terça-feira, 24 de novembro de 2009

Os aguadeiros em Alcoutim

Pequena Nota
Dentro do que é peculiar no nosso Amigo e colaborador Eng. Gaspar Santos, faz chegar a quem não conheceu, como se praticava em Alcoutim o fornecimento domiciliário do precioso líquido.
Permita-me o nosso colaborador que faça aqui uma pequena referência mas que consideramos bastante elucidativa. A rede subterrânea pouco depois da sua instalação, deixou de funcionar por falta de manutenção, ficando “calcinadas as torneiras de ligação.
Constou-me igualmente que o esquema da rede tinha desaparecido da Edilidade e quando existia, ninguém a sabia interpretar. Isto dava origem a que quando havia qualquer rotura, fechava-se o depósito e pronto, ficava a vila totalmente sem água pois pelos motivos referidos não era possível fazer os cortes adequados, reduzindo as limitações.
O poço do Pego do Corvo foi um total fiasco e cedo se recorreu ao velho poço das Figueiras que ia aguentando o fraco consumo da vila.
Lembro-me que num ano de seca, também este falhou e então recorreu-se à nora da família Soeiro que com altruísmo cedeu a água à vila mas que a Câmara cobrou com a agravante do próprio dono da água a ter de pagar.
Isto não é anedota, é verídico pois o caso passou pelas minhas mãos!
Não estava em causa a quantia, mas a acção.
O Eng. Gaspar já não vivia por estas alturas em Alcoutim.

JV





Escreve
Gaspar Santos






No dia de todos os Santos falei com um dos últimos aguadeiros de Alcoutim. É o Barão. Não por título mas de sua graça. Até 1965 o Pai Francisco Barão, ou a Mãe Almerinda Lopes, ele ou os irmãos transportaram água do Poço das Figueiras até nossas casas. Mas não foi só esta família que se dedicou a esta tarefa. Também os irmãos António e José Brandão e o Manuel Afonso assim fizeram.

Sobre o dorso de uma besta colocavam umas zangarilhas metálicas com quatro cântaros de folha zincada para 25 litros de água cada. Depois de enchidos no poço, eram transportados pelo animal até cada um dos seus clientes certos. Cobravam dois escudos e cinquenta centavos por cada carga, contando com o despejo para as vasilhas do freguês. Este preço era, portanto, de 25 escudos por m3. Esta actividade não era desconhecida do fisco a cuja colecta estavam sujeitos.

Sem disporem de animal e equilibrando um cântaro à cabeça havia ainda algumas mulheres que exerciam esta tarefa da venda de água ao domicílio. Lembro-me da Tia Mariana dos Ramos e da filha ainda viva Maria Tomásia, mas é possível que houvesse mais.


[Aguadeiro]

No ano de 1965 a Vila passou a ter fornecimento de água às suas casas e esta actividade acabou, excepto para alguns mais tradicionalistas que não aceitaram imediatamente a água vinda por canos.

Antes disso as pessoas sacrificavam-se a ir buscar a água potável ao poço ou compravam-na aos aguadeiros. Em períodos normais tínhamos o Poço das Figueiras.

Havia outros poços em que a água, por diferentes motivos, não era tão boa. Eram o Poço Novo e o Poço do Cemitério que hoje não existe e se localizava no sítio onde está a ETAR.

O Poço das Figueiras, cuja água as pessoas consideravam muito boa, não reunia as melhores condições higiénicas. Tinha mais de quatro metros de diâmetro a céu aberto, onde podiam cair folhas, poeira e até excrementos de pássaro. Era aquilo que se designa por fonte de chafurdo. A água era retirada por meio de caldeira atada a uma corda e levantada directamente a braço. Mais tarde, alguns anos antes de haver saneamento básico, o poço foi coberto por placa de betão e equipado com uma bomba manual. Teve que esperar pela Revolução de Abril e pela falência do novo poço aberto na confluência das Ribeiras de Alcoutenejo e de Cadavais, para ser equipado com motor eléctrico e, associado a alguns outros furos, integrado no sistema de abastecimento de água à Vila.

