quinta-feira, 2 de abril de 2009
Mestre Carlos, um artesão de qualidade e ... não só
Escreve
Gaspar Santos
Chamava-se Carlos Assunção e para alguns tinha a alcunha de “Remexido”. Foi uma figura marcante em Alcoutim entre os anos 40 e 90 do século passado. Natural de Tavira, casou em Alcoutim onde criou duas filhas, Maria Elvira e Fernanda, nossas amigas de infância.
Conheci a sua oficina em três locais: o primeiro na Rua D. Sancho II numa das últimas casas à esquerda de quem sobe; o segundo ao lado da Igreja da Misericórdia. Esta casa veio a ser sacrificada com a estrada de penetração na Vila. Finalmente, a oficina e residência na actual Rua Prof. Trindade e Lima. Em qualquer destas casas, quem estudava, trabalhava fora, ou estava na tropa, era “obrigado” a uma visita ao mestre Carlos no dia da chegada ou no dia seguinte. Eu também segui essa prática.
[Cais velho e cais novo, 1965]
Era uma pessoa competente na sua profissão, fazia trabalho de muita qualidade geralmente muito apreciado. Só ele fazia a contento o adequado sapato ortopédico a uma conterrânea nossa, deficiente dum membro inferior. Como era muito habilidoso, alargava ainda a sua actividade a tarefas de mecânico de bicicletas, desenrascando sempre todos os que estavam em dificuldade, com prontidão e boa vontade.
Nos últimos anos que morou em Alcoutim, ainda socorreu alguns automobilistas, dispensando-lhes alguns litros de gasolina, quando ali apareciam aflitos na procura de bomba que era suposto uma sede de concelho ter.
O Mestre Carlos irradiava energia e uma permanente boa disposição. Tinha uma enorme predisposição para o chiste e a brincadeira. Espontaneamente criava graças contagiantes. No género, foi uma das pessoas mais brilhantes que conheci.
Era, porém, analfabeto. Caso contrário e convenientemente formado teria ido longe na criação e na representação teatral.
[O guerrilheiro Remexido]
A alcunha de Remexido, não era propriamente dele. Era da família. Penso que do seu pai e teria sido inspirada na conjugação da sua grande energia com a personalidade de outra figura histórica algarvia a quem chamavam Remexido.
Às vezes as suas brincadeiras continham uns laivos de humilhação para quem era seu alvo, mas a intenção não era malévola. Só queria rir e fazer rir recuando logo que via que a sua brincadeira estava a ir longe de mais e a ser ofensiva.
Era ele que com o mestre Cândido Xavier e o Lázaro Martins animavam todos os anos o Carnaval de Alcoutim.
Brincava com toda a gente; com os fracos, e até mesmo com os poderosos, sabendo sempre até onde poderia ir. A verdade é que as pessoas, alvo das suas partidas nunca se ofenderam ao ponto de tirarem desforço físico, embora por vezes respondessem com insulto. Havia, com certeza, pessoas que não simpatizavam com as suas brincadeiras. Mas não lhe conheci inimigos.
Comigo em criança, quando ia pedir-lhe uma porção de cera ou uns atacadores para os sapatos dizia invariavelmente: toma lá, mas leva mais outra coisa que o teu pai me pediu. E lá vinha ele com um embrulho contendo uma pedra, uns sapatos retirados ao lixo, ou outra coisa sem valor. Só caí na primeira vez!
Em política, nesses tempos, não incomodou nem foi nunca incomodado pelo fascismo.
Referirei algumas das suas partidas, para exemplificar, pois cada pessoa que o tivesse conhecido deve ter dúzias destas para contar:
1- Uma manhã na obra de construção do Cais mestre Carlos pediu umas cascas de eucalipto para fazer um chá. À noite convidou os capatazes da obra para beberem um copo com estopeta de atum. Eles nunca tinham comido esse petisco, mas ao mastigar estranharam o sabor a casca de eucalipto e cuspiram. Entretanto o mestre Carlos deliciava-se de gozo com o resultado da partida e... com pedaços de estopeta, semelhante à casca de eucalipto desfiada, que ele sabia onde estava no prato. No fim foi uma risota inclusive das vítimas. Mas tinha sempre um prato verdadeiro que vinha a seguir.
