terça-feira, 8 de setembro de 2009

A Capela de Santa Marta (a velha) e o "monte" do mesmo nome, na freguesia de Alcoutim

(PUBLICADO NO JORNAL DO ALGARVE DE 26 DE ABRIL DE 1990)



O “monte” de Santa Marta situa-se na parte norte da freguesia de Alcoutim.

Para o homem do nordeste algarvio, “monte” não significa o mesmo que no Alentejo.

Aqui, é sinónimo de povoação, lugar, lugarejo. Para o alcoutenejo, aldeia, destina-se exclusivamente a povoações sede de freguesia, com excepção da vila, como é óbvio.

De resto, tudo são “montes” ou “montinhos” e nalguns casos faz parte do próprio topónimo.

Lembramo-nos de certo dia ouvir a um balurquense, muito satisfeito, dizer que o seu monte já tinha sido elevado a aldeia, pois era assim que no jornal que tinha lido, lhe chamavam.

Mas é muito possível que, em tempos recuados o significado fosse o mesmo, uma vez que o concelho era constituído fundamentalmente por herdades, grande parte do Senhor de Alcoutim, o fidalgo João Freire de Andrade; mais tarde dos Condes, pelo casamento da filha deste com o primogénito do Marquês de Vila Real e depois, por confiscação, da Casa do Infantado e com o liberalismo, vendidas à burguesia local.

Ee abono deste ponto de vista, temos os “montes” da Palmeira, Zorrinhos, Castelhanos e Soudes, onde em todos existiram herdades com esses nomes que pertenceram aos Condes de Alcoutim. Pela mesma ordem de ideias, talvez a herdade do Vascão, que pertenceu à Capela de Nª Sª da Conceição, tivesse dado origem ao “monte” do mesmo nome, ainda que primitivamente fosse designado por Fonte Almece. Também nos parece estar relacionado com a herdade dos Coitos, que foi património municipal, o topónimo Coito, na freguesia do Pereiro.

Notam-se também alguns topónimos provenientes de antropónimos, o que dá ideia de abastados senhores possuidores de vastos domínios. Poderá estar neste, entre outros, Afonso Vicente.

Talvez esteja aqui a razão pela qual os alcoutinenses chamam “montes” às suas povoações.

É evidente que nem todos os montes teriam essa origem, como será o caso de Santa Marta, que foi buscar o nome (o que é vulgar no nosso País), à Santa da devoção das suas gentes e a quem ergueram uma ermidinha. Quando escrevemos alguma coisa sobre ela, não pensávamos que fosse tão antiga. Graças ao valioso trabalho do Dr. Hugo Cavaco (1), ficámos a saber que em 1566 já era uma “hermida … muito antiga” e a descrição feita nessa altura, identifica-se bastante com as ruínas ainda existentes.

A porta é que parece ter sofrido várias transformações e nessa altura, descreve-se como ”d`alvenaria redondo fechado com suas portas”.

De duas águas, encaniçada, paredes de pedra e barro. Altar de alvenaria e nele encontrava-se a imagem da padroeira, considerada muito velha. De tal maneira que é proposta a sua substituição nos seguintes termos: “que … fação outra imagem nova porque a que hora tem não he como deve ser”.

Certamente que não é esta a imagem que chegou aos nossos dias, pois o Dr. Francisco Lameira (2) refere-a em razoável estado de conservação, considerando-a como exemplar de boa qualidade, imagem pintada, dourada e estofada, datando-a do século XVIII.

Depois da tentativa de roubo, lá pelos meados da década de setenta, dos nossos dias, foi recolhida na Escola Primária.

Talvez por esta ter ficado devoluta, passou para o salão de convívio.

Festejada a 29 de Julho com missa solene, procissão e arraial, tudo acabou na década de trinta. Depois, foram as divergências para o seu restauro, acabando por vencer a opinião que defendia a construção de uma nova capela.


Em 1985 é noticiada a concessão à Diocese do Algarve, pela Câmara Municipal, de 480 metro de terreno para o efeito (3) e em 1986 já a avistámos de pé, mas pensamos que ainda está distante a sua conclusão.

Os santa-martenses reagiram de uma maneira diferente dos seus vizinhos de Clarines, que tiraram das ruínas a sua velhinha capela.


Santa Marta, irmã de Maria e de Lázaro. Uma antiga tradição diz que ela foi morrer na Provença (França). Curiosamente, perto da povoação de Santa Marta existiu uma herdade denominada das Provenças, zona rústica ainda hoje assim conhecida. Haverá alguma relação entre uma coisa e outra? Pensamos que sim.

A povoação e em relação aos montes vizinhos, ainda está consideravelmente habitada.

Teve sempre uma vida muito ligada a “Os Coutos” ou “Coitos do Concelho”, mais tarde designada por “Herdade dos Coitos”.

