domingo, 24 de outubro de 2010
Francisco do Rosário
Escreve
Gaspar Santos
Quando por todo o país se comemora o Centenário da Implantação da República, não podia deixar de lembrar o Senhor Chico do Rosário. Um político republicano, alcoutenejo ilustre, com quem privei e que era amigo da nossa família. Há muito que tencionava recordá-lo.
Era um homem de aspecto físico robusto, maciço, de altura mediana. Corajoso, frontal, sem timidez. De palavra fácil, dizia só as indispensáveis, compensadas com uma boa eficácia. A sua escrita era igualmente eficaz.
Morou alguns anos num edifício que esteve muito tempo demolido e que deu lugar ao espaço ajardinado, com um repuxo, na envolvente ao Castelo. Foi inaugurado com o seu nome no dia do município em 14 de Setembro de 2007.
[Jardim Francisco do Rosário. Foto JV]
Morava ali, mas logo pela manhã, de verão ou de inverno, podíamos vê-lo em tronco nu, envolvido por um casaco, dirigir-se à casa em frente à Fábrica de Foices, a chamada “sacristia”, onde se ia lavar. Não sendo um manga-de-alpaca, trajava sempre de fato completo e gravata muito suja nos dias normais de trabalho. Mas impecavelmente vestido quando viajava.
Recordo-me da sua figura altiva, muito compenetrado a conduzir uma “charrette” puxada por um cavalo. Esta, com pneus, fora adaptada nas oficinas da família à custa da parte traseira de automóvel dos anos 20 em fim de vida. Recordo-o passeando na feira de S. Marcos no Pereiro pendurado num enorme charuto…ele que nem fumava. Ou, não sendo religioso, atento na primeira fila do espaço por ele cedido para um culto evangélico que as autoridades dos anos 50 não quiseram ceder. Isto para referir o seu aspecto cheio de si e de auto-estima.
Tinha um trato afável e simpático sob aquela altivez. Que ainda era mais cavalheiresco quando se tratava de sua mulher a quem tratava com muita ternura por Armindinha, ou, quando calorosamente atendia pessoa que ele muito estimasse.
Recorriam a ele para meterem empenhos (hoje diríamos cunhas) junto de influentes. Ia terminar a tropa na Marinha um jovem da freguesia do Pereiro de nome Guerreiro que se queria empregar. Fardado, visitou o Almirante Gago Coutinho, já muito velhinho, que lhe perguntou: ”o que queres meu marujo” ao que ele responde “sou de Alcoutim e quero empregar-me na Alfandega em Vila Real Santo António”. Diz o Almirante: “és protegido do Francisco do Rosário… está descansado…deixa aí a tua identificação”. O Guerreiro nem tinha ainda falado do Rosário, mas aproveitou. Depois de empregado, agradeceu ao Senhor Chico do Rosário, que nada sabia e se limitou a dizer, sem qualquer azedume: “foste então tu a aproveitar a cunha que eu meti para outro…”
Era uma pessoa generosa, de uma família também generosa. Disso, são exemplo as refeições de papas de milho que fornecia gratuitamente na sua moagem de cereais do Pereiro a muitos pais de família esfomeados que nos anos da II Guerra Mundial lá iam com uma senha do racionamento comprar 4 ou 5 kg de farinha de milho.
Tinha já preocupações com o ambiente nos anos 20 quando foi Presidente da Câmara, ao fazer sair um folheto alertando para o perigo do sulfato de cobre das Minas de S. Domingos que ao escorrer para o rio matava os peixes.
[Bancos da Capela. Des. JV]
Recordo-me das nossas conversas nos bancos da capela (designação dada à Igreja Matriz) quando líamos os jornais. Ele era assinante e grande leitor da República, mas não deixava de ler outros jornais como o Século. Por vezes eu estava na capela a ler O Século e ele aparecia. E dizia na sua forma assertiva, seca e de poucas palavras: “ dá cá o jornal” e lendo todos os títulos de uma ponta a outra ia pontuando no fim de cada título que não lhe interessava, “merda, merda!”.
Enquanto ele lia O Século emprestava-me para eu ler o República. Foi assim que acompanhei a evolução e o fim da Guerra Mundial 1939/45. As eleições inglesas a seguir à Guerra. As esperanças que ele alimentava de que os Aliados no rescaldo da Guerra, pusessem fim às duas ditaduras Ibéricas. O Lançamento das duas Bombas Atómicas. A Guerra da Coreia, a destituição do General Mac Arthur após quase lançar outra Bomba Atómica na Coreia. Nunca percebi, porém, qual o grau de simpatia que lhe merecia cada líder das três grandes potências Aliadas.
