Pequena nota
Mais um interessante facto que o nosso colaborador e Amigo, Eng. Gaspar Santos rebuscou na sua privilegiada memória e que transpôs para o papel.
Vários ensinamentos se colhem deste texto, conforme os parâmetros pelo qual o pautamos.
Se tivesse tido conhecimento do facto não o deixaria de referir no nosso trabalho, “A Freguesia do Pereiro (do concelho de Alcoutim) «do passado ao presente»”, Edição da Junta de Freguesia do Pereiro, 2007.
Escreve
Gaspar Santos
Castro Fernandes regressava das aldeias com os sacos do correio na bicicleta. Pedalava suavemente nas rectas da achada. Numa das primeiras curvas em que uma mudança no relevo do terreno anuncia a descida para o barranco a poente da aldeia do Pereiro deparou com uma dança de dezenas de abutres que, inchados e pesados, ensaiavam umas corridas e bater de asas tentando levantar voo no meio da estrada como se fossem máquinas voadoras. Castro Fernandes teria 14 ou 15 anos. Assustou-se com o cenário e o grasnar destes necrófagos. Fez barulho, tocou a campainha do velocípede. Não se atreveu a passar pelo meio deles. Saiu da estrada com a bicicleta à mão, e cheio de medo fez um grande desvio e retornou à estrada mais adiante.
Quando chegou a Alcoutim disse a seu Pai. Este pegou na espingarda e foi dar-lhes caça. Mas já não os encontrou. Tinham conseguido levantar voo.
O abutre sendo uma ave carnívora de grande porte, não ataca animais vivos. Mas tem uma admirável capacidade olfactiva para detectar os animais mortos. Basta que se dê no campo a morte de ovelha, porco ou outro animal e os abutres começam logo a pairar no alto por cima do cadáver. Comparecem no local na quantidade estritamente necessária para não ficarem com fome. Não caçam pulgas com espingarda! Se o morto é um coelho para quê virem três abutres?
Como necrófagos prestam um bom serviço eliminando fontes de epidemias que as moscas podem transmitir.
O que se tinha passado para haver tantos abutres na estrada?
Nesse tempo, ao contrário do que se passa nos dias de hoje, ainda se tosquiavam as ovelhas. Tosquiavam as ovelhas porque a lã era uma fonte de rendimento para os agricultores. Isso ocorria uma só vez por ano, no início do Verão, para que os animais não tivessem tanto calor. Antes da tosquia, com a lã já crescida, os animais ao passarem pelo mato denso ou quando se coçavam nos troncos das árvores deixavam grandes madeixas de lã no campo.
Constatando este “prejuízo” um proprietário de rebanho pensou: “eu posso aumentar o rendimento da minha lã, evitando o desperdício daquelas madeixas se fizer duas tosquias no ano, uma em Março e outra em Setembro”. E se bem o pensou melhor o fez.
Como é costume a partir de meados de Março e durante toda a estação quente, muitos deixam centenas de ovelhas a dormir ao ar livre cercadas por rede, que se vai mudando periodicamente para fertilizar todo o terreno com os excrementos que elas produzem de noite. E este agricultor manteve esta prática mesmo depois desta tosquia extemporânea. Não contou com o fenómeno climatérico do arrefecimento nocturno que em Março ainda acontece nas achadas do Pereiro e que se sobrepôs à falta de agasalho dos animais após a tosquia.
E as ovelhas, com o frio, morreram todas.
Os abutres compareceram para desempenhar o seu papel com os máximos meios de que puderam dispor. E fizeram o seu festim! Tão farto ele foi que levantar depois voo se revelou muito difícil!