sexta-feira, 6 de novembro de 2009

Recordar um alcoutenejo - João Baltazar Guerreiro

Estatura média, para o forte. Barriga um pouco saliente. Feições gradas, olhos grandes, cabelo preto e hirto. Um timbre de voz não vulgar e inconfundível.

Devia de andar na casa dos quarenta.

O cachimbo e as fumaças caracterizavam o seu porte. Vestia sempre fato completo.

Conheci-o logo que cheguei à vila de Alcoutim em 1967. Já lá vão uns bons anos!

Era natural do concelho, mais propriamente do monte de Alcaria Alta, onde nasceu em 1926.

É na sede da sua freguesia, a aldeia de Giões, que faz a 4ª classe sendo sempre bom aluno.

As dificuldades em todo o país eram muitas e em Alcoutim, pelo que se conhece, ainda era pior. Poucos conseguiam fugir da ocupação agrícola ou do pastoreio para a casa ou para o patrão.

Quem possuía uma arte já estaria um pouco melhor mas a diferença não era muita. João Guerreiro aprendeu com os pais a arte de tecelão. Teciam linho com que se faziam toalhas de rosto, lençóis, colchas, etc. A lã dava origem a belíssimos cobertores e mantas, entre outras peças.

Nesta altura a freguesia de Giões era a mais têxtil do concelho com teares rudimentares espalhados por todos os montes, havendo igualmente na aldeia grande actividade nesta arte artesanal como já tenho tido oportunidade de referir noutras ocasiões.

Depois, como pessoa sempre interessada em saber coisas novas, aprende a técnica da destilação e instalou um alambique no monte natal onde destila principalmente medronho e figo.

Pelos 24 anos procura companheira, com quem casa e foi buscar a um monte relativamente perto, mas da freguesia de Vaqueiros. Foi a mãe de seus filhos e um pilar onde sempre se apoiou.

Chegou à Vila de Alcoutim para tomar posse do lugar de Aferidor de Pesos e Medidas da Câmara Municipal o que veio a acontecer em 21 de Julho de 1952 e onde vencia uma ridícula importância mensal. Verdade seja que não cumpria o horário normal do funcionalismo, pois não ganhava para isso por um lado e o trabalho igualmente não o justificava. Ia à Câmara quando era preciso e não mais.

Tinha contudo o serviço anual de aferição que se realizava no princípio do ano, se não estou em erro e que naturalmente efectuava percorrendo todo o concelho.

Deslocava-se diariamente de Alcaria Alta, à vila e só por volta de 1958 se fixou na sede do concelho com a família. Monta entretanto uma pequena relojoaria, consertando e vendendo relógios em nome da esposa já que como funcionário não a podia possuir. Isso acontece numa pequena casa situada na Rua Portas de Mértola e onde paga 60$00 de renda.

Cerca de um ano depois muda-se para a Rua do Município onde é hoje o Bar Miragem e parte do Minimercado Soeiro, onde igualmente fixa residência.

Tendo sido posto em venda o edifício comercial que foi desde tempos imemoriais a chave do comércio da vila, sendo no século XIX propriedade da Família Torres, passando depois para a Família Serafim, foi a esta que João Baltazar Guerreiro o adquiriu.

[JBGuerreiro no seu estilo inconfundível despachando um café no seu estabelecimento comercial. O cachimbo lá estava]
Quando conheci o estabelecimento comercial compunha-se de mercearia e venda, vendendo também relógios, rádios, balanças e fogões a gás, que eu me lembre.

Como já aqui informei, numa pequena divisão que tinha porta para a Rua Dr. João Dias, montou um pequeníssimo café com duas ou três mesas e em que a máquina só tirava um café de cada vez.

O Café veio pouco tempo depois a motivar toda a reorganização do espaço comercial, pois foi o ramo que passou a ocupar maior espaço, já com uma máquina moderna e com dez ou doze mesas.

Se não estou em erro, pertenceu a João Baltazar Guerreiro, que usava muito na escrita e na palavra JBGuerreiro, a iniciativa de mostrar a televisão acabada de chegar, o que não era fácil devido a muitos condicionalismo, que já aqui referi, de ordem técnica e geográfica. Funcionava nessa altura na parte alta da vila, na Rua D. Sancho II, em casa que foi de Leopoldo Martins um aparelho de TV, havendo cadeiras para as pessoas se sentarem, pagando-se por isso 1$00 que revertia a favor da Santa Casa da Misericórdia. A imagem era naturalmente muito deficiente mas mesmo assim tinha sempre casa cheia.
Fui lá duas ou três vezes, uma delas para ver o famoso Zip Zip, com Raul Solnado, Fialho Gouveia e Carlos Cruz. A instalação deste aparelho teve por base o interesse e desenvolvimento de JBGuerreiro.


