(PUBLICADO NO JORNAL DO ALGARVE DE 31 DE MARÇO DE 1994-MAGAZINE)
O concelho de Alcoutim é um dos mais pobres do país.
É aqui, em plena serra algarvia que se encontrava o mais baixo rendimento agrícola nacional: apenas quinhentos escudos por hectare, isto em relação a 1970, quando a amêndoa ainda se vendia menos mal (1), se semeava algum trigo e havia mais braços de trabalho.
Habituado à paisagem vinhateira, quando ali chegámos, sentimos a sua falta. “Vai daí”, perguntei se pelo concelho não havia vinhas, se não se fabricava vinho.
As informações e explicações dadas sobre o assunto deixaram-nos embasbacados, já que nada tinham a ver com aquilo que conhecíamos. Ficava tudo para trás do nosso horizonte!
O que então encontrámos, e já lá vão quase trinta anos, mantém-se hoje com algumas pequenas diferenças.
As pequenas vinhas existentes situavam-se nas várzeas do Guadiana, principalmente nas zonas de Premedeiros, Lourinhã, Vale de Condes e Vinagre. Eram “feitas” por mergulhia ou “atanchando” (2) varas. A reprodução fazia-se assim “directamente” e não por enxertia do bravo.
Distante das margens do rio, junto dos barrancos, onde os terrenos são mais profundos e frescos, existiam os parrões .
A vara enraizando com mais facilidade, trepava pelos loendreiros com o auxílio das gavinhas, deixando livre o terreno que se aproveitava para qualquer mimo hortícola, já que, muitas vezes, existia perto pequeno poço do qual se extraía, quando necessário, caldeiras de água para pequenas regas.
A cava e a pode constituíam o tratamento dispensado.
Quando me disseram que não se fazia a “cura”, não queria acreditar. Adquiri um pulverizador para o fazer e ofereci os meus préstimos que de uma maneira geral foram rejeitados – acreditavam que aquele líquido é que iria fazer mal às parreiras!
Hoje, a maioria já não pensa assim, pelo que a cura se faz. Há pouco me contou um amigo que quando jovem abandonou o seu “monte” indo procurar uma vida melhor, fixou-se no concelho de Palmela, grande produtor de vinho. Quando dizia que na sua terra as parreiras não eram tratadas, quem o ouvia tinha dificuldade em compreender, concluindo sempre que assim, não davam uvas.
Segundo me constou, já há quem se dedique à cultura de uva de mesa, utilizando técnicas modernas.
Já me foi dado ver, apesar do longo afastamento, pequenas vinhas “aramadas” em Santa Marta, Diogo Dias e Fonte Zambujo do Meio.
Além das doenças próprias, o alcoutenejo considera as vespas as grandes destruidoras das uvas e para o evitar, quando os cachos eram poucos, muitas vezes optava por embolsá-los, isso é, colocá-los dentro de uma parte de meia velha que de certa maneira os protegia. Até agora e em qualquer outra parte do País, nunca vi tal!
Além das “assarias”, entre outras castas tenho ouvido referir “tintilho” (sugere-me influência espanhola), “olho-de-perdiz” e “olho de lebre”.
Depois deste pequeno apontamento, em que guardámos o fabrico do vinho para um pouco mais adiante, por motivos que então se compreenderão, e em que rebuscámos a nossa memória, iremos explanar o que compilámos com algum sentido histórico, um dos apanágios pretendidos nos meus escritos.
No século XVI existem referências a variadíssimas vinhas.
Sabe-se que Lourenço Martins Orraco traz uma vinha no Pontal de que paga cada ano dez reais, António Dias, outra no mesmo local, pagando dezasseis reais, Nicolau Estevens Queimado paga, de foro pela vinha de Premedeiros, quarenta reais, outra vinha na Várzea do Moinho, explorada por André Pires e João Afonso Vilão trata de outra na Cova de Santa Maria.
Mais outras podíamos indicar na Lourinhã e nos Carreiros, Era tudo propriedade da Capela de Nª Sª da Conceição.
O vigário de São Salvador de Alcoutim tinha de mantimento, entre outros, vinte e sete almudes de vinho. (3)
Frei João de S. José (4), e também com referência ao mesmo século, faz-nos descrições e fornece-nos informações importantes sobre as vinhas e o vinho do “Reino do Algarve”.
Não vamos aqui transcrever o que o erudito frade escreveu sobre o assunto mas transmitir as ideias e uma ou outra leve transcrição para assim podermos ser mais concretos.
Diz o frade que a vinha neste “Reino” difere da de Portugal por se não cavar nem empar. Como castas importantes refere as mouriscas, de que se faz vinho e as chamadas assarias, destinadas a passas.
As uvas que se destinavam a vinho, eram postas a secar, ao sol, durante doze a treze dias. Parece que este uso teve origem nos romanos.
