sexta-feira, 25 de setembro de 2009

Os alcoutenejos e a música

(Publicado no Jornal Escrito Nº 33 de Julho de 2001, p. IV, encarte do Diário do Sul de 15.07.2001)

De uma maneira geral, os escritos que venho publicando na imprensa regional sobre o passado alcoutenejo, há mais de trinta anos são alicerçados na documentação local que me tem sido possível consultar.

Certamente que em arquivos centrais muito existirá sobre o passado desta vila que na Idade Média assumia algum relevo no contexto socioeconómico do chamado Reino dos Algarves. Hoje, cidades importantes do distrito de Faro, não existiam ou não passavam de pequenos núcleos populacionais em formação que nada tinham de comparável com a nobre e bela vila de Alcoutim (1) onde em finais do século XVIII viviam vinte pessoas nobres, o maior número verificado nos quinze concelhos do Algarve. (2)

Os exilados das lutas liberais que se refugiaram principalmente na França e em Inglaterra, conheceram grupos de músicos militares que tocavam juntos, designados por Bandas e que estavam agregadas aos regimentos militares. A sua existência era muito importante, visto caber-lhes a missão, em período de guerra, com os seus acordes, elevar o ânimo para a condução à vitória e em paz manter o espírito guerreiro junto das populações, elevando assim o respeito pelos exércitos.

Ao regressarem ao País, os exilados, e com o mesmo espírito, dão azo à criação da banda Municipal de Lisboa., em 1838.

Este gosto acabou por se espalhar e muitos regimentos militares optaram por constituir a sua banda, exibindo-se com frequência nos passeios públicos, onde as populações se juntavam.

O gosto pela música foi-se desenvolvendo, criaram-se bandas civis junto de instituições locais já existentes e fundaram-se outras com a missão fundamental do ensino e da difusão da música. A estas bandas civis é hábito chamarem-se Filarmónicas.

Nos finais do século XIX, princípios do seguinte, houve um surto de desenvolvimento musical representado pela fundação de inúmeras filarmónicas por todo o País, desde as maiores cidades a pequenas aldeias. Houve e ainda há, segundo penso, pequenas terras que têm duas filarmónicas, muitas vezes conhecidas por música nova e música velha que normalmente e como é natural, mantêm grande rivalidade.

A pequena vila raiana, apesar da sua pequenez e isolamento, também pretendeu acompanhar esse surto, procurando criar uma filarmónica, fanfarra ou charanga.

Nunca encontrámos nada escrito sobre o assunto e para a organização deste pequeno artigo, recorremos, há cerca de dez anos, à memória viva de Alcoutim, o nosso bom amigo, Francisco Mateus Xavier, vulgo Afonso Costa.

Desta memória privilegiada e frontal, recolhemos os dados que passamos a enumerar.

O grande impulsionador e considerado fundador deste agrupamento de músicos (filarmónica, fanfarra ou charanga), foi o Sr. Silva (3) que desempenhou as funções de chefe de administração municipal e que nos disseram ser originário de Vila Real de Sto. António. (4) Tem isto lugar na década de vinte ou trinta do século passado.

Os ensaios decorriam na actual Rua 25 de Abril, então Rua da Igreja, numas casas que hoje pertencem à Câmara Municipal. O pároco local, originário de S. Brás de Alportel, dedicava-se ao ensino da música e contam-se “estórias” engraçadas passadas no desempenho dessa tarefa.

Indicam-nos alguns elementos desse agrupamento, como José Pedro Feliciano da Silva (flauta), filho do fundador, Virgílio Rosa, (bombardino), David da Palma (contrabaixo), Alfredo Madeira (trompa), Ti Canelas, sapateiro (caixa) e José de Orta (pratos), entre outros.


