sexta-feira, 6 de agosto de 2010

Manuel Inácio, que fora Palmira

Pequena nota
Eu pertenço ao número de pessoas que ouviu contar esta extraordinária façanha cirúrgica, então assim considerada, do Dr. João Francisco Dias e que apesar de tantos anos passados ainda é lembrada por alguns.
O que eu sabia, era aquilo que todos contavam e em meia dúzia de palavras.
Com a publicação deste texto e não vejo outra pessoa que o pudesse fazer, acabei por compreender melhor a situação e ficar mais esclarecido.
É preciso não esquecer que o facto se passou há cerca de 70 anos, não são dois dias.

JV







Escreve

Gaspar Santos




Chamava-se Palmira e nas mãos do Dr. João Francisco Dias passou a Manuel Inácio. Não se tratou de uma mudança de sexo. Foi tão só uma cirurgia para ajudar a natureza a ultrapassar uma pequena deformação congénita.

Já tinha acabado a Guerra Mundial de 1939/45 mas as pessoas ainda viam, se não já espiões, pelo menos ainda “viam” nazis fugidos ocultando-se atrás dos mais diversos disfarces.

Foi assim que a Palmira quando passeava em Tavira umas crianças seus sobrinhos foi denunciada à GNR como suspeita de ser um homem disfarçado de mulher. É que ela, vestida como mulher, deixava ver ainda assim, uma barba bem escanhoada mas densa, apesar do lenço que quase lhe cobria a cara. E, para mulher, o seu quase um metro e setenta não eram muito usuais.

A GNR deteve-a e identificou-a. Penso que uma autoridade médica teria procedido à determinação do sexo. Depois com a colaboração do familiar que vivia em Tavira, sendo chamado a estas autoridades escolheu para proceder ao tratamento o médico cirurgião de Alcoutim, o concelho da sua residência e naturalidade, uma vez que era da freguesia de Vaqueiros.

Lembro-me da sua chegada a Alcoutim no Guadiana, o “gasolina” que fazia carreiras regulares vindo de Vila Real Santo António, para consultar o Dr. Dias.

Vinha já com o cabelo cortado e vestia fato de homem. A pele do pescoço estava muito branca pela falta de exposição ao sol. Mas cabisbaixo, ainda a estranhar a nova situação e indumentária. Ainda hoje guardo a imagem da tristeza e da vergonha deste homem.

[Dr. João F. Dias, médico cirurgião]
Em Alcoutim já era aguardado e já se conheciam as razões da sua vinda. A curiosidade era grande e por isso o número de pessoas à chegada do barco foi maior nesse dia.
O Dr. Dias depois de proceder a uma avaliação da situação cirúrgica, fez a competente operação e após algumas semanas de convalescença deu-lhe alta.

Como é normal, teve os procedimentos burocráticos junto do tribunal para alteração do registo de nascimento e de regularização da sua situação militar. Mais tarde casou e há poucos anos faleceu. Não me consta que tenha deixado descendência.



Tratava-se de uma pessoa bem-disposta e que contava com uma certa graça episódios da sua vida. Nomeadamente, que costumava ir ceifar para o Alentejo. Ceifava três regos como os homens, enquanto as mulheres só ceifavam dois. Na ceifa as grandes propriedades tinham dois dormitórios, num dormiam as mulheres e noutro os homens.

Quando era Palmira, naturalmente dormia com as mulheres. Também falou dos namorados que teve, etc.

Esta é uma história com um duplo final feliz. Manuel Inácio ultrapassou uma situação sexualmente ambígua. Uma sua irmã que lhe dava apoio durante o tratamento, iniciou um namoro com o José Caleja de Alcoutim com quem veio a casar.

Este assunto foi público e publicado nos jornais. No jornal O Século para o qual eu então escrevia como seu correspondente, esta notícia foi ali publicada com fotografia cedida por ele e cuja publicação autorizou.