domingo, 20 de setembro de 2009

"Contrabando de lã" em Alcoutim nos anos 40






Escreve
Gaspar Santos




Ao longo da fronteira com a Espanha houve sempre algum comércio clandestino. Isso mesmo, Alcoutim reconhece e recorda, erigindo as estátuas do Contrabandista e a do Guarda Fiscal, em lugares destacados - um no Cais Velho e o outro no Miradouro junto ao quiosque.

Nessa época vivia-se e contavam-se muitas histórias sobre o pequeno contrabando que dava rendimento a alguns homens e servia os habitantes das duas margens da raia com os produtos transaccionados.

Para além deste, ocorreu em finais dos anos 40 uma negociata a que decidi chamar “contrabando de lã”. Vale a pena recordá-la, dadas as suas características insólitas. Na verdade nem a Espanha nem os espanhóis tinham qualquer tipo de intervenção e, por isso, em sentido estrito, não era um contrabando. Conta-se em duas palavras esta fraude que se fazia em pleno dia, com o conhecimento de toda a gente menos das autoridades portuguesas que não o “viam”.


[O Rio Guadiana visto da Lourinhã. Foto JV, 2009]

A lã espanhola é mais valorizada do que a lã portuguesa, desde o Século XVII. Por ser quase toda uma lã de fio mais fino e comprido, mais tratável nos teares sem se partir e por produzir tecidos menos encorpados e de melhor qualidade. Isto foi o resultado de uma selecção efectuada ao longo de séculos nos grandes rebanhos do interior da Espanha. Selecção essa que em Portugal não foi possível atingir nos muitos e pequenos rebanhos. Em Portugal também havia alguma lã com esta mesma qualidade, mas em pequena quantidade, não sendo a suficiente para lhe dar um preço diferenciado.

Por isso, nestes anos, os comerciantes portugueses tiveram artes de “naturalizar” como espanhola a lâ portuguesa (da melhor) para ganharem mais algum dinheiro. Assisti a isto em Alcoutim, o que possivelmente terá ocorrido em outros locais.

A metodologia era a seguinte: - lã portuguesa em bruto era acondicionada em grandes sacos e carregada “clandestinamente” na margem portuguesa em barco à vela. O barco percorria um ou dois quilómetros e vinha atracar ao cais de Alcoutim.

O mestre da embarcação pedia autorização para descarregar. O agente da Guarda Fiscal de serviço perguntava: “Que carga é essa?” E o mestre respondia: “É lã espanhola”. “Está apreendida” dizia o agente. “Nós pagamos os direitos alfandegários” dizia o mestre da embarcação.

Depois seguiam-se os procedimentos legais: - era levantado o auto de apreensão; o pagamento das taxas alfandegárias; os sacos eram selados e era-lhes pintada em letras garrafais: LÃ ESPANHOLA.

Estava consumada a fraude. A partir daqui a lã era espanhola. A mais valia era tal que dava para pagar os direitos alfandegários e ainda era mais lucrativo do que se tivesse entrado no circuito comercial como lã portuguesa. Quem ficou a perder foi o consumidor português!

Prática semelhante temos hoje com os jogadores de futebol. Questiona-se o seleccionador: “naturalizamos português este jogador se você prometer seleccioná-lo”. E em caso afirmativo naturaliza-se. Alguém, com uma certa graça, já sugeriu para a nossa selecção o nome de “Sociedade das Nações”