Escreve
Gaspar Santos
O cão que acompanhava o meu Pai a caçar, que guardava a casa e que muito brincava comigo, chamava-se Tejo. O nome era necessário pois tanto a caçar como em outras circunstâncias era preciso chamá-lo de maneira inequívoca. E porque cães havia muitos. O meu cavalo chamava-se simplesmente Cavalo... Pois era único.
O meu cavalo deve ter nascido por volta de 1936. Fora concebido pelo médico Dr. Pedro Cunha, feito pelas mãos do meu Pai e também pelas mãos do Dr. Cunha. O Cavalo teve uma longa vida e divertiu muitas gerações de crianças. Não deve haver em Alcoutim homem ou mulher nascidos entre 1930 e 1960 que não o tenha montado. Na minha infância era um corrupio de outros garotos e garotas que me visitavam para montar o cavalo. A mim serviu para montar a sua garupa e... para dormir no estrado, uma vez por outra, uma sesta ou “folga” como lá se diz, enquanto minha Mãe ou irmã me balanceavam ao mesmo tempo que me contavam uma história.
O Cavalo não tinha nada de caricatural. Era uma miniatura feita à escala de um cavalo de carne e osso, como se pode ver na foto ao lado, em que eu monto o meu Cavalo e o meu Pai monta a sua égua. Era uma verdadeira obra de arte naturalista. Anatomicamente era uma reprodução de todas as curvas e saliências que exibe um cavalo verdadeiro. Uma cabeça provida de orelhas, com a crina caindo sobre uns olhos de vidro que pareciam vivos, uma boca provida de dentes mordendo o freio, um pescoço curvado encimado por fartas crinas, membros anteriores e posteriores em posição de galope forte, não faltando um rabo que tinha pertencido a um boi e cascos assentando em estrado curvo.
[Eu e meu Pai cada um em sua montada, em 1937]
No dorso o Cavalo tinha uma sela enchumaçada com os limites salientes atrás e à frente, armados de arame de aço para dar a consistência necessária e evitar o escorregamento do cavaleiro para a frente ou para trás. Para evitar o escorregamento lateral contava-se com um par de estribos e...com a perícia do cavaleiro! Para sustentar a sela tinha a competente cilha e correias passadas ao peito e ao rabo. Tinha assim estribos a condizer e rédeas a terminar no freio.
O cavalo tinha uma estrutura forte de madeira. As formas no pescoço e nas patas eram esculpidas na própria madeira, enquanto que o ventre e as ancas eram constituídas por madeira aparafusada ou pregada completada por enchimento de papel de jornal. A parte mais superficial era cartão pintado, sugerindo a pelagem.
O estrado onde aparafusavam as patas do cavalo tinha um formato encurvado que permitia balançar. O balancear fácil e com pouco esforço possibilitava que crianças de muito tenra idade fossem capazes de cavalgar autonomamente, sem necessidade que outrem os empurrassem.
Não me lembro da sua cor original nem se era de uma só cor. Mais tarde, por volta dos anos 1945 ou 1946, tendo já algumas esfoladelas foi restaurado e pintado de castanho escuro pelo meu tio Gregório.
Durante esse restauro recordo-me de ler em jornal envelhecido, que o meu tio retirou do enchimento do ventre do cavalo, uma notícia que foi, então, novidade para mim. Esse jornal noticiava que o José Luís, boxeur de Faro, tinha travado um combate. Ora o José Luís que eu conhecia dos cromos que coleccionava, era famoso pelos combates que disputava em Lisboa no Parque Mayer mas...de Luta Livre. O José Luís era um atleta algarvio de que nos orgulhávamos muito pelas suas vitórias.
Não resisto a transcrever as bonitas palavras-dedicatória do “fotografo” meu primo, escritas no verso da fotografia: Com votos de que no futuro possam andar juntos cada um em seu cavalo que ande, oferece primo, A J Patrocínio - 26-2-937
[O cavalo em 1959 montado por meu filho com 17 meses]
O meu cavalo ainda foi montado por meu filho mais velho como se pode ver na foto acima. O filho mais novo ainda o viu, parcialmente destruído, quando já não estava em condições de ser montado.
Para recordação deste brinquedo que nos divertiu tanto ficaram várias fotos. Numa aparece um zeppelin que nesse momento sobrevoava Alcoutim e que ficou como documento notável e que deu origem a um artigo que escrevi e foi publicado no Jornal do Baixo Guadiana. Ainda hoje me interrogo se o meu primo quando me fotografou teve intenção de me fazer acompanhar do zeppelin.
O meu Cavalo era, como se descreve, um brinquedo artesanal. Mas deixou gratas recordações dele e de quem o construiu!!. Gostava que os nossos filhos e netos pudessem dizer o mesmo de algum dos vários brinquedos que a sociedade de consumo (ou de desperdício) lhes coloca hoje nas mãos em grande número.
Mas havia nesses tempos outros pólos de brincadeira. Um deles era um automóvel a pedais que os saudosos irmãos Fernando e João filhos do Dr. Dias tinham no quintal e que todos nós uma ou outra vez nos entusiasmámos a conduzir.