Pequena nota
Eu pertenço ao número de pessoas que ouviu contar esta extraordinária façanha cirúrgica, então assim considerada, do Dr. João Francisco Dias e que apesar de tantos anos passados ainda é lembrada por alguns.
O que eu sabia, era aquilo que todos contavam e em meia dúzia de palavras.
Com a publicação deste texto e não vejo outra pessoa que o pudesse fazer, acabei por compreender melhor a situação e ficar mais esclarecido.
É preciso não esquecer que o facto se passou há cerca de 70 anos, não são dois dias.
JV
Escreve
Gaspar Santos
Chamava-se Palmira e nas mãos do Dr. João Francisco Dias passou a Manuel Inácio. Não se tratou de uma mudança de sexo. Foi tão só uma cirurgia para ajudar a natureza a ultrapassar uma pequena deformação congénita.
Já tinha acabado a Guerra Mundial de 1939/45 mas as pessoas ainda viam, se não já espiões, pelo menos ainda “viam” nazis fugidos ocultando-se atrás dos mais diversos disfarces.
Foi assim que a Palmira quando passeava em Tavira umas crianças seus sobrinhos foi denunciada à GNR como suspeita de ser um homem disfarçado de mulher. É que ela, vestida como mulher, deixava ver ainda assim, uma barba bem escanhoada mas densa, apesar do lenço que quase lhe cobria a cara. E, para mulher, o seu quase um metro e setenta não eram muito usuais.
A GNR deteve-a e identificou-a. Penso que uma autoridade médica teria procedido à determinação do sexo. Depois com a colaboração do familiar que vivia em Tavira, sendo chamado a estas autoridades escolheu para proceder ao tratamento o médico cirurgião de Alcoutim, o concelho da sua residência e naturalidade, uma vez que era da freguesia de Vaqueiros.
Lembro-me da sua chegada a Alcoutim no Guadiana, o “gasolina” que fazia carreiras regulares vindo de Vila Real Santo António, para consultar o Dr. Dias.
Vinha já com o cabelo cortado e vestia fato de homem. A pele do pescoço estava muito branca pela falta de exposição ao sol. Mas cabisbaixo, ainda a estranhar a nova situação e indumentária. Ainda hoje guardo a imagem da tristeza e da vergonha deste homem.
[Dr. João F. Dias, médico cirurgião]
Em Alcoutim já era aguardado e já se conheciam as razões da sua vinda. A curiosidade era grande e por isso o número de pessoas à chegada do barco foi maior nesse dia.
O Dr. Dias depois de proceder a uma avaliação da situação cirúrgica, fez a competente operação e após algumas semanas de convalescença deu-lhe alta.
Como é normal, teve os procedimentos burocráticos junto do tribunal para alteração do registo de nascimento e de regularização da sua situação militar. Mais tarde casou e há poucos anos faleceu. Não me consta que tenha deixado descendência.
Tratava-se de uma pessoa bem-disposta e que contava com uma certa graça episódios da sua vida. Nomeadamente, que costumava ir ceifar para o Alentejo. Ceifava três regos como os homens, enquanto as mulheres só ceifavam dois. Na ceifa as grandes propriedades tinham dois dormitórios, num dormiam as mulheres e noutro os homens.
Quando era Palmira, naturalmente dormia com as mulheres. Também falou dos namorados que teve, etc.
Esta é uma história com um duplo final feliz. Manuel Inácio ultrapassou uma situação sexualmente ambígua. Uma sua irmã que lhe dava apoio durante o tratamento, iniciou um namoro com o José Caleja de Alcoutim com quem veio a casar.
Este assunto foi público e publicado nos jornais. No jornal O Século para o qual eu então escrevia como seu correspondente, esta notícia foi ali publicada com fotografia cedida por ele e cuja publicação autorizou.