2-Um tio de sua mulher todos os dias visitava a oficina. Já via mal mas deu para ver umas cautelas de lotaria antigas que o mestre tinha espetadas num prego. O tio mostrou-se interessado em levar uma. Sim senhor, depois paga disse ele. Passados dias o tio perguntou pelo resultado. Tem o mesmo dinheiro respondeu o mestre, pode deixar essa e levar outra. E assim andou várias semanas. Até que outra pessoa, não sabendo que era uma partida revelou a verdade. Mas não cobrou um centavo ao tio!!
3-Um dia um homem do Marmeleiro (localidade a cerca de 3,5 km de Alcoutim) entrou na oficina. O mestre Carlos disse-lhe: ainda bem que veio. Tenho aqui uma pedra de gelo para entregar ao lavrador que está doente. O homem lá foi com aquele peso, provavelmente em cima do burrico onde se deslocava. Ao desembrulhar a encomenda o lavrador disse para o homem: o mestre Carlos já te enganou. O que aqui vem é uma enorme pedra!
Também o mestre Carlos foi vítima de algumas partidas de que não gostava mesmo nada.
Ele também já esperava ser alvo de algum tipo de partida. Assim, para evitar espetar algum prego nas nádegas, um tipo de partida previsível onde havia tantos pregos, fazia sempre uma verificação cuidadosa, manualmente, sempre que se sentava na sua cadeira de trabalho.
No entanto, fizeram-lhe uma partida que ficou célebre e o marcou para o resto da vida:
Naquele tempo havia muito peixe e todos pescavam à linha com certo sucesso. O mestre Carlos um dia tentou a sua sorte. Pescava junto aos cais e alguém o convidou para tomar cerveja. Ele deixou a pesca e foi beber. Quando voltou e começou a levantar a pesca esta mostrava um certo peso. Qual não é o seu espanto quando recolheu o resultado da pesca… uma bota velha. Na muralha todos começaram a rir. O mestre Carlos nunca mais foi pescador desportivo.
[Praça da República em 1969]
Não consigo encontrar no meu léxico, um adjectivo depreciativo que se lhe aplique. Nem o de bêbedo, embora ele apanhasse de vez em quando uma boa bebedeira. Às vezes, em tal estado que, sendo ele um exímio ciclista, conseguia equilíbrio sobre uma bicicleta quando não o conseguia sobre os seus pés.
O Mestre Carlos possuía um cérebro privilegiado, inteligente, instrumental, uma poderosa ferramenta que não teve oportunidade de canalizar para outro uso mais “nobre”. Ele não atingiu o nível de incompetência como postula o Princípio de Peter, porque a sua inteligência dominava e vogava acima do meio cultural reinante e que a sua cultura e fraquíssima preparação escolar lhe permitiam. Ele ”via” tudo que havia para ver muito bem, com muita clareza e nitidez e sem dificuldades a ultrapassar. O seu humor era infantil. Gostava de fazer partidas aos outros. Mas não tinha poder de encaixe suficiente para suportar as partidas de que fosse alvo. As partidas e brincadeiras que fazia tinham algo de ligeiramente sádico.
Em resumo, a pessoa do mestre Carlos era no meu entender suportada por quatro pilares: Um cérebro poderoso, uma energia psíquica enorme, um certo narcisismo (o desejo de chamar a atenção sobre a sua pessoa) e um certo sadismo moderado. Era como dizem no Brasil: Artista – espécie de gente que nunca vai deixar de ser criança.
A este homem que considero bom, brincalhão, mas sério, deixo a minha homenagem.
Pequena Nota:
Acabamos de apresentar mais um interessantíssimo artigo do nosso amigo, Eng. Gaspar Santos que assim vai enriquecendo o conteúdo deste blogue cujo lema é divulgar Alcoutim na tríade passado, presente e futuro, dando a conhecer a sua história, usos, costumes, etc. como se justifica com os temas apresentados.
Conheci o Mestre Carlos que aqui é bem retratado por quem o conheceu e interpretou melhor do que eu.
É claro que existem muitas mais histórias sobre o Mestre Carlos, algumas deturpadas, como é natural, outras que não é fácil contar aqui.
Uma coisa é certa, esta recordação escrita de Carlos Assunção fazia falta e começa a faltar quem o conheceu bem.
Obrigado, Amigo.
JV