domingo, 4 de dezembro de 2011

Hilário da Palma Ventura, dos alcoutenejos mais inteligentes que conheci



Isto da escrita, só a sabe compreender quem a pratica.

Nunca escrevi por amizade e muito menos por encomenda, o que é prática vulgar. Nunca tive vocação para jornalista, mas sempre me senti bem a escrever, nem que fosse cartas para os amigos.

Lembro-me bem que quando cheguei a Alcoutim com os meus 28 anos, salvou-me do isolamento a circunstância de manter correspondência com dezenas de pessoas desde familiares a amigos.

Talvez não passasse um dia sem escrever para alguém.

Vem este pequeno intróito a propósito de tentar alinhavar meia dúzia de palavras sobre um saudoso amigo e não o faço por uma questão de amizade mas sim de justiça, pelo menos no sentido em que a tenho.

Conheci Hilário da Palma Ventura em 1975 quando com a esposa é colocado no Centro de Saúde de Alcoutim.

Não foi difícil entabular conversação e amizade com aquele alcoutenejo nascido no monte da Palmeira e originário de uma família rural.

Para aprender a ler e a escrever e obter aprovação no exame da 4ª classe, tinha de se deslocar diariamente aos Balurcos e se a memória não me atraiçoa, mais tarde à aldeia do Pereiro, onde faz exame da 4ª classe.

A criança Hilário, logo após a 4ª classe, tem de contribuir para o rendimento familiar e o seu primeiro trabalho é na estrada em construção entre Mértola e Vila Real de Santo António e sabem em quê? Como apontador. Escrevia bem e era eficiente nas contas. O encarregado viu logo o tipo de trabalho que era mais adequado. Tudo o que fosse de escrita passava pela sua mão com a supervisão natural do encarregado. O pai, o Sr. Ventura, que ainda conheci bem, era um dos trabalhadores braçais que ia vencendo a sua jorna.

Pouco tempo depois, alguém lhe arranja trabalho no Seminário de Faro, onde é trabalhador indiferenciado.

As suas capacidades não passam despercebidas à classe eclesiástica que procura um meio para que possa mudar de vida.

Bispo ou acessores conseguem obter da parte do Governo um subsídio mensal para que o jovem pudesse tirar o curso de auxiliar de enfermagem que realizou na cidade de Coimbra. Deve tê-lo feito com altas classificações mas sobre tal aspecto nunca se pronunciou.

[A entrada da Palmeira vendo-se a escola há muito desactivada. Foto JV, 2011]

Começou logo a trabalhar no Hospital da Universidade de Coimbra. Faz, entretanto, o Curso Geral dos Liceus e de seguida o Curso Geral de Enfermagem, pois só com habilitação deste tipo o podia realizar.

Casa com uma colega e como eram ambos de pequena estatura, os estudantes de medicina e os jovens médicos diziam com amizade que iam viver para o “Portugal dos Pequeninos”.

É instado por médicos e colegas no sentido de cursar medicina, respondendo-lhes sempre o mesmo que me respondeu: - Prefiro ser um enfermeiro razoável do que um mau médico.

Resolve ir com a esposa para Angola, onde trabalham por conta própria na então cidade de Nova Lisboa, hoje Huambo, e aí se encontrava quando se dá o 25 de Abril. Regressa naturalmente a Portugal com a esposa como já disse e é colocado no Centro de Saúde de Alcoutim acabado de inaugurar aparecendo aí jovens médicos no trabalho à periferia.

Hilário Ventura passava os tempos livres lendo tudo o que podia sobre a sua profissão. Tinha explicação técnica para tudo mas não a manifestava, a não ser em condições especiais.

Tenho algumas estórias a contar sobre ele.

Hilário, quando vem trabalhar para Alcoutim, era praticamente desconhecido dos alcoutenejos que se admiravam ao saber que era natural da Palmeira.

Um dia, no antigo café de João Guerreiro, na altura já arrendado, estava eu a falar com o enfermeiro Hilário e o Dr. João Dias, que já exercia a sua actividade em S. Brás de Alportel e que o conhecia dos tempos de Universidade. Entretanto, chegou outra pessoa que depois do enfermeiro sair perguntou ao médico:- Que enfermeiro é este? - e isto devido à sua baixa estatura . O Dr. João Dias respondeu de imediato: - Tomaras tu ter um quarto da inteligência que ele tem. Nunca me esqueci disto.

Pelo contacto que já tinha tido com ele já me tinha apercebido que além de ser um bom profissional era uma pessoa inteligente e culta, agora confirmado pelo Dr. João Dias.