Quanto ao fabrico do vinho, vamos transcrever o que para o efeito considerarmos mais importante: “É pois o caso que todos os Algaravios, para fazer o seu azeite e vinho, já têm em suas casas um ou dous lagares de pau, feitos de duas ou três tábuas grossas, pesadas, muito juntas sobre ua s travessas com suas bordaduras ou torno, as quais assim juntas fazem cinco, seis palmos em largo e oito, nove em comprido, à maneira de tabuleiro, e a isto chamam eles lagar. Tem ua bica no meio duma das cabeceiras e asentam-no sobre dous banquinhos pêra isto feitos, quando se querem servir dele; e, acabado o seu ofício, encostam-no a ua parede té que o tornam a haver mister”.
“É tão fácil e maneiro este engenho que o carregam sobre qualquer besta e o levam de um cabo pêra o outro com pouco trabalho e serve de lagar de azeite e também de vinho, como o alimparem primeiro”.
“A maneira de fazer o vinho é a mesma que do azeite, de maneira que não há mais ciência nisto que meter as uvas na saca, como fica dito da azeitona e, no próprio lagar bem lavado, pisá-las muito bem e dar-lhe o arrocho té três vezes e sai o vinho limo…” (5)
O que acabámos de transcrever e que foi publicado em 1577, tem muita aplicação ainda nos dias de hoje. O alcoutinense continua a fazer o seu vinho num lagar de pau, só com a diferença do tampo constituir uma peça única e em lugar dos bancos para suporte, usam-se três pés implantados, A estes lagares de pau, chama o homem da serra queijeiras. Quando tal me disseram, pareceu-me justificar o nome como engenho onde se faziam queijos, o que, contra a nossa expectativa, não nos foi confirmado. Se alguma vez teria sido, diziam os meus informadores, ninguém se lembra dos queijos serem feitos ali; aquilo só se destinava ao azeite (o que já não acontece) e ao vinho, que ainda continua.
Após desenhar as queijeiras que acompanham para documentar este escrito e já com um segundo sentido, perguntei a um amigo, natural do distrito de Portalegre, se conhecia aqueles engenhos o que facilmente confirmou, ainda que presentemente sejam raros. Ali, no Alto-Alentejo, aqueles objectos destinavam-se ao fabrico de queijo, aliás, como o nome indica.
Parece-nos que o “lagar de pau” do litoral, e por haver muito menos produção de uva na serra, seria substituído, devido a análogos existente, pela queijeira que nessa altura serviria para fazer queijos.
Perdeu o uso, ficou o nome. No Alentejo permaneceram as duas coisas.
Conheci quem juntava ao mosto, alfarroba, o que dava ao vinho um paladar agradável e uma cor característica. O hábito de juntar frutos ao vinho virá pelo menos do tempo dos árabes.
Silva Lopes, que realizou grande trabalho monográfico sobre o Algarve, considera que as várzeas de Alcoutim são férteis e abundantes em vinhas, além de outras culturas. Afirma ainda que o primeiro trabalho que se lhe faz, é a cava junto à cepa, antes de lhe cair a parra, seguindo-se a poda, em Janeiro, voltando a cavar-se em Abril ou Maio, mas não se empam. A vindima é feita em princípios de Setembro.
As vinhas ficaram bastante estragadas e muitas deixaram de ser vindimadas em 1833 e podadas em 1834 devido à guerra civil. (6)
Em 1867 chega ao nosso país a doença da filoxera, oriunda dos Estados Unidos. Devastou as nossas vinhas principalmente na região do vinho do Porto. (7)
A filoxera era um insecto muito pequeno, do grupo dos afídios.
Em 1874 o presidente da Câmara recebe um mapa para preencher com o fim de se conhecer o estado das vinhas no concelho e da sua produção. Por ser muito técnico o seu preenchimento, não se atreve a fazê-lo, enviando contudo nota designando os sítios e milheiros de cepas em cada localidade e a sua produção em almudes. Que pena não termos conhecimento desses números e dos locais. Acrescenta ainda que a uva, sendo muito boa para comer, não o é para mosto e por isso se vende para consumo do concelho e para os portos de Vila Real e Pomarão. (8)
Em 1880 e em resposta ao Agrónomo do Distrito de Faro, o Administrador do Concelho, Manuel José da Trindade e Lima, informa que nas vinhas próximas da vila (nomeadamente uma das melhores que possui) apareceram primeiramente muitas cepas afectadas da moléstia conhecida pelo nome de “cinzeiro” (9) e mais tarde, muito antes dos calores, secaram-se todas as “espigas”, morrendo totalmente algumas cepas e ficando muitas outras sem parras. As cepas mais afectadas são as de uva branca.
