quinta-feira, 12 de agosto de 2010

Ti Marciano, uma alma generosa!

Pequena nota

Eu já sei que os nossos leitores assíduos, nomeadamente aqueles que nasceram na vila de Alcoutim, estão sempre esperando com curiosidade as Crónicas do nosso colaborador e Amigo Amílcar Felício e que sem saberem o que tratarão especificamente, têm a certeza que irão gostar de ler, recordando figuras e peripécias passadas, algumas de que já não se lembravam, mas que rapidamente recordam e se muitas coisas são conhecidas, aparece sempre um ou outro pormenor desconhecido.
Amílcar Felício não escreve nem melhor nem pior do que qualquer outro colaborador do ALCOUTIM LIVRE, todos marcam a sua diferença com peculiaridades notórias. Cada um, sem o pretender, acaba por ter o seu estilo.
Admitindo que eu me esqueceria de indicar o autor, para os leitores assíduos isso não teria qualquer importância, pois identificavam-no imediatamente.
As Memórias de Amílcar Felício, que tão humana e jocosamente transpõe para o papel, acabam por constituir delícias principalmente para quem conheceu os factos e as figuras.
Eu que não conheci mas que sempre ouvi falar no Ti Marciano, fiquei agora a conhecê-lo melhor já que me são referidos aspectos que desconhecia totalmente.

Alguém salvou a Casa dos Condes e a Capela de Sto. António não desapareceu por duas vezes, quase por milagre! Estas coisas não têm a ver com o aspecto técnico, Amigo, têm a ver com a sensibilidade, com a cultura e outras coisas.

JV





Escreve

Amilcar Felício



[O Guadiana com as suas irmãs seamesas. Foto JV, 2009]

Era pescador, natural de Castro Marim e morava nas casas que hoje constituem o Café/Restaurante “O Caçador”. Eram umas casas térreas com uma configuração diferente da actual, pois a porta da rua era em frente às antigas Escolas Primárias e com o piso da sala de entrada cerca de meio metro abaixo do nível da calçada.

Aliás, se exceptuarmos a velha fachada da Câmara Municipal, as antigas Escolas Primárias, o ex-comércio do Sr. Serafim, a casa do velho Ti Domingos Mariano bem como a casa do Sr. Brito (actual Casa dos Condes), muito pouco sobrevive da antiga traça da baixa alcouteneja dos anos quarenta/cinquenta. Para além da Casa dos Condes que seguramente constituirá um património “a salvo”, desejamos que se mantenha pelo menos a bela fachada da antiga Câmara Municipal para alimentar as nossas memórias. Não é pedir muito! (1)

O Ti Marciano teria ido para Alcoutim nos tempos da fome durante a década de trinta, quando os pescadores nos Invernos mais rigorosos “se faziam à estrada” em demanda do interior serrano algarvio, na tentativa de garantirem a sobrevivência que o mar lhes recusava.

[Manel Melão e Nãmeaces (este encostado à parede da Capela)no local da venda do peixe.]
Embora contemporâneo desse movimento, os seus primeiros contactos com Alcoutim teriam resultado da venda de peixe por conta do Ti Manel Melão, usando o Gasolina como meio de transporte. Acabou por adoptar Alcoutim como a sua terra natal até à morte. Juntamente com o meu compadre Nãmeaces e com o Ti Manel Melão (2) também eles naturais de Castro Marim, por ali foram organizando as suas vidas, constituindo uma equipa indestrutível pela vida fora. Eram uns homens trabalhadores e que tinham o respeito de todos. Homens do mar fizeram do Guadiana a sua casa e a sua fonte de sustento e das suas famílias até ao fim dos seus dias. O Ti Manel Melão morreu muito jovem ainda, pois teria pouco mais de 50 anos.

Aquele fluxo de gente que debandava nos Invernos mais rigorosos do litoral para o interior serrano – os “marujos” como lhes chamavam, eles chamavam-nos “os montanheiros” – teria assumido formas tão significativas, que os seus ecos ainda me chegaram quase duas décadas depois. Muitos deles dizia-se, vagueavam de Monte em Monte à procura de pequenos trabalhos nas casas dos Grandes Lavradores ou até pedindo esmola em último recurso. Eram tempos difíceis sem qualquer espécie de assistência social ou ajudas de qualquer tipo. Cada qual estava entregue a si próprio e à sua capacidade de sobrevivência.

