Escreve
José Temudo
Advertência
Sei, por experiência própria e com alguns amargos de boca, que a memória não funciona como uma casa-forte onde se guardam objectos e valores, e de onde, passados alguns anos, podemos levantar esses mesmos objectos e valores sem lhes notar uma qualquer diferença.
No resguardo subterrâneo onde “trabalha”, a memória age, a um primeiro tempo, como um arquivista meticuloso, classificando, ordenando, arrumando, guardando.
Mas, por vezes, a memória, vá-se lá saber porquê, age como um realizador de cinema; vai ao que está guardado, desarruma, desordena, corta aqui, acrescenta acolá, faz alinhamentos que não existiam, produz o que podemos chamar um filme. O resultado final dessa actividade, o que mais tarde vem à flor dos nossos dias, não sendo uma mentira perversa, também já não é a verdade que possa ser jurada colocando a mão sobre a Bíblia.
Com este preâmbulo, pretendo resguardar-me de algum deslize ou imprecisão que possa cometer ao trazer, à luz da actualidade, recordações de factos, de que fui testemunha, ocorridos em Alcoutim ou observados a partir de Alcoutim, no ano de 1936, tinha eu sete anos de idade.
Feita a prevenção, passemos aos factos, tal como os recordo.
O QUE A CRIANÇA VIU
Na fresca margem do rio, que as pessoas procuravam nas noites de Verão, fugindo à incomodidade das suas pequenas casas sobreaquecidas, durante o dia, por um calor escaldante, eu pude assistir, sem então lhe compreender o seu verdadeiro significado, a um estranho e espectacular acontecimento. Do outro lado do rio, na vila de S. Lúcar, os sinos da Igreja rasgaram o silêncio da noite morna e calma, tocando a rebate, de forma aflitiva e continuada. Depois, mesmo junto à linha de água do rio, acenderam uma enorme fogueira que foi consumindo, ao longo de uma ou mais horas, tudo o que sobre ela um grupo de pessoas que continuamente lhe lançavam. A gritaria era enorme, fazendo-se ouvir no lado de cá, a despeito do persistente toque dos sinos.
[Igreja paroquial de Sanlúcar. Foto JV. 2009]
Alcoutim, em peso, estava junto ao rio, vendo e comentando o que via. Assim, fiquei sabendo que os comunistas e os anarquistas tinham assaltado a Igreja, roubado os santos e os paramentos e, com eles, estavam a alimentar aquela medonha fogueira. Diziam alguns que tinha começado a guerra civil em Espanha; que não, diziam outros, que assaltos a Igrejas e Conventos já tinham acontecido noutras terras e nem por isso a guerra tinha eclodido. O certo é que, naquela noite, a violência não foi mais além. Foi depois. E nós, os que jogávamos berlinde no terreiro, à beira do rio, fomos os primeiros a dar por isso. A terra tremia sob as nossas mãos. Uns dias depois, aos tremores da terra, veio juntar-se o troar dos canhões, longínquo, assustador. Depois, cessaram os tremores de terra, deixámos de ouvir o troar dos canhões. Alcoutim, voltou à sua vida de todos os dias, à sua modorra. Que não demorou muito. Talvez uns dias; porventura, umas semanas. Apenas me lembro de que, um dia, fomos novamente despertos pelo repicar vivo e continuado dos sinos da Igreja de S. Lúcar e pela vozearia de centenas de pessoas que corriam, convergindo, aparentemente, para um determinado ponto da vila espanhola. Lembro-me de ouvir gente nossa a dizer que os franquistas tinham chegado e ocupado S. Lúcar, sem combate, pacificamente. Porém, do que se passou nos dias seguintes, retenho na memória a caça que era feita pelas nossas autoridades, auxiliadas por um civil, um zé ninguém, cujo nome ainda não esqueci, aos espanhóis que, de barco ou a nado, procuravam alcançar a nossa margem, fugindo à sanha vingativa e assassina dos franquistas.
[Sanlúcar, local junto ao barranco onde foram queimados os santos. Foto JV, 2009]
Lembro, ainda, porque o conheci, D. Sebastian, o barqueiro que fazia a ligação de S. Lúcar a Alcoutim, a quem o meu Pai, um dia, perguntou:
“D. Sebastian, de que lado está?”
“De que lado hei-de estar, senhor? “Eu sou pobre!”, respondeu.
Soubemos, depois, que tinha sido fuzilado, juntamente com os seus filhos mais velhos. O que. Aliás, aconteceu a todos quantos tinham participado ou apoiado o assalto à Igreja e à queima dos santos e dos paramentos, ou que, sendo socialistas, comunistas ou anarquistas, manifestaram publicamente a sua solidariedade ao governo da Frente Popular.
Lembro, sobretudo, o silêncio e a expectativa com que ouvíamos o arrastado e trágico dobre a finados dos sinos da Igreja de S. Lúcar, tentando sobrepor-se às descargas dos pelotões de fuzilamento.
Lembro-me, também, de ter visto chegar, algum tempo depois, ao cais de Alcoutim, vindo de S. Lúcar, uma lancha da Guarda Civil, transportando um pequeno grupo de militares. Vestiam farda verde escuro que parecia acabada de estrear. E não esqueci sequer, o característico bivaque, donde pendia um berloque ou borla que lhe dava uma certa graça. Não me lembro de ter visto muita gente de Alcoutim no cais, a recebê-los. Para além de alguns elementos da Guarda Fiscal, haveria uma dúzia de pessoas, incluindo a pequenada que, como eu e àquela hora, andavam brincando à beira rio.
