quinta-feira, 26 de agosto de 2010

António Valério - Um amigo que recordamos

Pequena nota
O Alcoutimlivre presta hoje a devida homenagem, por intermédio do seu colaborador, Gaspar Santos e no dia da passagem do 1º aniversário do seu falecimento a um alcoutenejo de raça que a morte evitou tivesse usufruído da tranquilidade do “monte” dos seus antepassados maternos.
JV







Escreve

Gaspar Santos







Fomos amigos desde os bancos da escola primária. Depois trabalhamos juntos em duas oportunidades. Primeiro no Grémio da Lavoura em Alcoutim para onde entrei em 1945 e onde ele já se encontrava desde 1943. Mais tarde no Hospital Júlio de Matos. Também ambos fomos correspondentes de jornais. Ele escreveu durante alguns anos no Diário de Lisboa, tarefa em que por sua indicação lhe sucedeu o Senhor Leopoldo nosso chefe no Grémio. Enquanto eu escrevia para O Século.

Estávamos em 1948 e os jovens de então com o Valério na primeira fila, metemos mãos à obra, aliás duas obras muito ambiciosas, mas que ainda hoje permanecem. Foram as primeiras Festas de Alcoutim e a fundação do Grupo Desportivo de Alcoutim. Foi obra lançar uma festa de que não havia tradição, com eventos desportivos durante toda uma semana. Ele foi eleito secretário na primeira Direcção do Grupo Desportivo de Alcoutim. E, depois, ele e eu fizemos a partir dos estatutos do Benfica uma proposta de Estatutos do G.D.A. que veio a ser aprovada.

[Prédio na Vila de Alcoutim onde nasceu António Valério. Foto JV, 2010]

O Valério pertenceu àquela geração de jovens que Alcoutim não soube aproveitar, como diz Amílcar Felício e eu subscrevo inteiramente.

Ele foi dos primeiros a sair em 1949 para frequentar o curso de enfermagem psiquiátrica, que terminou com elevadas notas e empregar-se no Hospital Júlio de Matos. Os mesmos passos que por sua influência eu também segui em 1956, e vários outros alcoutenejos seguiram mais tarde.

O amigo Valério aliciou-nos. Arrastou atrás de si muitos outros com o seu exemplo e com as descrições do trabalho que exercia. Naquele tempo e talvez ainda hoje, exercer enfermagem num manicómio assustava qualquer mortal. Não têm todas as pessoas histórias fantásticas e horrorosas da violência dos “doentes mentais”? Hoje posso afirmar com toda a convicção que o estudo da psicopatologia e a prática de avaliação dos homens em sofrimento nos deram, a ele e a nós, uma dimensão da compreensão dos outros que não estará na posse da generalidade das pessoas.

Fazia a minha tropa no Campo Grande, bem perto do Hospital Júlio de Matos, quando o visitei. Ele apresentou-me a um grande número de enfermeiros, também estudantes trabalhadores. Era o Armando Glória, o Braúlio, o Manuel Estanqueiro, o Manuel Antunes, o Picanço. O primeiro e o último também algarvios.

Estudar já era nosso propósito, mas para a criação do hábito e da disciplina de estudar ajudaram-me bastante os vários contactos que a partir daqui se estabeleceram. Os estudos para que me entusiasmaram tinham além da ambição de melhorar a nossa vida, o objectivo de aumentar a nossa cultura para a qual eles já tinham um considerável avanço.

[Casa da Família Valério no "monte" da Corte da Seda. Foto JV, 2010]

O Valério era uma pessoa sempre disponível para todos os amigos. E até mesmo para aqueles que eram apenas seus conhecidos. Talvez com umas particularidades que devo referir. Por detrás de uma pessoa sóbria, low profile, algo distante, aparentando uma certa frieza, ele era de uma solidariedade imensa e de uma profunda afectividade. Por isso todos os Alcoutenejos que o conheciam se diziam amigos do Valério. Algum desses, o Valério nem sequer os conhecia. Aparentemente, ele não parecendo estimar gerava estima.

Tinha em elevado grau uma serenidade e uma grande presença de espírito. Foi graças a essa presença de espírito que mereceu um louvor concedido a nível ministerial. A dada altura ele, jovem enfermeiro, assistia alguns doentes que como tratamento realizavam algumas tarefas manuais, aquilo que se designa como ergoterapia. Dois doentes desentenderam-se e um deles preparava-se para agredir o outro com um machado de rachar lenha. “O Enfermeiro António da Assunção Valério com risco da própria vida tirou o machado da mão do doente que ia agredir outro doente”. Assim se pode ler no louvor.

Aposentou-se como enfermeiro-chefe, o posto mais elevado da carreira, que alcançou após os necessários concursos de promoção. Mas, ainda muito jovem e sem graduação profissional, a sua voz era escutada pelos médicos, uma elite por vezes distante, e a sua competência era reconhecida.

No início dos anos sessenta a administração do Hospital Júlio de Matos mandou fazer um filme de divulgação do hospital. Para acompanhar os técnicos cinematográficos foram escolhidas duas pessoas: a Dr.ª Júlia Polónio e o nosso amigo Valério. E no final, ambos em conjunto se encarregaram de visionar o filme e criar o texto para ser lido pelos profissionais da locução.

Veio a casar com Maria Isabel Pais de Sousa Pimenta funcionária da secretaria do Hospital Júlio de Matos. Deixou duas filhas e quatro netos.

[Prédio que mandou construir no "monte" dos seus antepassados maternos, onde pretendia refugiar-se e saborear a tranquilidade que o local lhe proporcionaria. Foto JV, 2010]

Era uma pessoa com uma inteligência privilegiada. Fez em poucos anos todo o Secundário, tendo frequentado sucessivamente Medicina, talvez alheia à sua verdadeira vocação e, depois, o curso de Matemáticas, com muito boas notas, que, no entanto, não chegou a completar.

Outras necessidades materiais mais urgentes devem-no ter levado a arranjar um segundo emprego, como delegado de propaganda médica e a abandonar os estudos. Foi uma pena, pois poderia ter ido muito mais longe.

Morámos sempre próximos no Bairro de Alvalade em Lisboa e quase todos os dias nos encontrávamos na rua ou no café.

Nunca deixou de visitar Alcoutim e construiu casa em Corte da Seda onde gostava de passar largos períodos e para onde chegou a mudar o domicílio oficial depois de se aposentar.

O amigo Valério que já sofria havia alguns anos de doença irreversível deixou-nos há um ano a 26 de Agosto de 2009.

Sentimos muito a sua morte que nos foi imediatamente comunicada pela viúva e sentimos ainda mais por não o pudermos acompanhar à sua última morada, devido então à minha temporária ausência.

O Blogue alcoutimlivre, no tema Viagem sem Regresso, pela pena de José Varzeano, noticiou a sua morte, começando assim:

“Só hoje nos é possível noticiar o falecimento do alcoutenejo, António de Assunção Valério, de setenta e oito anos, ocorrido no Hospital de Santa Maria,
em Lisboa, no dia 26 de Agosto último...”

Aqui deixamos a nossa recordação e homenagem a um amigo que nos deixou há um ano.