[Carteira de fósforos que me ofereceu JBGuerreiro, cuja capa reproduzia o seu jovem filhote que todos conheciam por Guerreirinho e que mantenho intacta]
Ainda há poucos anos tive conhecimento que também tinha sido ele que no moinho da Pateira, perto de Afonso Vicente, instalou antena e aparelho dando assim oportunidade às pessoas desta zona, que na altura eram muitas, de ver pela primeira vez imagens televisivas. Pagavam, segundo o meu informador, 1$00.

Numa destas tarefas, vieram jantar à vila para depois continuar a sessão. Por precaução, decidiram tapar o gerador com uma serapilheira. Ao regressarem para continuar o trabalho, como o motor estava quente, a saca ardeu queimando a máquina. Ficou realizada a sessão da noite!


João Guerreiro teve sempre tendências para estas coisas: relógios, máquinas fotográficas, rádios, televisores, fogões, etc.


[Velho Fiat de JBGuerreiro]
Dos seis automóveis então existentes na vila, um deles era o seu Fiat .



Foi João Guerreiro que teve a iniciativa nos primeiros anos da década de 60 de fomentar a edição de uma colecção de postais representativos da vila, o que até aí nunca tinha acontecido

[Postal de Alcoutim editado por iniciativa de JBGuerreiro]

Ainda que a escolaridade fosse a própria da época (4ª classe), João Guerreiro gostava de ler e com isso ia aprendendo, já que era uma pessoa inteligente. Depois punha em prática o que aprendia para admiração dos outros. Dizia muitas vezes:- Isso é fácil de fazer, é preciso é ter as coisas que por vezes não se arranjam. Era um “engenhocas” no sentido positivo do termo.

Tinha também outros interesses, talvez menos conhecidos e de que eu me apercebi com alguma admiração. Gostava de saber as coisas do passado, interessava-se pela história, arqueologia, pelas lendas, pelos monumentos, velhas minas, etc. e algumas pistas sobre determinados assuntos foram-me dadas por ele.

Como já aqui referi foi na sua mão que vi pela primeira vez uma parte do livro do Visconde de Sanches de Baêna, Famílias Nobres do Algarve, 1900, que eu então desconhecia completamente. Mostrou-me também um código de justiça que penso ser do começo do período liberal e outras velharias que agora não posso precisar.

Não era fácil encontrar nessa altura na vila uma pessoa que se interessasse por estes assuntos.

Era no seu estabelecimento comercial, por deferência do casal Guerreiro, que para o efeito me mandavam chamar e que eu ia atender as chamadas da minha então namorada.
Os telemóveis estavam ainda muito distantes!

Era um “bon vivant”, adorando um petisco com os amigos e que tinha muitas vezes lugar na rua, frente à porta do primitivo café. Tudo servia para a petisqueira para se beber um copo e onde nunca faltava, porque também era admirador, as cantorias, ora os cantares alentejanos que praticava, ora o fado tanto de Lisboa como de Coimbra, conforme os convivas se ajeitavam e havia sempre quem fizesse uma perninha. Isto por vezes entrava pela noite dentro, com os naturais protestos da D. Cesaltina.

João Guerreiro era um homem solidário e não me esqueço que em 1970 quando fui levar a minha mulher para nascer o meu filho, no regresso, nas descidas da ponte da Foupana, saltou uma roda ao táxi e se nada de grave aconteceu, foi porque não calhou.

Tendo-se sabido isto na vila, João Guerreiro meteu-se no carro com o Dr. João Dias e foram ao nosso encontro para o que fosse necessário. Encontrámo-nos ao Celeiro. Nunca me esqueci disto.

Em conversas recatadas, mostrou sempre a sua discordância com o regime político vigente.


[Estabelecimento comercial na Praça da República e pertencente aos Hºs de JBGuerreiro, 2009]

Exerceu durante alguns anos as funções de tesoureiro da Santa Casa da Misericórdia de Alcoutim.

Foi correspondente do jornal diário O Século.

Em 1972 e após a saída do Dr. João Lopes Dias, de quem era amigo, para S. Brás de Alportel, resolveu pedir a sua transferência para a Câmara Municipal de Loulé, onde já tinha um vencimento compatível e possibilidades para os filhos continuarem os estudos.

Aqui se reformou em 1990, tendo falecido nove anos depois.

A última vez que com ele contactei foi no Convívio de Naturais do concelho de Alcoutim na Amora, penso que em 1986, onde me desloquei a convite da organização e onde ele tinha ido também com o Dr. João Dias.

Recordar aqui este alcoutenejo é uma pequena e justa homenagem que lhe prestamos.



Nota Breve
Agradeço à Família, nomeadamente a sua filha Odília e viúva D. Cesaltina, a colaboração prestada.