Quando o meu filho que por volta dos 5 / 6 anos fez uma pequena cirurgia no Hospital de Loulé e o cirurgião soube que Hilário Ventura era enfermeiro em Alcoutim, disse-me logo que não era preciso lá ir para fazer o penso e tirar os pontos pois tinha plena confiança no trabalho do enfermeiro e efectivamente foi ele que o realizou. Ainda hoje o meu filho se lembra disso.

Um dia, ao cair da noite, estava em casa dele conversando enquanto fazia o jantar, visto que a esposa estava em Faro a frequentar qualquer curso ligado à profissão. Chega alguém à porta a chamá-lo. Apagou o fogão e veio logo para o Centro de Saúde. Vim, naturalmente, com ele. Era fim-de-semana e não havia médico. Traziam um indivíduo do Vascão que tinha dado um grande trambolhão quando andava a aprender a andar de motorizada. Trazia uma das pernas bem escalavrada. O enfermeiro Hilário deitou mãos à obra e eu ia ajudando naquilo que podia, pegando aqui e ali, dando isto ou aquilo. Fartou-se de coser e o paciente ia aguentando com estoicismo as dores. Aquilo metia-me uma certa impressão. Não sei quantos pontos foram, sei que foram algumas dezenas.

Depois de levarem o homem tratado para casa, voltou-se para mim e disse-me:- mas porque é que eu fiz isto e não mandei o homem para Vila Real?! É que eu só posso fazer isto mandado por um médico que assume a responsabilidade. Assim, se algo correr mal estou metido em trabalhos.

Hilário Ventura sabia que na 2ª feira de manhã tinha um jovem médico no Centro de Saúde em quem confiava.

No domingo, pegou no seu carro e fomos os dois ao monte do Vascão para saber como o doente estava e na segunda-feira de manhã foi buscá-lo para o médico ver e avaliar o trabalho.

Correu tudo bem e anos depois falei algumas vezes com o sinistrado recordando o assunto. Infelizmente já faleceu.

Havia um indivíduo, que era um homenzarrão e natural de Alcoutim, que tinha problemas psíquicos. Quando aparecia na vila era um terror, ainda que segundo parece, nunca fez mal e ninguém. Acabou por ir parar ao Centro de Saúde onde o enfermeiro Hilário, com a sua franzina figura, resolveu tecnicamente a situação. Hoje, já ninguém se lembrará disto.

Mais “estórias” teria para contar, mas as que deixo referidas são suficientemente justificativas.

Hilário Ventura era um acérrimo defensor da medicina preventiva, sobre a qual me fez imensas explicações alicerçadas em conceitos e elementos estatísticos que coleccionava.

Fez um levantamento populacional do concelho, com o auxílio de moradores nos montes, e onde entravam a indicação de doentes crónicos e outras situações que não posso precisar. Organizou um grande mapa onde todos esses elementos estavam referidos para uma orientação dos serviços primários.

Utilizei, no meu primeiro trabalho sobre Alcoutim, alguns destes elementos no que se refere à população dos “montes”, aliás, como é referido no texto.

Era fácil calcular que Hilário da Palma Ventura não iria permanecer por muito tempo em Alcoutim.

[O Palheto, o Barranco e o Cerro (Palmeira). Foto de JV, 2011]

Salvo raras excepções, como aconteceu com o Dr. João Francisco Dias, qualquer profissional permanecia muito pouco tempo em Alcoutim, por tudo o que isso encerra.
Alcoutim deu e continua a dar um grande número de profissionais de enfermagem. Quantos exercem a sua actividade em Alcoutim? Que eu saiba, nenhum. Quantos exerceram? Que eu saiba só o Hilário.

Quantos chefes de Repartição de Finanças pediram a sua colocação em Alcoutim? Que eu saiba, só um e muito transitoriamente. Todos os outros, mesmo com o lugar vago, rumaram para outras paragens.

Quantos tesoureiros da Fazenda Pública pediram a sua colocação em Alcoutim? Ainda que o lugar estivesse vago, dos dois que existiram, um pediu a sua colocação em Peniche e o outro em Faro.

Nada disto significa menos amor pela terra natal, significa sim procurar evoluir nas suas carreiras profissionais e ter melhores condições de vida, mesmo que aqui pudessem estar isentos de IRS.

O dinheiro nunca foi nem será para muitos tudo na vida. Faz falta mas outros valores se “alevantam”.

Hilário da Palma Ventura foi exercer em 1978 ou 79 a sua profissão, de que tanto gostava, para a cidade de Faro e na década de 80 ainda teve a amabilidade de me visitar na cidade onde resido desde 1980.

Fez parte, na qualidade de independente, do primeiro executivo da Câmara Municipal, eleito após o 25 de Abril.

Faleceu na cidade de Faro em 1998. Jaz no cemitério da vila de Alcoutim.

Não deixou descendentes.