terça-feira, 6 de dezembro de 2011

Crónicas e Ficções Soltas - Alcoutim - Recordações - XVIII






Escreve


Daniel Teixeira





O GALOPE DO TEMPO

Para começar esta crónica é preciso dizer que é necessário ter vivido com burros para ter memórias sobre burros, como é lógico. Eu tenho-as e muitas e dado aquilo que hoje sei e que outros que conheço não sabem lamento que nem toda a gente tenha passado, pelo menos uma parte da sua vida, com burros, mesmo que de facto tenham passado tempo a viver com «outros» burros.

E é neste aspecto que a coisa se torna paradoxal. Existe alguma vergonha em confessar que se viveu com burros, por pouco tempo que tenha sido, porque existe uma descriminação ridícula, porque é apenas verbal e de uso, contra o nome desses pobres mas sempre aparentemente felizes animais. De um lado são considerados pouco espertos, o que não é verdade; deve existir de facto dentro da sua mente (se é que pudemos falar assim) uma tranquilidade neuronal muito semelhante à paz que todo o ser humano desejaria ter e uma aceitação da inevitabilidade do seu destino que pode parecer depressiva mas que vive dentro deles de uma forma harmoniosa. Realismo, puro e simples, é o que eu acho que é : nada de ambições para desfiladas incomportáveis nem para liberdades excessivas e uma fidelidade aos parceiros a toda a prova.

Uma vez eu e a minha mulher pedimos um burro emprestado ao meu primo que os tinha a pastar num restolho: o que ficou teve de ser segurado na estaca e mesmo assim coitado acabou por cair dado que estava peado: o outro levou-nos onde queríamos, às Eiras Velhas, a nossa hortinha perto do ribeirão, mas mal nos distraímos saiu em desfilada. Ainda corri um bom bocado sobretudo para ver se ele se encaminhava directo para o ponto de partida e lá ia ele, galopando de regresso certeiro.

[Burro espojando-se. Retirado com a devida vénia de http://itapopordentro.blogspot.com]

Levar os burros a espojar era um dos meus trabalhos preferidos. Arranjava-se um bocado de terreno relativamente limpo de pedras e ervas e eles acabavam sempre por perceber: rebolavam-se pelo chão, coçavam as costas, podiam levar dez minutos nisso, relinchavam com aquele som cavo a que se chama zurrar, sacudiam a terra do pelo como um cão molhado e eu acho que eles acabavam sorrindo por segundos para depois voltarem à sua condição de burros, baixando a cabeça e ficando ali, quietos, sem capacidade de se movimentarem sem que nós puxássemos por eles.

Quando comecei a ir a Alcaria Alta o meu avô já tinha passado definitivamente de cavalo para burro tanto no sentido financeiro como no sentido real. Uma viagem de retorno sem retorno à vista e assim o burro era para ele o animal do presente e o animal do futuro. Cuidava deles com cuidado embora não fosse preciso muito para os manter contentes e felizes. Tinha dois porque para lavrar é normalmente necessário parelha, sobretudo quando se trata de burros. Lavrar com um só animal só com muares ou cavalos. Estes últimos não se «gastavam» nessa tarefa por principio, mas nem sempre eram eminentemente decorativos e as éguas iam ao cavalo o que era uma garantia relativa de gerarem cavalos.

Pode parecer absurdo e para mim foi durante muito tempo que uma égua tenha um filho burro, por exemplo, ou um muar, mas era assim mesmo. Os muares, híbridos, como se sabe, não geravam, mas tinham a vantagem de serem excelentes animais de trabalho. Uma burra podia ir igualmente ao totoloto cavalar e depois era só esperar o que saía dali. A força dos genes comandava tudo...o meu avô só tinha burros, mesmo burros no masculino, e serviam para o dia a dia, para lavrar e gradear.

Gradear era, para quem não sabe, tentar afastar do terreno de cultivo as pedras que durante o resto do ano «nasciam» por força das enxurradas; a terra ia com a água, as pedras ficavam. Trabalho sempre anualmente repetido e agora lembro-me de uma personagem que não me podia lembrar naquele tempo. Sísifo foi condenado pelos Deuses gregos a fazer subir uma rocha até ao topo de um monte e deixá-la depois escorregar e ir buscá-la de novo. Comparativamente era isso que o meu avô e os outros lavradores do Monte faziam. Todos os anos o mesmo.

