Pequena nota
Temos o prazer de apresentar mais um texto do nosso colaborador, Amílcar Felício que abrange vários episódios significativos da vida alcouteneja ou com ela relacionados.
A colaboração vai-se estendendo numa variante de assuntos e em que os autores marcam o seu estilo.
Os grandes beneficiados são os nossos visitantes/leitores.
JV
Escreve
Amílcar Felício
(Nota: este texto resulta de um conjunto de apontamentos alinhavados há já alguns anos, mas que nunca saíram da gaveta. Davam continuidade a uma série de crónicas que fui publicando no jornal do Baixo Guadiana e faziam a minha singela homenagem ao Sr. Fernando Dias, uma referência para a juventude do meu tempo. Tiravam também um pequeno retrato a preto e branco ao Portugal de então, visto pela “minha máquina fotográfica” naturalmente).
Contudo, Alcoutim depois da morte de minha mãe transformou-se numa ferida difícil de cicatrizar e assim, fui protelando e evitando tocar-lhe. Manhas que aprendemos a usar para nos defendermos quando avançamos na idade! Mas ficou-me sempre um amargo de boca por este silêncio...
O convite do Sr. Nunes – que tanto tem dado do seu tempo à nossa terra – para participar neste espaço de história, estórias e cultura alcoutenejas, não poderia deixar-me indiferente e assim, aqui vai ao “meu jeito” mais uma estória para recordar um homem, que foi como que um “irmão mais velho” para a minha geração.)
Eram as horas mais longas do dia.
Das duas às seis da tarde Alcoutim parecia um forno naquele mês de Julho talvez de 1963 ou 1964, já não me lembro ao certo, pronto a cozer-nos em lume brando e longe dos ar condicionados que se calhar nem sabíamos que existiam. Mas por estranho que pareça, ainda conservo bem vivo o cheiro delicioso da terra e dos pastos secos àquelas horas do dia.
Alcoutim tem um cheiro próprio àquelas horas da tarde e não há Verão quando lá esteja, que não seja arrastado para um passeio ao campo impróprio para cardíacos. É quase uma atracção fatal!!!
Saídos há uns anitos da adolescência, tínhamos o dia inteiro por nossa conta e os limites do que fazíamos, era tudo aquilo que a nossa imaginação conseguisse conceber. O mês de Agosto estava completamente preenchido com os peditórios e a preparação das Festas entre outras coisas. E com que responsabilidade e profissionalismo executávamos a tarefa, palmilhando desde as 7 horas da manhã por montes e vales todos os lugares do Concelho, a maior parte das vezes com sacos de trigo às costas, pois que se a abundância não era muita naqueles tempos, o vil metal era um bem ainda mais escasso.
[Festas da Vila, 1973. Foto JV]
Mas em prol das Festas, cujos lucros revertiam para a compra de uma Ambulância para
o Hospital imagine-se, toda a gente dava generosamente o que podia e muitas vezes até o que não tinha.
Refugiávamo-nos naquelas horas mortas e sufocantes, no fresco agradável das grossas e altas paredes do Celeiro aonde trabalhava o António Antunes, o Antonico Guarda-Rio como era conhecido, aproveitando a folgazita que certamente o Sr. Leopoldo não deixaria de fazer. Era ali o Quartel General da Malta, onde se reunia o núcleo duro do grupo de que faziam parte o Zé Serafim, o Arnaldo, o Antonico, eu próprio e algumas vezes o Rosairinho e aonde tudo era planeado ao pormenor.
[O velho Celeiro há muito desactivado. Foto JV, 2010]
Patuscadas, roubo de galinhas com as vítimas criteriosamente seleccionadas, jogatanas de futebol, bailaricos em Alcoutim ou nos Montes, passeios com as espanholitas, etc., etc., etc..
É verdade que já tinha deixado de olhar para o mundo de uma forma maniqueísta. Na realidade a minha ida para Lisboa em 1957 com 11 anos, tinha começado a abrir-me a pestana e já olhava para ele de maneira diferente. Já não o via tanto como um conjunto de Bons e Maus mas pressentia que existia mais qualquer coisa.... A sorte de ter encontrado um núcleo de professores de elevada estatura, contribuiu e de que maneira para me alargar os horizontes para lá do cerro da Mina, dos quais destaco o poeta Gedeeão (Prof. Rómulo de Carvalho), o Padre Alberto (o tal da Capela do Rato) (*), o professor Calado e tantos outros pedagogos que ainda recordo com carinho, mais interessados em preparar-nos primeiro para a vida e só depois ensinar-nos a físico-química, a moral ou a matemática.