Uma vez interpelei-o: “que povo Inglês é aquele que depois da vitória de Churchill na guerra, logo a seguir dá a vitória a Atlee nas eleições”. Resposta: “É a democracia, rapaz! Churchill empolgou o povo na guerra. Na paz e para a sociedade inglesa agora é melhor Attlee. Não é ingratidão”.
O exemplo do Senhor Chico do Rosário esclareceu-me o dito Inglês “time is money”. O tempo parece ter-lhe sempre escasseado. A falta de tempo levou-o algumas vezes a atrasar a camioneta de carreira de manhã quando ia para Vila Real ou à tarde quando ia para o Pereiro. A falta de tempo, que mais parecia falta de dinheiro, fê-lo muitas vezes telefonar para a funcionária do correio, dizendo: “ Santinha aguarda pelo meu pagamento até amanhã pois não posso ir agora aí”; ou para o Senhor Leopoldo do Grémio da Lavoura (que fora empregado no seu comércio) com o mesmo pedido, o que às vezes deixava essas pessoas preocupadas. Mas, com mais ou menos diligências, pagou sempre.
Há anos, após nova legislação sobre as matrizes prediais obrigando à identificação das propriedades, vimos na Hortinha no caminho para o cemitério, na mesma oliveira, uma placa de madeira com “Proprietário Joaquim António do Rosário” e outra com “Propriedade de José Hermógenes Duarte Rosário. Indiciava e, dizia-se, haver confusão de partilhas que não teriam ficado claras entre o Senhor Chico do Rosário e o Irmão António que, pensamos, já estará hoje esclarecida.
[Moinho da Chada, Pereiro, onde funcionou primitivamente a moagem. Foto JV, 2006]
Conheci o Senhor Francisco Madeira do Rosário, já como gerente comercial da Fábrica de Foices de Alcoutim e da Fábrica de Moagem de Cereais do Pereiro, pertencentes à família. Nos anos 30 do Século passado possuíram também um estabelecimento em Alcoutim de vinhos e mercearias e tudo o que hoje se pode adquirir num supermercado. Aí nesse estabelecimento e nos montes compravam ovos para exportar para Espanha, tendo para isso um armazém em Sanlúcar.
Na fábrica de foices, enquanto o irmão António Madeira do Rosário dirigia as questões técnicas e procedia à última etapa do trabalho em série que era picar as foices, ele procedia à sua embalagem em caixas, e à sua colocação no mercado e às tarefas de promoção por todo o Alentejo e Algarve.
[Actual Rua S. Salvador onde funcionou a fábrica de foices. Foto JV, 2009]
Algumas pessoas no concelho, por atribuírem mais mérito ao trabalho manual e comparando os dois irmãos, consideravam que o António do Rosário era quem trabalhava. Quero aqui salientar, para ser justo, o trabalho de gestor do Francisco. Era ele que encomendava as toneladas de aço e carvão e outros combustíveis que a fábrica consumia. Tendo ainda alguma componente manual na embalagem das foices. O mesmo se passando com a moagem do Pereiro.
Era um político anti-fascista e anti-Salazarista, importante antigo militante do Partido Republicano Português (PRP) no concelho, tendo sido várias vezes preso pela PIDE. Aderiu ao PRP após uma conversa estabelecida casualmente com o Doutor Afonso Costa durante uma viagem no “Gasolina” da carreira Vila Real Santo António – Mértola. Essa longa conversa funcionou como uma lavagem a um cérebro que já tinha predisposição republicana e, foi assim, sem desfalecimentos até á sua morte.
Foi o último Presidente da Câmara Municipal de Alcoutim, durante a República, entre 1920 e 1926. Mas, segundo consta, do seu mandato não se encontram actas, despachos ou qualquer documento assinado por si. Teriam sido destruídos durante o Estado Novo? Foi exonerado após o Movimento do 28 de Maio de 1926. Sendo substituído pelo Prof. Trindade e Lima, delegado escolar, colega da Prof. D. Arminda do Rosário, mulher do Senhor Chico do Rosário.
Alguns anos depois, já em 1940, a vida profissional da D. Arminda foi alterada ao ser transferida para Vila Real de Santo António, por haver poucas alunas a leccionar e a Escola Feminina de Alcoutim passou a ter uma Regente Escolar. Estas razões oficiais nunca convenceram nem a ela nem ao marido.
Quando da Revolta Monárquica do Porto em 1913 ele era militar em Tavira, onde atingiu o posto de sargento, tendo marchado para o Porto com o seu regimento.