Depois de um período de declínio, a “banda” que me dizem ter-se chamado 1º de Dezembro e talvez daí o Clube 1º de Dezembro, hoje Grupo Desportivo de Alcoutim, é reorganizada e rejuvenescida por um grande músico local, Manuel Vieira, que veio a optar pelo profissionalismo, fazendo parte da categorizada Banda da Guarda Nacional Republicana, com o posto de 1º Sargento.

Nessa altura, davam a sua colaboração, entre outros, António Joaquim Felício Júnior, (trompa), Leopoldo Vicente Martins, (clarinete), Virgílio Rosa Cavaco, (flauta), Júlio Nicolau (clarinete), António Cavaco (trompa), Francisco Mateus Xavier, vulgo Afonso Costa (feliscorne), o seu irmão Cândido Mateus Xavier (caixa), Ti Carolino (pratos), Francisco Gonçalves Barão (1º cornetim), Custódio, mais tarde soldado da G.N.R., (2º cornetim), Alfredo Horta (contrabaixo) e Francisco Martins (barítono). Dizem-me que o conjunto deveria andar por vinte e cinco elementos.



Os ensaios agora realizavam-se onde primitivamente funcionou a Casa do Povo, conhecida por casa do Sr. Robalo, por ter sido ele que a mandou construir.

Parece que a filarmónica andava ligada a uma sociedade recreativa que mais tarde se teria fundido com outra existente, dando origem ao Clube 1º de Dezembro.

Os coretos eram os locais privilegiados para a actuação destes agrupamentos musicais e ainda existem muitos espalhados por todo o País, de uma maneira geral de base poligonal, constituindo alguns, boas obras de arte de cantaria, alvenaria ou ferrajaria. Muitos deles, estão decrépitos.

Alcoutim também teve o seu coreto de madeira, primeiro situado no Largo de Sto. António e mais tarde transferido para o Largo da Igreja (Matriz).

No 1º de Dezembro, logo pela manhã, a fanfarra percorria as ruas da vila, comemorando uma data muito significativa para este povo.

Também as procissões contavam com a sua presença, abrilhantando-as.

Referem-nos igualmente actuações em Sanlúcar do Guadiana e no Granado (Espanha) e em Odeleite.
Um funcionário da Tesouraria da Fazenda Pública que aqui faleceu e foi sepultado, teve a acompanhá-lo a filarmónica que executou uma marcha fúnebre.


Com a saída do regente, caiu novamente, acabando por se extinguir.

Nos finais dos anos sessenta ainda me lembro de ver alguns instrumentos nas mãos da garotada.

Depois da compilação destes dados, tive ocasião de os mostrar ao Sr. Francisco Martins, um dos poucos músicos na altura ainda vivos, no sentido de alguma possível correcção ao que lhe parecesse fazer e de poder acrescentar algo mais que pudesse recordar.

Respondeu-me com os olhos marejados de lágrimas que tudo o que tinha acabado de ler estava correcto e só a leitura lhe avivou a memória, concluindo:- O Afonso Costa tem uma memória excepcional, só ele se podia lembrar de tudo isto!
Tive ocasião de acompanhar no ano transacto o Sr. Francisco Martins à última morada, no cemitério da vila onde nasceu.

De todos os músicos referidos, penso que só o meu informador é vivo, ainda que com a saúde bastante debilitada e com os seus noventa anos.

Já que nada existe escrito sobre o assunto, aqui fica este depoimento que é capaz de ter algumas imprecisões e que tem bastantes lacunas para o que pretendíamos, mas … algo fica para os vindouros.

Este escrito é seu, Sr. Afonso Costa, limitei-me a passá-lo para o papel.

Os alcoutenejos lhe agradecem.

NOTAS

(1) José Victor Adragão, Algarve Editorial Presença, Novos Guias de Portugal.

(2) Hugo Cavaco, Vila Real de Santo António – Reflexos do passado em retratos do presente (Contributos para o estudo da história vila-realense), 1997, pág.259.

(3) Pensamos tratar-se de José Vasco da Silva.

(4) Informação prestada por D. Belmira Lopes Teixeira, alcouteneja há muito falecida.