sexta-feira, 16 de dezembro de 2011
Crónicas e Ficções Soltas - Alcoutim - Recordações - XIX
Escreve
Daniel Teixeira
O NATAL EM ALCARIA ALTA
Nunca passei um Natal no Monte de Alcaria Alta ou noutro do Concelho. Uma das poucas memórias que não posso ter, mesmo. Não sei como era o Natal no Monte e quando lá regressava, nos meus tempos de criança, era já quase final do ano seguinte pelo que a haver conversas para pôr em dia essas seriam seguramente outras mais recentes.
Facto é que também nunca vi brinquedos nas mãos dos miúdos de lá. Acho que nem eu os tinha ou levava para lá...não fazia parte nem das possibilidades nem dos nossos interesses na altura. Muito sinceramente nem sequer me lembro de ver por lá uma miúda a brincar com bonecas, coisa que seria a mais possível.
Lá pelos meus 12/14 anos começou a virar-se a vocação do Menino Jesus do sector da doçaria ligeira para outros caminhos (Pai Natal é coisa que nunca conheci naquele tempo como referência). O Paulito (em Faro) recebeu num Natal um stick de hoquéi devidamente decorado com as cores do Sporting, para jogar aquilo a que chamávamos hóquei em campo com os nossos sticks feitos a martelo e com martelo.
Era um pau comprido para agarrar, por vezes com o topo limado ou simplesmente lixado ou nada e duas peças de madeira em baixo com a devida angulação (mais de 90º a roçar os 100/120 graus) pregadas, quanto mais forte melhor. Era o nosso auto brinquedo.
O stick «amaricado» do Paulito durou pouco tempo mesmo: não resistiu às investidas dos defesas ou dos atacantes. Ainda se tentou remendá-lo com duas ripas na fractura mas não aceitava prego e fita adesiva ainda não havia e acabaria sempre por não resultar: os embates eram fortes e foi verdadeiramente um erro de cálculo do Menino Jesus ter oferecido aquilo ao Paulito.
De qualquer forma a única glória que ele nos trouxe foi o facto de ter inicialmente contribuído para o aumento das assistências, ter aumentado o leque de «clubes» adversários porque em termos de jogo jogado era um verdadeiro desastre. Mas foi interessante vê-lo durante o pouco tempo que durou. A bola por norma era uma pedra tão redonda quanto possível sem achatamento obrigatório.
[Presépio Algarvio]
Piões compravam-se com alguma facilidade e berlindes tinham duas fontes de chegada: a compra pura e simples e as garrafas de «sofrutos» que havia na altura. A invenção da carica veio estragar-nos a vida, neste plano.
Mas no Monte nada disto contava nem nada disto existia: as nossas brincadeiras não tinham qualquer brinquedo e embora de uma forma geral o direito a ter um canivete tivesse lugar logo cedo os recortes que se faziam nos paus de esteva ou de loendro eram sobretudo auxiliares do pouco trabalho que fazíamos e na grande parte do tempo para ter as mãos entretidas. Portanto por aquilo que deduzo o Natal no Monte seria a ceia, algumas filhoses e empanadilhas e pouco mais.
Couve havia, até demais para o meu gosto, e embora fosse saborosa pecava pela repetição e tinha entrada em quase todos os pratos. Bacalhau era raridade. A abóbora e o frade, cozidos com casca em fatias tipo melão, depois de limpas algumas agruras e rugosidades eram companheiros do grão, do feijão seco, das batatas. Acho que foram os montanheiros os inventores indirectos do caldo knorr pois que era sempre colocado um bocado de courato ou osso com uma nesga de carne em cada panela. Mas comia-se à farta, mesmo, nem que fosse uma simples açorda com pão, azeite, coentros, alhos esmagados a «murro» com a testa do pão e ovos escalfados.
Fiz acima a resenha dos brinquedos ou auxiliares da brincadeira citadina para tentar mostrar uma coisa que parece desde logo evidente: sem meios ou com poucos meios nós na cidade tínhamos brinquedos e coisas para brincar: no Monte havia alguns meios mas não havia a ideia para a sua realização; não fazia parte do ambiente envolvente.
Ia-se ao pássaro com ratoeiras e aqui cabe dizer que a biodiversidade não deve ter ficado muito prejudicada com a nossa actividade uma vez que se apanhavam dois, três pássaros, por vezes seis, em dias de sorte para nós e de azar para a passarada. Ficávamos por princípio na eira do senhor Vilão, logo à entrada do Monte, no lado esquerdo de quem vem de Giões, com bastante palha ainda não armazenada e alguma semente por um lado e por outro, fora e dentro da eira propriamente dita.
Escondíamo-nos no casarão em frente e ficávamos deitados de barriga para baixo em silêncio espreitando pelas largas frestas da porta. Os pássaros eram todos pequenos, cotovias sobretudo e pardais e tirar-lhes as penas era o nosso trabalho dentro do casarão cada vez que um caía. Depois, comê-los, dada a sua pouca quantidade era quase um ritual: foguinho de esteva, pau com bico para virar e nem sal era preciso. Era verdadeiramente delicioso...
Caçar com os galgos, proibidíssimo fora da época de caça e dentro dela era também uma das nossas «brincadeiras»: por vezes apanhávamos (apanhavam os cães) um coelho, lebres raramente. Esses vinham para casa, para serem cozinhados pelas mães ou avós e havia um outro ritual nisso em casa dos lavradores. Comíamos a «nossa» caça depois dos ganhões cearem e éramos os únicos à mesa...em certo sentido acho que o objectivo implícito neste ritual era fazer com que cada um de nós tivesse presente que a nossa ceia era um produto do nosso trabalho, do nosso esforço e que isso nos fazia mais homens.
Natal, pois, não fez parte das minhas experiências campesinas nem me lembro de ser dada grande importância a esse facto nem sequer no plano religioso. Provavelmente a Igreja em Giões faria o seu festejo litúrgico mas a parte chamada de profana não existia simplesmente pelo que me lembro e neste caso posso dizer que me lembro de tudo o que não me lembro.
Ora e a ser correcta a minha memória (se o não fosse teria certamente uma ideia) viver sem ter Natal e sem ter prendas será possível. O que me leva a pensar na avalanche de «espírito natalício» que abunda actualmente nas cidades. Festa da família também não haveria, seguindo este princípio, mas de facto pouca falta faria porque a família estava sempre presente mesmo estando ausente.
Quase todas as pessoas que foram referência campestre para mim já faleceram...e talvez por isso, ou mais por isso, raramente vou a Alcaria Alta...numa das minhas deslocações de dois ou três dias neste segundo período (pós quase 30's) cruzei-me com a senhora Antonica que foi mãe de dois dos meus grandes amigos de lá.
Lavradora, estava na altura a lavar roupa junto ao poço de uma horta o que nunca a vi fazer antes porque tinha sempre gente para o fazer. Estranhou que eu não a fosse visitar a casa quando ia ao Monte «eu que tantas vezes lá fui e tanto tempo por lá ficava» ...com os seus filhos, não acrescentou ela mas acrescentei eu a mim mesmo interiormente.
Arranjei uma desculpa esfarrapada e a promessa de lá ir ainda antes de voltar à cidade. Nunca o fiz...manter memórias é por vezes um trabalho difícil que implica para mim também não destruir a imagem que se tem guardada...