Terrenos tornados imunes por uma carta (de couto), implicavam, como privilégio mais importante, a proibição à entrada de funcionários régios. Este privilégio foi abolido na última década do século XVIII.

Em 1837 a Rainha D. Maria II, por despacho de 23 de Setembro, comunica à Junta de Paróquia do Santíssimo Salvador de Alcoutim que não lhe pode entregar os terrenos denominados - Os Coutos - , por carecer de autoridade para fazer doações de bens pertencentes a outras corporações.

Dois dias depois, a vereação municipal debruça-se sobre a propriedade que o concelho possui entre os montes de Santa Marta e do Coito, chamada os “Coitos do Concelho”, concluindo que havia de produzir mais rendimento, sendo aforada, do que andando de ração. Acordaram que a Câmara fosse em vistoria com a assistência de dois lavradores conhecedores daqueles terrenos, a fim de os demarcar e dividir em duas ou mais sortes, para assim serem aforados a quem por eles mais desse.

No dia seguinte, os membros da Câmara reuniram-se com o lavrador do monte do Coito, Joaquim Costa, tendo faltado, com legítimo impedimento, o outro lavrador designado, Lourenço Dias, do Cerro da Vinha.

Foram feitas duas “sortes” ou “quinhões”, a do Norte, pegado ao Coito e a do Sul, a Santa Marta.

Fez-se público em todo o concelho esta divisão e pelo espaço de trinta dias a contar de 1 de Outubro recebiam-se os lanços para no fim serem os quinhões aforados a quem mais oferecesse. O preço de abertura foi fixado em 12 mil réis.

Sá passados seis anos (19.06.1843) se volta a falar dos "Coitos" nas sessões municipais. A situação financeira do município é considerada grave, só de Terças devem ao estado 365$275, que têm de pagar imediatamente por haver já ordem para a citação.

Para resolver a situação alvitra-se propor superiormente a devida autorização para a venda dos foros e dos coitos do concelho.

Se assim não for, terão de o ser na mesma pelo poder judicial, para pagamento daquela dívida (Terças).

Este problema, se foi resolvido, foi-o em parte, conseguindo-se o seu adiantamento já que em 14 de Março de 1850 se volta a falar na dívida das Terças e outra.

E o curador Geral dos Órfãos neste julgado, António Pedro Teixeira (4), que em reunião camarária informa haver recebido ordem determinante para fazer entrar no Cofre dos Órfãos, todas as dívidas activas do mesmo cofre e que entre elas figura uma não pequena contraída pela Câmara, há trinta e tantos anos para o fim de satisfazer as Terças, a qual presentemente ainda monta para mais de trezentos mil réis. Pede por isso que a dívida seja satisfeita, pois se o não for, vê-se obrigado a executar a Câmara e proceder à penhora dos bens e rendimentos do concelho.

Preocupa-se o Presidente e propõe que o assunto decorra com o menor vexame para a câmara e habitantes do concelho.

Para resolver a situação foi deliberado pedir autorização ao Conselho do Distrito para a venda ou remição dos pequenos foros e venda de parte da Herdade dos Coitos (5), isto é, os terrenos que presentemente constituem os ferragiais do Coito e Santa Marta.

Em 1854, sessão de 24 de Maio, voltam os Coitos do Concelho a ser motivo importante pelo pouco rendimento que dão à Câmara. Nova proposta é apresentada e aprovada: dividi-la em pequenas courelas e ferragiais junto dos montes. Para proceder à divisão em courelas, foram nomeados Manuel Bartolomeu, de Afonso Vicente, Manuel Vilão, do Coito e Manuel Afonso Corvo, de Santa Marta.

Em 20 de Agosto a Câmara foi em “comissão” ao Coito proceder à divisão de demarcação dos ferragiais para serem arrendados. As coisas não deviam ter decorrido com muito sossego já que o Administrador do Concelho mandou levantar auto sobre os acontecimentos que tiveram lugar no monte do Coito, onde aquele povo reunido com o de Santa Marta cometeu o excesso, segundo a Câmara, de arrancar os marcos que esta tinha mandado colocar.

A Câmara agradece ao Administrador as providências que tomou para conhecer quem foram os principais membros da assuada que lhe foi feita.

Durante anos, foi posta a arrematação “as rações dos coitos do concelho” que acabou por ficar devoluta durante quatro anos” sem haver quem nella queira lavourar depois que a Câmara decidiu não dar terra de renda”.

Esta decisão municipal encontrou grande oposição por parte do povo de Santa Marta e do Coito, montes que viviam muito na sua dependência.

A Edilidade acabou por decidir o arrendamento pelo prazo de seis anos, o que foi arrematado por José António de Santa Marta, pela quantia de 40$000 réis anuais, sendo o primeiro pagamento feito por Santa Maria de Agosto de 1859.

