segunda-feira, 2 de agosto de 2010

Velhos usos de Alcoutim

(PUBLICADO NO JORNAL DO ALGARVE DE 3 DE FEVEREIRO DE 1973)

Pequena nota

É este o primeiro artigo que conhecemos, publicado pelo nosso saudoso Amigo no Jornal do Algarve.
Acabámos por transcrevê-lo a pp 261 a 263 do nosso trabalho,” Alcoutim, Capital do Nordeste Algarvio, Subsídios para uma monografia” Ed. CMA, 1985 pelos motivos que lá indicamos.
Temos a possibilidade hoje de enriquecer o texto com duas fotografias de dois casamentos, um realizado em 18 de Outubro de 1936, já se passaram 73 anos e o outro a que assistimos em 12 de Maio de 1968.
O primeiro referido é de D. Berta Cunha Martins, irmã de Luís Cunha, com o Sr. Leopoldo Vicente Martins há muito falecidos e o segundo dos nossos Amigos, Maria Catarina Xavier e de Francisco Coelho que felizmente estão entre nós e são todos alcoutenejos.
Presto assim uma pequena homenagem aos dois casais.

JV








Escreve

Luís Cunha




Desapareceu há anos uma interessante praxe a que obedeciam os casamentos camponeses de Alcoutim.

Com vista a assistir a todos os ritos de um que se realizava a rigor nos primeiros anos da década de vinte, para o qual éramos convidado do noivo, fomos para o monte das Cortes das Pereiras na véspera à tarde. Os convidados dele e dela, formavam em separado, como se fora luta entre bandos: quem sabe se disso não haveria reminiscência?

Ao cair da noite, o grupo de que fazíamos parte reuniu numa taberna e o outro, noutra. À lareira uns cavaqueavam relembrando peripécias passadas; ao lado disputava-se o cálice de aguardente em renhida partida de “truco” (jogo de cartas, segundo parece de paternidade algarvia mas que a juventude desconhece), e já alegrotes, alguns entravam a versalhar.

Assim se fez a fria noitada, até ao alvorecer. Pouco antes do romper do sol o grupo abalou, pé ante pé, no mais completo silêncio como quem vai a assalto ou a pilhar galinhas. Do outro grupo, nem rastos. No mesmo silêncio chegámos a casa da noiva onde um homem se destacou, batendo ao de leve sem resposta; insistiu com um pouco mais de força mas o resultado foi o mesmo, e por fim, quase violentando a porta e praguejando que aquilo mais parecia cemitério, excitou uma voz de dentro que, indignada, acusava o desacato a tais horas e inquiria o que se pretendia.



Travou-se em seguida interessante debate em verso que estamos agora a lamentar não ter escrito; dizendo-se procurador de outrem, o de fora tecia-lhe extraordinário panegírico, com exaltação das virtudes do bom tom local, habilidade inexcedível nisto e naquilo, homem às direitas em tudo o mais, o lavrar sem lobas (curvas nos regos da lavoura atribuíveis a fraqueza de pulso) e ao qual parelha alguma meteria medo, etc. etc,

Sem se deixar impressionar, o de dentro, também em verso, cortava-lhe de quando em quando a verve: que tinha bem entendido tudo mas que à rosa que ali guardava a bom recato não bastava o já dito e que apresentasse outras virtudes do pretendente, se a isso se supunha com direitos. Com trocadilhos de cá e de lá e risota geral, a versalhada continuou até ao dia romper.

Simulando surripiar-se, o noivo foi para as traseiras e enquanto procedia ao rapto da bem-amada, a barulheira aumentava dos dois lados. Para felicidade do jovem casal, a noiva devia ser por ele retirada a pulso, por uma janela térrea, sem tocar com os pés no parapeito.

De súbito, rompeu de dentro medonho escarcéu, com pedidos de socorro e rebate a ladrão. A rosa fora roubada!

Seguido por todos os outros, o jovem par fugia no mesmo cavalo, a caminho da vila, a cuja entrada parou para se formar o cortejo, como o de qualquer outro casório.


Para contar um velho uso que só por tradição conhecemos, abrimos aqui um grande parêntesis: em tempos antigos, só à terceira tentativa do padre e depois de ostensivamente muito espicaçada pela madrinha, a noiva dava o sim; de contrário, dir-se-ia estar a rebentar por casar, o que não ficava bem. Porém, um belo dia, como a noiva não respondesse à primeira, o padre António, sem mais aquelas, mandou-os ter juízo e que voltassem daí a oito dias. Escapou-se para a sacristia e o pior é que encasmurrou e nem todos os rogos e amizades da vila conseguiram demovê-lo. Consta ter sido aquela a última vez que tal prática se usou, pois daí em diante, ainda o padre não abria a boca e já tinha a resposta adiantada.

Voltando ao casório; depois das formalidades da vila, formou-se à saída o processo de regresso: a gente nova alinhou para a fogaça que consistia numa prova de perícia em que, partindo os concorrentes ao mesmo tempo, ganhava o que, chegando em primeiro lugar ao monte se apossava do “bolo” que depois oferecia ao noivo para partir. Cuida-se que isto simbolizaria a virgindade da nubente.