Quando apareceram as máquinas, os tractores que tinham alfaias para lavrar e para gradear só interessava e só era possível que eles trabalhassem em espaços grandes. O mini tractor ainda não existia e mesmo que existisse ninguém o compraria senão os lavradores e nem esses os compraram, é claro. As máquinas que havia eram compradas por profissionais com dinheiro liquido suficiente para investir, normalmente emigrantes, que se deslocavam de monte em monte à hora ou á tarefa. Quando da minha segunda volta pelo Monte, já depois de casado, havia já bastantes terrenos tratados por máquinas.

[Burro bem tratado. Monte das Ferrarias. Foto JV, Maio de 2010]

Estas, cegas como eram, na ceifa, deixavam muito grão nos solos o que fomentava a visita da passarada: as cotovias, com a sua pequena popa no alto da cabeça eram as mais abundantes. Pardais também havia, toutinegras que eram assim chamadas por terem uma mancha escura no peito branco e outros. Os pardais civilizaram-se muito rapidamente e começaram cedo a conviver com o monte, fazendo ninho no telhado da escola primária.

Esta, não sei exactamente em que data foi construída, acabou por funcionar muito pouco tempo: cedo deixou de haver crianças para irem à escola, os montes dos arredores deixaram também de fornecer criançada e voltou tudo à primeira forma, aquela que a minha mãe tinha conhecido 50 anos antes: ir à escola a Giões para o primário, fazer o secundário em Faro ou Vila Real de Santo António para os poucos que tiveram essa possibilidade, muito poucos mesmo.

Mas as minhas memórias sobre os burros estão muito acima destas questões que apelido de laterais e contêm todo um conjunto de recordações que me levam de monte em monte, de ribanceira em ribanceira, de ribeira a ribeira, de actividade de trabalho a actividade lúdica, atravessando transversalmente a minha vida.

Pode dizer-se que consegui uma parte razoável do meu conhecimento do mundo de burro e por isso lhes estou grato, muito grato mesmo. Em certo sentido posso dizer que muito do que sei do mundo e da natureza aprendi porque os burros me levaram lá, me mostraram tudo o que havia para ver e tudo o que lá havia para aprender. Com eles aprendi também que é possível ser-se feliz com muito pouco, por exemplo.

O burro é o animal quadrúpede agregado às actividades campesinas que maior confiança nos pode merecer. Não a merece toda, a confiança, mas merece muito mais confiança do que um nervoso cavalo, uma temperamental mula, ou mesmo uma chata vaca que embica os cornos na nossa direcção nas estreitas azinhagas, não para nos fazer forçosamente mal mas porque é larga e não nos deixa espaço de passagem nem consegue virar ou recuar (essa sim é mesmo burra) deixando-nos como alternativa a nós, humanos ditos inteligentes, o recuo, a retirada, a vergonhosa fuga por vezes quando a proximidade é demasiado próxima e a idade curta.

Com um burro diz-se «Alto!» alto e com bom som e o animal estaca e ali fica, parado, compreensivamente imóvel, à espera que nós passemos. Mas os meus burros, os burros que conheci, tinham outras qualidades, arrisco mesmo dizer que tinham todas as qualidades exigíveis a um burro e mais algumas que seriam exigíveis a muitos bípedes.

Anunciavam a sua chegada ao monte através de um sonoro zurrar, conheciam os caminhos como ninguém, graças aos arreios só tinham duas velocidades, a primeira e a segunda, facilitando assim a condução e podiam ser cavalgados em pelo, com albarda, com sela até mas mostrando nestes primeiro e último casos todo o seu respeito pela condição do seu montador apesar da ausência dos arreados travões traseiros.

[Burros pastando na Herdade das Ferrarias. Foto JV, Maio de 2010]

Um burro deixa-se por aqui ou por ali e vai-se buscá-lo quando se precisa que ele está ali mesmo ou um pouco mais além quando algum cardo ou uma erva mais apetitosa o puxou para a desobediente deslocação de poucos metros.