Esta situação de arrendamento e à mesma pessoa mantém-se até 1873.



Na sessão municipal de 4 de Novembro de 1860, o presidente da Câmara, Augusto Carlos Pinto, comentou “a estreiteza e acanhamento do espaço que ocupão os Paços do Município, tornando-os insuficientes para o fim a que são destinados”. Acontece que a Câmara é obrigada a fornecer instalações para as audiências judiciais, Administração do Concelho e, agora, também para a Repartição de Fazenda, o que já foi solicitado pelo respectivo escrivão. E continua o Presidente da Câmara: “He de todos sabido que não há casas que possam destinar-se para tais funções e mesmo se as houvesse, a Câmara teria de pagar de aluguel acima de trinta mil réis anuais”.

Sabe-se que a Herdade dos Coitos, propriedade do município, está rendendo 40$000 réis, quando o seu valor intrínseco excede seguramente a 1 800$000 réis.
Se esta propriedade fosse vendida teria a Câmara 1000$000 réis para fazer um prédio com as acomodações necessárias para as repartições públicas no Largo da Praça Nova e lhe ficava ainda 800$000 réis para empregar em inscrições de juros a 3%ao ano.

Além disso ficavam-lhe os actuais Paços do Concelho que poderiam alugar-se”.

Encontrando-se presente o Administrador do Concelho, Paulo José Lopes, foi a proposta posta à discussão sendo aprovada por unanimidade, pedindo-se a “Sua Magestade” autorização para a venda da herdade e a possibilidade de aplicar a quantia que for necessária para execução daquele plano. Foi pedida também autorização para a venda do edifício onde estavam funcionando os serviços municipais e de cadeia se no novo houvesse lugar a essas dependências.

A herdade veio a ser efectivamente vendida, penso que a quem a trazia de renda, pois na sessão de 15 de Novembro de 1873 são apresentados cinco títulos de inscrição de dívida interna fundada, no valor de dois contos duzentos e cinquenta mil réis, provenientes da troca da venda da Herdade dos Coitos.

A título de curiosidade dizemos que em 1845 havia no monte de Santa Marta uma ama de leite e em 1877 faz-se apreensão de tabaco de contrabando a um indivíduo aqui residente que é enviado sob prisão para Tavira.

A construção da E.N. 122, cujas principais obras de arte ainda estavam por concluir em 1940 (6), passou mesmo ao lado de Santa Marta, o que foi um benefício considerável pelas facilidades de comunicação que adquiriu.

Em 18 de Janeiro de 1917 é pedida a criação de uma escola móvel neste monte, a que se juntariam as gentes de Afonso Vicente e do Coito. Por despacho publicado no Diário do Governo de 29 de Março, daquele ano, é efectivamente criada tal escola que funcionou em casa de Joaquim Celorico Palma, que oferecia igualmente a iluminação para a mesma e residência para o professor.

Em 28 de Fevereiro de 1935 o Presidente da Câmara informa que entre outros, foi criado um posto de ensino escolar em Santa Marta.

O edifício escolar que entretanto foi construído, encontra-se presentemente devoluto, por falta de alunos, como já se disse.

Desde 1984 que Santa Marta se pode orgulhar de possuir algo que, no concelho, só ali existe, um Atelier-Galeria que tem efectuado, além de exposições, sessões culturais destinadas a jovens (passagem de slides artísticos, música, iniciação à cerâmica artesanal, ecologia, jogos de computadores, etc.) tudo isto em plena serra algarvia.



Entre outros, já ali expuseram artistas como Kum Nam Baik, professor de arte na Universidade de Jung Kyun Kwan, da Coreia do Sul (1986), Lídia Soares Lopes, licenciada em artes plásticas (1988), Nicolau Saião (1988), Almeida e Sousa (1988) e Manuela Alegre (1989).

Aqui fica um pouco do passado e do presente do monte de Santa Marta, freguesia de Alcoutim.

NOTAS
(1)“Visitações” da Ordem de Santiago no Sotavento Algarvio, Ed. CMVRSA, 1987
(2)A Escultura de Madeira no Concelho de Alcoutim do séc. XVI ao séc. XIX (em colaboração com Manuel Rodrigues), Faro, 1985.
(3)Jornal do Algarve de 13.06.1985.
(4)Em 1842 era recebedor do Concelho e em 1855 um dos maiores contribuintes do concelho. Nasceu em Giões a 8 de Abril de 1816 e faleceu em Alcoutim no dia 11 de Novembro de 1857. Sepultado no cemitério da vila, constituindo a sepultura uma pequena obra de arte, a única do tipo existente.
(5)Acta da Sessão da Câmara de 14 de Março de 1850.
(6)O Século, nº extraordinário de 1940.