Continua a informar que no dia seguinte tenciona mandar arrancar algumas cepas e observá-las minuciosamente, para ver se encontra nas raízes ao “galhos ou verrugas” que me são indicados. (10)
Efectivamente, oito dias depois, o Administrador informa que tendo examinado minuciosamente as raízes de algumas cepas, não foi possível descobrir a filoxera nem outro qualquer insecto. Posso contudo dizer com convicção que me dá a experiência de muitos anos, e continua o Administrador, que o mal aparecido este ano em muitas vinhas deste concelho e a forma horrível como foram atacadas e os estragos que nela produziu, nunca eu nem muita gente aqui viu, conclui o administrador. (11)
No final do ano comunica-se que o concelho produziu 5 250 litros de vinho, isto porque a inundação de 1876 arrancou e fez desaparecer completamente todas as vinhas que existiam na margem do Guadiana, seu local de maior implantação. (12)
Dois anos depois é constituída a Comissão Concelhia Antifiloxera, composta por sete elementos e chefiada pelo presidente da Câmara, Manuel António Torres. (13)
Em 1883 volta a informar-se que é pouca a importância vitícola do concelho, sendo a sua produção consumida em “verde”. A Comissão de Vigilância ainda não tem pesquisador habilitado para a inspecção da filoxera, nem ainda se resolveu preparar indivíduo algum para esse serviço. (14)
Na Sessão da Câmara de 5 de Julho de 1884 é deliberado convidar um indivíduo para se deslocar a Santarém a fim de estudar ou habilitar-se a conhecer a moléstia das vinhas conhecida por filoxera.
Em 1889 continua a informar-se que não se tem descoberto, por enquanto, neste concelho, o mal da filoxera, o que tem predominado com muita intensidade é o oídio que bem tem prejudicado as vinhas. Pedia o Administrador do Concelho que lhe fosse indicada a melhor5 forma de o atacar. (15)
Não tem havido plantação de vinhas e a uva produzida nos poucos bocados que há, é consumida em verde. Segundo os cálculos, importa o concelho 45 728 litros por ano. Igualmente se informa que não se fabrica aguardente no concelho. (16)
Sabe-se contudo que António Joaquim Pinto fabricava essa bebida na vila, em 1843, onde existiam oito casas públicas que a vendiam. (17)
Acabámos de referir o que conseguimos obter em trabalhos publicados e por pesquisa própria, oral e escrita, sobre a vinho caseiro, como os alcoutenejos e todos os homens da serra algarvia chamam ao pouco vinho que fabricam. Não me consta que alguma vez tivessem avaliado o seu teor alcoólico.
Na primeira metade deste século, um conhecido comerciante da praça de Mértola deslocava-se frequentemente na época de caça à parte norte da freguesia de Alcoutim. Parece que o principal motivo não era a caça mas sim o “caseiro” que muito apreciava, produzido pelo Ti Virgolino, de Afonso Vicente.
Pensamos que se houvesse um estudo adequado, os terrenos xistentos da serra algarvia podiam produzir um vinho generoso de qualidade apreciável.
NOTAS
(1) “As Serranias de Alcoutim, a mais deprimida zona portuguesa”, Roby Amorim, em O Século, de 22 de Julho de 1975.
(2) Vide Dicionário do Falar Algarvio, de Eduardo Brazão Gonçalves, 1988.
(3) Visitações da Ordem de Santiago no Sotavento Algarvio, Hugo Cavaco, 1987.
(4) “Duas Descrições do Algarve do Século XVI”, Sá da Costa, Editora, Cadernos, Revista de História Económica e Social – 3, Manuel Viegas Guerreiro e Joaquim Romero Magalhães, 1983.
(5) Idem. Ibidem.
(6) Corografia ou Memória Económica, Estatística e Topográfica do Reino do Algarve, João Baptista da Silva Lopes, 1841.
(7) História de Portugal, Vol. IX, Joaquim Veríssimo Serrão, pág. 264.
(8) Ofício nº 108 do Administrador do Concelho de Alcoutim, de 13 de Novembro de 1874.
(9) Doença provocada por certos fungos, oídios.
(10) Ofício nº 57 de 16 de Julho de 1880, dirigido ao Agrónomo do Distrito de Faro.
(11) Ofício nº 63, de 24 de Julho de 1880, dirigido ao Agrónomo do Distrito de Faro.
(12) Ofício nº 161, de 3 de Dezembro de 1880, dirigido ao Governador Civil de Faro.
(13) Acta da Sessão da Câmara Municipal de Alcoutim, de 9 de Novembro de 1882.
(14) Ofício nº 18 de 20 de Janeiro de 1883 ao Presidente da omissão Central de Antifiloxera do Sul, dirigido pelo Presidente da Câmara Municipal de Alcoutim.
(15) Ofício nº 19 de 28 de Janeiro de 1889 ao Agrónomo da 9ª Região – Lobular.
(16) Ofício nº 160 de 29 de Agosto de 1889 do Presidente da Câmara Municipal de Alcoutim.
(17) Acta da Sessão da Câmara Municipal de Alcoutim, de 22 de Dezembro de 1843.