Tenho inúmeras recordações de burros, de momentos em que aprendi algo com os burros, dos momentos em que os burros foram meus mestres. Contarei um dia, ou irei contando, mas devo confessar que quando me lembro disso, do quanto que aprendi com eles, que nessas alturas que não são muito raras, tenho sempre muita pena que nem todos tenham tido a possibilidade de ter burros como mestres. Talvez o mundo fosse melhor, quem sabe..?

Ora depois desta divagação lírica devida a esses meus amigos e pares, um burro também me ensinou como se faz o contorno da livre concorrência: o meu avô precisou de trocar um burro (o saudoso Castanho) dado que estava a ficar demasiado velho e que segundo a suas contas, estava na altura ideal para ter um preço de retorno mais compensador do que no ano seguinte: foi à feira a Giões e como sempre acontecia foi ter com o meu tio José Teixeira que era negociante de gado; queria vender aquele e comprar um outro entrando com a diferença.

Ora contra as suas expectativas a compra era feita por um preço abaixo daquilo que seria normal no seu entender e a venda de um burro mais novo era feita por um preço acima daquilo que também seria calculável. Pediu desculpa ao meu tio e foi consultar outros negociantes obtendo neles o mesmo resultado ou um resultado aproximado. Perante a inevitabilidade de ter de negociar naquela altura pelo menos para não ter um resultado pior noutra feira e para justificar a deslocação acabou por fazer negócio com o meu tio José Teixeira.

Chegou a casa com o burro novo mas bastante revoltado com a vida. Mal nascia o sol foi acordado pelo chamamento do meu tio negociante que nunca foi muito parco em palavrões: «Porra ti Dionísio!! Nem preguei olho à espera que clareasse o dia. Quando chegar a casa a primeira coisa que faço é meter-me na cama. A gente (negociantes) estava combinada nos preços e logo ontem calhou você a aparecer por lá e eu não lhe poder dizer nada ali: está aqui o dinheiro que falta...veja lá se está bem assim!» Estava mesmo...era assim o meu tio...um saudável negociante familiarmente honesto...

Mas sempre lhe tirei o chapéu: começou vendendo/trocando ovos de Monte em monte depois da jornada de trabalho em casas de lavradores com uma mochila feita de paus de loendro atados cheia de palha e ovos às costas porque nem uma besta dele tinha.

Em Faro, já no meu tempo de miúdo, participava com alguma regularidade na bolsa da alfarroba, das amêndoas, do gado que na altura tinha lugar no Café Aliança onde se faziam licitações primárias de voz: «Tenho 50 ovelhas para vender!» – gritava-se do meio da sala e esperava-se que os compradores aparecessem. O mesmo com outros animais, com as amêndoas, alfarrobas e outros produtos.

Foi talvez dos primeiros a descobrir o filão de compras lisboeta frequentando o mercado da Ribeira, onde vendia em grosso ovos, galinhas e o que se proporcionasse: por vezes não tinha ali mas ia arranjar junto de outros da região que lhe tinham seguido as pisadas e a conjunta sociedade esporádica num transporte de camião acabou por engrandecer o negócio. Nunca teve carro nem carrinha: tinha um carro puxado por muares e era especialista em conseguir boleias para todo o lado...que eu me lembre nunca o vi chegar de autocarro ou de comboio de lado nenhum.

Das últimas vezes que o visitámos tinha a mulher (minha Tia) ausente em Lisboa em tratamentos e nem sabia acender o fogão a gás: tinha tudo, café, leite, pão, foi buscar um naco de presunto cortado à faca e ali ficámos os três, eu, ele e a minha mulher comendo e bebendo o café com leite e cavaqueando alegremente. Foi que eu me lembre a última vez que o vi tal como ele sempre foi e foi nessa altura que ele me disse que se sentia velho e que «o tempo era um cavalo». Quando faleceu (sou grande amigo do filho dele, meu primo) era bastante bem remediado. Rico, mesmo.

Teve um Avc tempos depois de o visitarmos e durante três dias agonizou no hospital de Vila Real de Santo António com os olhos abertos correndo da esquerda para a direita como se quisesse saber bem onde estava mas não estava mesmo cá já. Nada a fazer mesmo...