Pequena nota
Gostei da lembrança do nosso colaborador Gaspar Santos de recordar Primo Antunes como figura alcouteneja ainda que não tivesse nascido em Alcoutim.
Conheci-o relativamente bem, mas não como o nosso Amigo e Colaborador pelo que não seria capaz de o retratar com esta profundidade.
A actividade de “solicitador” referida no texto deu origem ao nosso contacto e sempre em sentido positivo pela eficiência e honestidade que sempre demonstrou.
Estas pequenas notas biográficas sobre figuras que marcaram o passado alcoutenense têm, segundo a nossa opinião, plena justificação.
Venham mais.
JV
Escreve
Gaspar Santos
Primo Antunes era Guarda-Rios. Era seu amigo e privei de muito perto com ele mas nunca percebi muito bem quais eram as suas tarefas oficiais. Ele fazia muito do seu escritório no Celeiro (quando os humores do Senhor Leopoldo lho consentiam). Ali privámos bastante pois era onde eu trabalhava. Ali escrevia à máquina o seu expediente e os trabalhos de uma espécie de “solicitador” que ele exercia nas suas horas vagas, que eram quase todas. Ajudava a esclarecer muitos assuntos que muita população analfabeta do concelho necessitava. Fazia relações de bens para as habilitações de herdeiros. E todo o tipo de requerimentos de que as pessoas precisavam. Tinha para isso um grosso arquivo de “modelos”. Vim encontrar em Lisboa, nas escadas de acesso ou na própria sala de espera dos Cartórios Notariais, umas figuras semelhantes que elucidavam quem não sabia e serviam de testemunhas em todos os actos notariais.
[Rua D. Sancho II, na Vila de Alcoutim e onde sempre viveu Primo Antunes]
Também cobrava as avenças para o Dr. João Francisco Dias. Avença era uma contribuição para uma espécie de “Serviço Local de Saúde” que o Dr. Dias tinha criado no início dos anos 30 quando veio para Alcoutim. Assim os doentes acediam aos seus serviços gratuitamente. Pagavam quando não estavam doentes, salvo erro vinte escudos por ano por cada família. Uma avença que o Dr. Dias respeitou, penso que, até ao fim da sua vida, o que equivalia a trabalhar gratuitamente para quase toda a população do concelho.
[A casa de azul foi a 1ª que a família Antunes habtou]
Foi na mão do Primo Antunes que cerca do ano de 1948 vi pela primeira vez uma esferográfica. Ele só a utilizava em usos muitos restritos, dado que as entidades públicas não o autorizavam nos documentos oficiais, receosas de que esta tinta desaparecesse com o decorrer do tempo.
Este homem era natural do Azinhal concelho de Castro Marim. Tinha formação musical teórica, o que era muito raro encontrar em Alcoutim, mesmo em pessoas que tocavam instrumentos. Ainda tentou dar-me alguma formação musical para execução em bandolim. Fez-me algum jeito como cultura geral tê-lo ouvido falar de claves, de notas breves, semi-breves, colcheias e semi-colcheias. Mas como executante nunca consegui distinguir um sol dum mi.
Era jovem quando veio para Alcoutim e deu o seu contributo ao Clube Recreativo, primeiro como rijo futebolista e, mais tarde, segundo diz o Amílcar Felício deu colaboração na pequena biblioteca.
Tive oportunidade de ver dois dos seus símbolos de autoridade como guarda-rios, que poucos em Alcoutim terão visto. O crachá que ele devia usar sempre no chapéu e não usava. A espingarda (semelhante a um canhangulo) com umas balas muito toscas de chumbo, que ele poderia usar quando em trabalho de campo. Em vez de trazer o crachá no chapéu, ele o trazia sempre no bolso, seguro a um elástico preto. E se acontecia aparecer um chefe, ele rapidamente o tirava do bolso e o colocava no chapéu para se apresentar. Era um funcionário público, guarda ao serviço da Direcção Hidráulica do Guadiana. E teria a incumbência de fiscalizar a pesca ilegal e as respectivas licenças para águas interiores (Ribeiras) e a limpeza do mato e outros obstáculos nos barrancos tais como a construção de muros. Penso que, mesmo à distância, sem muito se dedicar a visitas ao terreno, ele cumpria.
[Casa que habitava Primo Antunes quando se reformou]
Em vencimento e dignidade era equivalente a cantoneiro da Junta Autónoma das Estradas. Os cantoneiros tinham porém um certo grau de ciúmes pois os seus esforços e utilidade visível eram muito distintos.
Sendo um trabalho que pouco o ocupava, dividia esse tempo fazendo escritório nos mais variados sítios: celeiro, repartições públicas e até… nas tabernas. Por fim veio a ter um escritório no largo da “Aparada”. O tipo de trabalhos que por vezes executava, de um simples requerimento para pessoa amiga a quem nada cobrava. Morava na parte alta da Vila na Rua D. Sancho II, tendo mantido sempre um relacionamento pouco amistoso com a proprietária do prédio, pelo que depositava as rendas à ordem do Juiz da Comarca. Era uma prática que eu nesse tempo desconhecia.
Quando se reformou foi viver para o Azinhal no concelho de Castro Marim onde veio a falecer. Fica assim a lembrança desta figura de que gostávamos.