Por outro lado, saído ainda menino do tranquilo aconchego alcoutenejo, embarcava numa autêntica aventura no popular e movimentado Bairro de Campo de Ourique. As idas para a brincadeira com a garotada da minha idade na Rua Tomás da Anunciação, a mando do meu tio Vieira, à espera que o ardina chegasse apregoando o Jornal República, com o dinheirinho à justa na mão para sorrateiramente comprar o Jornal e dar à soleta que se faz tarde rua acima direito à Rua Ferreira Borges, para depois virar à esquerda e a uns bons 50 metros inverter a marcha e vir pela Rua de Campo de Ourique abaixo, passando quase pelo mesmo sítio de onde tinha partido, até quase à Rua Maria Pia aonde morávamos para despistar eu nem sei bem o quê, davam-me que pensar! Não sabia bem do que fugia mas lá que fugia, fugia e fugia bem! E as noites de vigia de janela em janela enquanto o meu tio ouvia a tal rádio “que não falava verdade” (!). Como eu abria os olhos caramba, para dar conta do recado e não frustrar a confiança do meu tio! Dizia-se que eram carros pretos com umas antenas enormes e homens macabros lá dentro, que sabiam tudo o que se passava em cada andar e assim era necessário dar o alerta logo que eles chegassem, para desligar o Rádio que era proibido ouvir, senão estava o caldo entornado... Como eles vendiam bem a sua imagem de infalibilidade (!).
Possivelmente andavam disfarçados mas a verdade é que nunca vi nenhum. Mas nestas andanças, sentia a mesma adrenalina do que quando ia com o meu pai aos pássaros com os meus cinco ou seis anos e ele me mandava às 4 ou 5 horas da manhã pelo Barranco dos Ladrões abaixo, para colocar folhas de jornal nas poças que encontrasse e assim obrigar a desgraçada da passarada ávida para beber, a matar a sede no pego aonde ele estava escondido. E lá ia eu barranco abaixo, vendo em cada moita de loendreiros um ladrão, pois afinal não estava eu no barranco que era deles? Mas apesar da tremedeira não recuava, pois um homem é um homem e não vira assim a cara à luta, ensinavam-me os adultos...
[Ribeira de Cadavais ou de S. Marcos, formada pela junção do barranco dos Ladrões com o do Alcoutenejo. Foto JV, 2010]
Mas voltemos ao Celeiro e àquelas tardes escaldantes daquele mês de Julho, que passavam tão devagar...
Era impossível aos 17 ou 18 anos estar parado à espera que o tempo passasse, para mergulhar mais tarde nas águas cálidas e límpidas do Guadiana, de aonde até matávamos a sede a um ou dois metros de profundidade. E o que é que o pessoal se havia de lembrar para passar o tempo? Nem mais nem menos do que fazer um Jornal de Parede com algumas caricaturas e umas criticazinhas ingénuas à vaidade de alguns ou algumas, vaidadezinhas inofensivas é certo, mas que farão sempre parte da natureza humana.
E que sucesso teve aquele primeiro “Jornal” Alcoutenejo!!! Já se juntava muita gente à espera da hora a que era afixado, na parede da antiga Sociedade, até ao dia em que fomos intimados pelo Cabo da GNR a apresentarmo-nos no Quartel. E lá fomos nós de rabinho encolhido entre as pernas, pois a autoridade naquele tempo metia medo. Lá vem o Sr. Cabo, o Sr Cabo Alberto se a memória não me falha, e bem nos esforçámos por explicar que aquilo não passava de uma brincadeira sem maldade para passarmos o tempo e que tudo acabaria ali, mas ele já de sentença afiada comunica-nos em tom grave, qualquer coisa do género: “por causa de uma queixa e da afixação de anúncios sem licença, estão multados em não sei quantos contos de réis ou se não pagarem, 2 ou 3 meses de ‘xelindró´. Ficámos aterrados e lá fomos cada um para sua casa convencer os velhotes para ver se abriam os cordões à bolsa, pois ninguém estava interessado em ir preso. Mas nada feito. Disseram todos qualquer coisa parecida com a canção muito em voga actualmente, “quando a cabeça não tem juízo o corpo é que paga... e vocês têm que aprender”! ...
