática e era assim que se juntavam uns patacos para a Feira. Fui ao “rabisco” muitas vezes. Recordo-me de que em adolescente “acumulava” por vezes esta tarefa com outros biscatos para juntar mais uns tostões, pois fazia uns trabalhinhos burocráticos de borla para a Câmara de que já não sei precisar do que se tratava (o quadro camarário na altura era de 5 ou de 6 pessoas no máximo, contando com o Contínuo -- o inesquecível Mestre Cândido -- com o Secretário e o Presidente!) e a contrapartida desse trabalho era fazer por vinte e cinco tostões cada requerimento a um ou outro camponês que precisasse de requerer alguma coisa, pois que de uma maneira geral eram analfabetos e lá tinham que pagar a “multa” ainda por cima. Para termos uma noção de medida daqueles tempos e dos tempos que correm, basta referir que vinte e cinco tostões era equivalente a pouco mais de um cêntimo.

[Amendoal abandonado. Foto JV]

Mas tudo isto é passado pois hoje vivemos como muitos dirão, tempos de modernidade. Efectivamente os brilhantes governos destas últimas décadas na sua tentativa de acabar com o sector primário e modernizar o país a todo o custo, foram destruindo paulatinamente quase tudo o que restava da agricultura e da pecuária, das pescas e até da marinha mercante e das indústrias transformadoras etc. a mando da União Europeia e esta em troca, generosamente ofereceu-nos de bandeja por meia dúzia de patacos a sua última criação – a Sociedade de Consumo -- e nós ingenuamente seguimos-lhe os seus encantos, encandeados pelo “barulho das luzes”. Transformaram-nos metade em consumidores compulsivos e a outra metade em visitantes passivos das grandes Catedrais do Consumo que enxameiam este país, na esperança de também virem a ser grandes consumidores futuros. Quase que poderemos dizer sem exagero de que os grandes valores da época actual são o consumo, “as coisas”. Deixamo-nos “coisificar”...

Do “rabisco” amigos, só já existem as minhas memórias e as de mais uns quantos. Até quando?
A agiotagem financeira e o FMI parece que já andam por aí a fazer o controle e a cobrar a factura. Será que os vamos ter que aturar para o resto dos dias das nossas (dí)vidas? Será que esta gente ainda nos vai pôr outra vez ao “rabisco”?