Ainda me lembro de a minha mãe se “zangar” com o meu avô (“com a idade que tem e nunca mais tem juízo, a levantar-se a estas horas da madrugada para vender meia dúzia de copos de aguardente!”), que todos os dias lhes ia abrir a taberna às 5 ou 6 horas da manhã, para que eles pudessem “matar o bicho” quando chegavam da pesca. Respondia-lhe o meu avô com a consciência do Serviço Público que de certo modo acabava por desempenhar entre uns copos de aguardente “deixa lá que eles merecem este sacrifício, pois acabam de chegar da pesca e não há mais nada aberto”.

Pescavam no Guadiana, segundo o processo denominado de “pesca ao tresmalho” e julgo que alguns deles chegaram a trabalhar periodicamente ou na Mina de S. Domingos ou em trabalhos relacionados com a Mina como o Ti Nãmeaces, de acordo com algumas conversas que lhe ouvi.

[Foz da Ribeira de Cadavais. Foto JV, 2009]

Mas de quando em vez tinham uma forma de pescar – chamavam-lhe tapar a ribeira – que fazia a alegria da garotada da minha idade. Colocavam uma rede debaixo do lodo na “boca” da ribeira em toda a sua largura durante a baixa-mar e levantavam-na na preia-mar. Quando a maré baixava novamente, os peixes naturalmente ficavam encurralados e então começavam a pescar, se a memória não me atraiçoa, com umas “artes” a que chamavam de “rodisca” e “chalavar” desde as velhas passadeiras até ao rio, apanhando “mujos”, barbos se já tivessem um tamanho razoável e enguias. Atrás deles vinha a miudagem em festa que os seguia ribeira abaixo e ainda apanhavam muito peixe à mão que levavam para casa.

Recordo-me da alegria contagiante do Ti Marciano no seu relacionamento com a pequenada e do seu enorme espírito solidário. Trazia-me sempre que apanhava, pequenos “solhos” vivos como lhes chamávamos e que eu tentava a todo o custo fazer sobreviver nos poços das hortas do meu pai. Tratava-se nem mais nem menos do célebre esturjão “o tal que “dá” caviar” e que fazia parte do habitat do Guadiana naqueles tempos, imagine-se!

[Esturjão]

Mas não se pense que era uma inventona dos alcoutenejos chamar “solho” ao “esturjão”, pois o seu nome popular é efectivamente “solho ou esturjão”. Mais precisamente solho-rei. E a sua presença no Guadiana em tempos remotos deveria ter sido tão assinalável, que a sua imagem parece ter sido cunhada em moedas no século I a.C. em Mértola. Ficou famoso nos meus tempos de menino um esturjão de 75 quilos que caiu na rede de um pescador de Mértola e que arrastava a lancha como se fosse a motor! Era um peixe parecido com um tubarão, extraordinariamente belo, sem escamas, com a cabeça a terminar em bico e com a boca ventral. O Guadiana foi o seu último refúgio em Portugal tendo desaparecido seguramente há mais de 20 anos, possivelmente devido à poluição e às barragens.

O Ti Marciano foi o Grande Organizador dos Cortejos de Carnaval da minha infância em Alcoutim. Reflexos naturalmente dos Cortejos que se faziam no Algarve e que lhe eram familiares, nomeadamente o de Loulé. O vinho era a grande droga daqueles tempos, estimulado até pelo próprio regime de então que popularizava o slogan “beber vinho é dar de comer a um milhão de portugueses” e as classes trabalhadoras eram as suas principais vítimas. Lembro-me de um ano ele me ter mascarado de bebé num carro engendrado por ele, num desses Cortejos que organizava e de levar uma chupeta numa garrafa de vinho com um garrafão ao lado como reserva. Brincava-se com o próprio vício!