[Fernando Dias]
Em desespero de causa lá fomos como sempre, conferenciar com o Sr. Fernando Dias. Não sabíamos bem porquê – estas coisas naquelas idades sentem-se -- mas quando estávamos em apuros era com ele que íamos falar. Tomei conhecimento à distância, que assumiu as suas responsabilidades no 25 de Abril e constou-se-me que teria sido maltratado quando os cravos já murchavam. Senti partir-se-me o coração...
Ele era como um irmão mais velho que nos compreendia, aconselhava e estava quase sempre do nosso lado. Lá lhe contámos a história e a perspectiva quase certa de irmos de cana nos próximos meses.
Pergunta-nos ele do alto dos seus quase dois metros, se é que não os tivesse mesmo, na sua voz inconfundível, metalizada, segura e bem timbrada: “Olha lá Amilcar, se vocês forem presos quem é que faz os peditórios e organiza as Festas para o mês que vem”? Isso agora é que nós não sabemos, Sr. Fernando, respondo-lhe eu. “Então vão ter com o Presidente, contem-lhe a história toda e digam-lhe que se vão deixar prender, porque os vossos pais não querem pagar as coimas”!
E lá vamos nós ter com o Sr. Presidente.
O Presidente da Câmara da altura era o Sr. Sargento Corvo, o homem que nos dizia: “vá lá rapazes que no fim das Festas o Presidente oferece uma caixinha de gambias (sic!) para beberem uma cervejas”. As gambas naquele tempo tinham em Espanha um valor equivalente ao tremoço em Portugal, pois lembro-me de irmos a Sanlúcar beber umas cervejas e trazerem-nos como tapas um prato de gambas à borla. Penso que vinham das Canárias ao preço da uva mijona. Mas verdade seja dita que foi o único Presidente que tinha a gentileza de apreciar e agradecer, o nosso esforço de quase 2 meses de trabalho intenso no pino do Verão!
E lá lhe contámos a nossa história e a perspectiva negra de vermos o sol aos quadradinhos nos próximos meses... Diz-nos ele de imediato, com a confiança na voz que só o poder dá: “mas vocês estão todos malucos ou quê? Vão-se lá embora que eu trato disso !!!”
Francamente não sei o que se passou depois, mas ainda hoje estou à espera que me venham buscar para cumprir a pena...
A minha primeira vez tinha sido um êxito e o Sr. Fernando Dias, tinha-me dado uma lição de Mestre para a vida! Mas ao mesmo tempo ficava-me um sabor amargo, por descobrir que a verdade e a razão dos homens afinal, era apenas uma questão de poder!
Não era bem esta ideia que eu fazia dos adultos...
(*) Que Padre tão Corajoso Meu Deus! Foi ele que no antigo Liceu Pedro Nunes, me deu a conhecer e a muitos outros nos princípios da década de sessenta, a música do Zeca Afonso, levando religiosamente o seu velho gravador para todas as aulas. Era um Padre que arrastava multidões. Falava dos ricos, falava dos pobres, falava da vida! Falava dos nossos problemas! E o que é que preocupa sobremaneira um garoto aos 13 ou 14 anos?
Naturalmente o que é novidade para ele ou então desconhecido... sexo! Pois em todas as suas aulas reservava um período de tempo para uma pequena aula de sexologia, há 50 anos atrás imagine-se!
Retenho a ideia que martelava continuadamente sobre as diferenças comportamentais entre rapazes e raparigas, tentando sempre educar e moderar os impulsos da rapaziada: as raparigas são muito sensíveis, procuram carinho, vocês só têm sexo na cabeça, isso não está bem, moderem-se, tentem compreender as suas emoções, os seus sentimentos, os seus interesses!
Nem os Champalimaulds, nem os Espiritos Santos e outros que tais resistiam em seguir-lhe a batina naquele tempo, o que é revelador de que até a alta finança já se distanciava dos estereótipos da educação do regime.
Apareceu assassinado a tiro em 1987 perto de Setúbal (Águas de Moura) quando vinha do Algarve, por razões que nunca foram publicamente esclarecidas.