(Jornal Escrito Nº 34 de Setembro de 2001, p. IV, encarte do Diário do Sul de 15.07.2001)
Se a história se escreve com base em documentação fidedigna de origens diversas e nem sempre fácil de obter e classificar, o conhecimento de um povo em que tem de se considerar variadíssimos aspectos, hábitos, costumes, tradições e muitos mais, nem sempre constam dos arquivos locais, se a palavra arquivo se lhes pode empregar, os poucos existentes onde a humidade ataca e a bicharada lavra, isto para não contar com a destruição pura de documentação importante e motivada pelos mais variados aspectos.
Como pequeno exemplo, ainda hoje por todo o país e se nos reportarmos ao período liberal é fácil verificar a falta de fólios em muitos tombos e nomes e palavras aspadas, tudo isto para evitar provar determinadas situações que se pretendiam encobrir.
Se é possível fazer desaparecer tal documentação, a memória viva de um povo permanece pois, ainda que vá sofrendo a deturpação natural do vivente, transmite-se (ou transmitia-se) de pais para filhos (quando os pais falavam com os filhos e estes os ouviam), de geração em geração.
É claro que nestes exemplos há pessoas mais notórias do que outras, o que tem a ver com a sua capacidade de memorizar, a permanência prolongada, o espírito de observação e de crítica, o apego à terra, a desinibição ou a frontalidade.
Todas as pequenas terras do país ainda contam (por quanto tempo?) com pessoas destas que nos ajudam a compreender melhor situações do presente relacionando-as com o passado.
Na minha experiência de assuntos deste tipo tem-me sido possível algumas vezes confirmar a memória do cidadão através do documento o que me tem ajudado, noutras situações, a compreendê-las. O grau de fidelidade na informação é muito variável e tenho encontrado gente com grande poder de imaginação que divaga conforme a disposição de momento pelo que são poucos aqueles que me merecem ou mereciam alguma confiança, o que testei ao longo de trinta anos.
O título deste escrito diz que ENFRAQUECEU A MEMÓRIA VIVA ALCOUTENEJA e para nós assim efectivamente aconteceu. No passado dia 1 de Junho, aos noventa anos e na vila onde nasceu e que acrisoladamente amou, finou-se o nosso amigo Francisco Mateus Xavier.
Conseguimos na última fase da doença, visitá-lo duas vezes o que muito nos sensibilizou. Mantendo-se lúcido, quando lhe perguntámos se nos conhecia e não podendo falar, respondeu com um leve sorriso, como quem diz, então não havia de conhecer!
Senão a mais, era sem dúvida das pessoas mais conhecidas em todo o concelho não sendo ignorado nos concelhos limítrofes. Tinha a preocupação de conhecer toda a gente e quando a sua vila era um beco sem saída e pouco frequentada, quem lá aparecesse tinha que pagar um certo tributo pois Francisco Xavier convicto que era pessoa do concelho ou de familiares daqui oriundos, logo as procurava para saber de quem se tratava e se não conhecia os pais, tinha conhecido os avós, as relações de parentesco, se tinha havido casamento ou ajuntamento, começava a desbobinar factos alguns desconhecidos de quem os ouvia. Aquelas pessoas já não saíam da sua memória e quando as voltasse a ver lá estava ele a cumprimentá-las a perguntar por este e por aquele e transmitindo as últimas notícias.
Assisti a muitas situações destas e quando estávamos perto não nos deixava de meter na conversa, fazendo a nossa apresentação nos termos que entendia.
Passando quase toda a sua existência na terra natal, em novo não deixou de dar umas voltas pelo País, principalmente com ligações à vida marítima. Falava com precisão das terras onde tinha estado e das pessoas com quem mais tinha contactado, referindo nomes e datas com segurança.
Fez o serviço militar lá para os lados de Lisboa e relatava-nos factos passados no seu regimento que estavam em conexão com os do País.
De uma memória privilegiada, ajudou-nos a esclarecer muitas situações e deu-nos pistas que nos levaram ao conhecimento de outros assuntos. Tive várias oportunidades para confirmar as suas informações através da documentação e se nalguns casos havia pontos menos precisos, noutros eram puras fotocópias.
Francisco Mateus, que era filho de alcoutenejos e de que conheci dois irmãos, não teve vida fácil e desempenhou um sem número de actividades, sempre auxiliado pelo precioso labor da sua Angelina, mãe dos seus quatro filhos. Casal de poucos recursos mas de grande coração pois criaram com o mesmo amor dos filhos uma neta e uma sobrinha que não distinguiam.
A sua alma grande passou pela perda do filho mais novo que pereceu no Guadiana muito novo e da filha. Quis também o destino que acompanhasse na morte a sobrinha que criou, falecendo no mesmo dia.
Foi estivador, vendedor pelos montes de peixe do rio que transportava num burrinho, pescador, embarcadiço, trabalhou na construção civil e na agricultura, foi caiador possivelmente ainda teria tido mais actividades – era o que calhava.
O seu temperamento nunca deu azo a uma vida estável que podia ter usufruído. Quando as coisas por qualquer motivo não corriam bem, era o primeiro a tomar decisões pedindo contas ao patrão e partindo para outro lado procurando novo rumo.
Frontalidade e irreverência foram sempre seu apanágio. Ainda que em moldes diferentes, deixou cá sucessor.
Não admitia a ninguém que falasse mal da sua terra, a melhor do Mundo!
Dirão os alcoutenejos que nos lerem, mas eu não conheço o Francisco Mateus Xavier! Pois não, mas conhecem certamente o Afonso Costa, epíteto que lhe ficou da infância quando na praça da vila deu vivas até enrouquecer ao político republicano, alcunha que sempre aceitou sem qualquer contrariedade. Ainda hoje a grande maioria das pessoas só o conhecem por esse nome. Sabendo eu que ele era o destinatário, nunca tive dúvida em fazer-lhe pagamentos nesses termos.
AFONSO COSTA é um alcoutenejo a não esquecer.
Aqui ficam em sua homenagem estas simples palavras.