Participou no Algarve na revolta de Fevereiro de 1927 contra a Ditadura Militar, encabeçada no Porto pelo General Sousa Dias. No Algarve a revolta rebentou no dia 4 de Fevereiro com bombardeamento de Faro a partir da canhoneira Bengo comandada pelo 1º Tenente Sebastião José da Costa. O Blog Almanaque Republicano descreve os acontecimentos no Algarve e faz uma lista (que reconhece não exaustiva) de participantes. Refere que foram 174 detidos e recolhidos no dia 20 de Fevereiro na Penitenciária de Lisboa. Constam dessa lista, além do Rosário, Almeida Carrapato, tenente Francisco Ribeiro … e mais alguns amigos dele que conheci em Alcoutim quando lá iam em serviço e o visitavam.
Colaborou ainda em mais golpes contra o Estado Novo, sendo preso e objecto de buscas várias vezes por motivos políticos, mas a sua disposição nunca quebrou e prestou ajuda a perseguidos políticos na passagem clandestina da fronteira.
[Praça da República onde funcionou o comércio da Família Rosário. Anos 60]
Ainda colaborou na mobilização dos seus simpatizantes nas Campanhas eleitorais de Norton de Matos, Humberto Delgado etc. Voltou a ser suspeito e preso, ele e seus filhos por altura da fuga do capitão Henrique Galvão do Hospital de Santa Maria.
O dia da queda da ditadura, 25 de Abril de 1974, já ele não festejou, pois tinha falecido em 1972. Os seus familiares festejaram por ele.
No início da Guerra Civil de Espanha estava em Madrid, deu colaboração aos republicanos e estava em Alicante no final. Consta que chegou a estar preso, com a vida por um fio, de que teria sido salvo por intervenção de um seu adversário das lutas eleitorais durante a Primeira República, de nome Ramires de Vila Real Santo António.
Durante a Guerra Civil de Espanha e no princípio da Guerra Mundial que se lhe seguiu, a correspondência para a família Rosário era lida em primeiro lugar pelo Quaresma um hitleriano e PIDE que era então Chefe da Secretaria da Câmara e Gerente da Delegação da Federação dos Trigos.
Casou com D. Arminda Duarte Rosário. O casamento deles rodeou-se de um aspecto curioso. Estava na hora da cerimónia no Registo Civil e ele ainda estava num dos bancos da Capela a ler o jornal. Foi lá o pai chamá-lo, admoestando-o “não tens vergonha, a noiva e os padrinhos já estão no Registo e tu ainda aqui”. Resposta: “tragam aqui o livro do Registo Civil que eu assino já” e assim foi, levaram-lhe o livro e ele assim ficou casado.
[Cidade de Vila real de Sto. António onde faleceu Francisco Madeira do Rosário]
Um casamento muito duradoiro em que ele foi sempre de muito carinho pela Senhora D. Arminda. Tiveram dois filhos, que se licenciaram em engenharia civil: José Hermógenes Duarte Rosário, falecido no ano passado e Francisco Rosário (de quem eu era muito amigo) falecido em acidente com gás durante o banho. Acompanhei o seu velório e verifiquei que o Pai sentiu um grande golpe com a sua morte. Quando lhe demos um abraço de pêsames ele disse-nos, “eu é que devia estar ali” – já tinha perto de 80 anos.
Morava, já viúvo, nos últimos tempos de vida, em casa do filho José na Praceta José Lins do Rego em Lisboa, e vi-o muitas vezes a ler o Jornal numa pastelaria ali perto no Campo Grande à esquina com a Avenida do Brasil.
No dia 5 de Outubro de 2010, nas comemorações do Centenário da Implantação da República foram descerradas placas toponímicas na vila, que perpetuam três nomes de alcoutenejos ligados à República, entre eles o de Francisco Madeira do Rosário.
Curiosamente, quando éramos membros da Assembleia Municipal de Alcoutim, e se construía o Bairro do Rossio, sugerimos à Câmara (pois a A.M. não propõe), o nome de Francisco Madeira do Rosário para uma rua nesse Bairro. Foi imediatamente recusada. Pareceu-me então, que toda a Assembleia o desconhecia! Fiquei satisfeito por lhe ser dado agora esse reconhecimento.
O que dizemos acima são observações pessoais enriquecidas e datadas por leitura do Blogue Almanaque Republicano, do Blogue + Algarve, da Revista Municipal nº 14 de Janeiro de 2008, da Galeria dos Presidentes de Alcoutim e do Livro QUEM FOI QUEM? 200 Algarvios do Século XX, Glória Maria Marreiros, Edições Colibri, Lisboa, págs 439 e 440.
Considero importante não deixar esquecer esta figura que em muitos aspectos admirámos e estimámos em vida, pelo que aqui fica o meu testemunho, dando a conhecê-la de uma forma mais ampla, mais realista e isenta,