[Sanlúcar, local onde se situa o cemitério. Foto JV, 2009]
Para ajudar a que tudo isto me tivesse ficado gravado na memória, aconteceu que, depois de darem uma volta pela vila, um dos militares ter pedido a um dos acompanhantes que lhe indicasse a casa onde morava o sr. Temudo. Eu ouvi a conversa e, cheio de medo, de imediato corri para casa para avisar os meus Pais sobre o que tinha ouvido.
E foi com algum alívio, que vi, momentos depois, quando eles chegaram a minha casa, os meus Pais cumprimentarem com muita simpatia um dos militares que, fiquei a saber depois, conheciam de Vila Real de Santo António, onde ele servira, durante alguns anos, na mercearia onde nos abastecíamos. O rapaz não tinha esquecido que os meus Pais tinham vindo para Alcoutim e, uma vez do lado de cá, não quis perder a oportunidade de os ver e de os cumprimentar. Há, porém, uma pergunta que a mim mesmo faço, sem encontrar resposta que me satisfaça: como se explica, numa altura em que a fronteira estava, obviamente encerrada, a vinda de um, ainda que pequeno, grupo de militares espanhóis a Alcoutim? Terão ido agradecer o “prestimoso” serviço de caça aos que, de barco ou a nado, tentavam escapar à “justiça” dos vencedores, aos pelotões de fuzilamento? Cruenta “justiça”, essa, de olho por olho, dente por dente, praticada, aliás, por ambos os lados dessa guerra fratricida!
Lembro-me, por fim, de um pequeno mas interessante facto, que me parece digno de ser contado. A vila de Alcoutim tinha Igreja, mas não tinha padre. Esta carência, ao que julgo, dever-se-ia à falta de recursos da paróquia para o seu sustento. Quando nascia, se casava ou morria alguém, chamava-se o cura de S. Lúcar para vir celebrar as habituais cerimónias. Isto satisfazia as necessidades religiosas que mais preocupavam os crentes e, diga-se sem cinismo, ficava muito mais em conta! Mas esta situação, beneficiou de um breve intervalo. Fugido aos azares da guerra e às graves implicações das opções político-partidárias e religiosas de cada um, veio parar a Alcoutim um cura espanhol, um “fraca roupa”, muito velhinho, muito debilitado, mas, também, muito simpático e bondoso. Instalaram-no numa pequenina casa, muito pobre, perto do rio, para lá do Quartel da Guarda Fiscal. Nós, a garotada, visitávamo-lo com alguma frequência, menos para o ver a ele, do que para admirarmos um casal de rolinhas mansas que ele trouxera consigo, numa gaiola. Para trás, deixou tudo, menos as suas doces rolinhas!
Permaneceu pouco tempo em Alcoutim. O vento que o trouxe, o levou, também.
Este é o testemunho prestado setenta e três anos depois da ocorrência dos factos que relatei, sujeito, por isso, a todos os percalços que referi na “Advertência”.
Vila do Conde, 16 de Agosto de 2009.
Pequena nota
Se as três colaborações anteriores deste nosso Amigo e Colega de profissão estão muito ligadas a Alcoutim, esta então bate em cheio. Tudo se passa à volta da pequena vila raiana e naturalmente da sua irmã siamesa.
Setenta e três anos depois manter tudo isto bem arrumado na memória, não é para todas as pessoas. Registar tudo isto aos 7 anos! A mim, impressiona-me.
Quando isto se passou, eu ainda não era nascido. Trinta e um anos depois a vida profissional levou-me a Alcoutim. Nesta altura estes factos ainda estavam bem enraizados na memória dos alcoutenejos que a eles assistiram. Devido ao interesse que sempre tive por estes assuntos fui tendo conhecimento praticamente de todos, excepto do cura com as suas rolinhas que neste relato nos traz a indispensável pitada de doçura.
Apercebi-me facilmente que só obtinha relatos mais abertos quando tinha um só interlocutor e ainda que no fundo “encontrássemos “ a posição política do narrador, ele naturalmente tentava encobri-la como autodefesa. “Estávamos na “democracia-salazarista” e até aqui havia gente a trabalhar directa e indirectamente para o regime político vigente.
Não digo antes, mas depois do 25 de Abril nunca encontrei nada escrito sobre este assunto.
Nunca ninguém vê as coisas da mesma maneira, mas este precioso relato irá mostrar aos jovens alcoutenejos de hoje que tenham interesse por estes assuntos, o que se passou em Alcoutim neste períodos tão difícil da vizinha Sanlúcar.
Este relato, tenho a certeza, já não se vai perder. Ficará a fazer parte da história recente de Alcoutim.
Direi ao José Temudo, pois penso que não o saberá, que pelo menos enquanto estive em Alcoutim, na Festa em Honra da Padroeira de Sanlúcar, Sta. Virgem de la Rábida, quando a procissão passava no local onde foram queimados os santos, parava, virando-se as imagens para o barranco, relembrando o acontecimento.
Apraz-me referir que este texto foi escrito propositadamente para o ALCOUTIM LIVRE
o que muito me sensibilizou e agradeço.
O seu contributo é e será importante para Alcoutim.
Um grande abraço do
JV