Para águas sanitárias e outros usos menos exigentes as pessoas recorriam ao Rio Guadiana ou a um ou outro poço de que pudessem dispor mais perto.

Com alguma frequência, quando a água das marés vivas era mais elevada e permitia a navegação das lanchas até junto donde hoje é a Praia Fluvial, havia barqueiros como o Senhor Alfredo, ou os irmãos Balbinos que iam abastecer-se de água. Levavam rapazes e raparigas que também iam buscar água ou que aproveitavam o transporte por simples passeio ou pela galhofa.

Seja como for, de barco, a pé ou “a cavalo” em besta, ir ao poço era sempre divertido para os mais novos. A custo içavam o balde de água, mas das bocas e das línguas jorrava facilmente um caudal de risos, ditos ou canções. Era o convívio. Era muitas vezes o pôr a conversa em dia, era o namorico.

Também me lembro de um ano, salvo erro 1953, em que choveu com muito pequena intensidade mas continuamente durante cerca de três meses. As pessoas já choravam porque era um dilúvio que lá vinha. Uma grande cheia do Guadiana inundou todas as hortas da Ribeira e todos os poços. Qual foi o recurso para abastecimento da Vila?
A seguir às portas de Mértola, os buracos de escoamento, no muro onde hoje estão os lindos desenhos do Carlos Luz, transformaram-se quase todos em bicas. E bastava colocar neles uma folha de piteira, para com facilidade canalizar a água para os recipientes. Quem mais exigisse na qualidade da água ia um pouco mais adiante e abastecia-se em qualquer buraco nas rochas que afloravam ao lado da estrada logo a partir do celeiro do trigo.

[Poço das Figueiras. Foto JV, 1973]

No entanto, não era necessária uma grande enchente do Guadiana para que o Poço da
Figueiras ficasse submerso de água turva ou “ludra”, como lá se diz. Uma simples subida da água da Ribeira ou uma enxurrada do Barranco das Figueiras, no leito do qual se situa o poço e a água logo ficava turva e imprópria para consumo. Então as pessoas iam abastecer-se do precioso líquido a uma várzea em frente do poço, pertencente ao Senhor Robalo ou, se esse também estava coberto de água suja, as pessoas iam abastecer-se a uma nora, em cota mais alta, pertencente ao Senhor José Peres, situada no mesmo Barranco das Figueiras.

Assim era, nesses tempos mais recuados. Depois, a partir de 1965 com o início do abastecimento domiciliário de água, as coisas melhoraram. Como infra-estruturas havia um sistema de Poço próximo da confluência das duas Ribeiras de Cadavais e do Alcoutenejo, um depósito no Serro da Eira, canalizações entre eles e ainda linha e motor eléctricos. Ainda tínhamos alguma intermitência no abastecimento, pois o sistema eléctrico não foi equipado para arrancar automaticamente, quando o depósito baixava de nível. Por isso, se o depósito esgotava a horas a que o encarregado José Rosa Pereira não podia deslocar-se ao distante poço, para carregar no botão de reabastecimento, estava-se durante a noite e até parte do dia seguinte sem água.

Depois do 25 de Abril a Câmara Municipal melhorou o abastecimento à custa de vários furos e da Barragem próximo de Corte Tabelião (que parece não ter provado muito bem do ponto de vista da qualidade da água).

Agora, desde há uns três anos, estamos bem servidos com boa água, na Vila e creio que em todo o concelho. Ela provém da Barragem de Odeleite que, associada à Barragem do Beliche, abastece todo o Sotavento do Algarve. Habitando um concelho onde chove pouco, os alcoutenejos podem no entanto orgulhar-se de a maior parte da boa água da Barragem de Odeleite resultar de chuva que se precipita no seu concelho.