Mas a memória mais forte que conservo da sua personalidade era o seu espírito solidário. Em qualquer tipo de desgraça era sempre o primeiro a aparecer. Naqueles tempos morria muita gente por afogamento no Guadiana, de tal maneira que a garotada à distância como se fosse um jogo, na sua ingenuidade e falta de sensibilidade pela morte, punha-se a adivinhar o sexo das vítimas pois por experiência, os homens vinham de barriga para baixo e as mulheres de barriga para cima. Era difícil e penoso retirar um afogado do rio, devido ao cheiro nauseabundo que os cadáveres exalavam assim como ao peso do corpo inchado depois de alguns dias submerso.

Era uma tarefa que não tinha atribuída qualquer Responsável Público para a executar, dependendo por isso de voluntários. Mas naqueles dias em que aparecia um afogado, os homens desapareciam da Vila como que por milagre. Só o Ti Marciano estava sempre presente e nunca virava a cara a esse gesto de misericórdia. Era um homem para todo o serviço, embora vomitasse por vezes, mas a seguir “enfiava-lhe um tinto pela goela abaixo” e a má disposição passava.

Ironia do destino, alcoólatra e já numa fase degradada de saúde, caiu numa noite de desvario nos princípios da década de sessenta nas íngremes ribanceiras do Cemitério, tendo morrido afogado no “seu Guadiana” cujos cantos conhecia como as palmas das próprias mãos. Tínhamos por ele tal afeição e respeito que a rapaziada do meu tempo já com 17, 18 ou 19 anos, passou a noite inteira dentro da lancha do Manel Balbino no sítio aonde tínhamos localizado a sua queda, à espera que o corpo viesse à superfície para o apanharmos de imediato e evitar o degradante “espectáculo” de um corpo a boiar no rio.

Sem sucesso. As correntes mais profundas tinham levado o corpo, aparecendo alguns dias depois a descer o rio entre a Lourinhã e o Cais Novo. A notícia do seu aparecimento espalhou-se rapidamente pela Vila, só não chegou ao conhecimento dos “voluntários” que não apareceram. Mas chegou aos ouvidos do Zé Martinho que indignado e furibundo, tratando-se ainda por cima de alguém que toda a sua vida não regateou esforços para socorrer o próximo, meteu as “mãos à obra” retirando o corpo.

[O Guadiana visto dos Premedeiros. Foto JV, 2009]

Interiorizei desde miúdo que o Ti Marciano participou nas mesmas aventuras que o Ti Diogo, combatendo na guerra civil espanhola ao lado da República, não se deslocando por isso nem um nem outro a Sanlúcar, com receio das represálias franquistas. Contudo não posso garantir esta afirmação. Contactei diversas pessoas na casa dos setenta e oitenta anos mas ninguém me conseguiu confirmar tal facto, incluindo a Dª Jerónima esposa do Ti Manel Melão. É verdade que também não o desmentiram. No entanto, com a sua generosidade e o seu espírito solidário tudo poderia ter acontecido. Fica a dúvida...

Já agora que falei no Ti Diogo mais um pequeno apontamento. Perdão... no “Sargento” Diogo, como ele gostava que lhe chamassem quando já tinha o seu copito, patente que lhe fora atribuída pela República Espanhola durante a guerrilha. Era um homem bem-humorado e com muita piada este “Sargento” Diogo, quando já tinha um grãozito na asa: “sou um homem feliz, tenho os filhos todos criados e bem colocados na vida e tenho mais dinheiro do que terra! Basta-me ter cinco tostões na algibeira!” Já me esquecia de referir de que não tinha filhos...

Notas
(1) Considero-me um leigo em matéria de urbanismo e arquitectura, mas quem visitar Barrancos ou Mértola, ficará com a sensação de ser tão fácil conciliar o “histórico”, o “antigo” e a “modernidade”, que me faz pena ir vendo destruir Alcoutim ano após ano, com casas que não param de crescer. Sugiro que se visite Barrancos aonde apetece sempre voltar, pela harmoniosa síntese entre o “antigo” e a “modernidade”. Estão de parabéns os barranquenhos e os mertolenses que souberam preservar a sua memória e passado históricos!
(2) Agradeço à Dª Jerónima o tempo que me disponibilizou na confirmação de algumas das memórias que aqui transcrevo, acrescentando um ou outro pormenor. Isto afinal ainda não está muito mal!