Dedicatória
Aos meus netos Clara, Ana, Nuno e João
Dedico este contarelo
Natal de 2001
Escreve
José Temudo
A noite caíra célere sobre a cidade-terrivelmente fria, escura, profunda, densamente pontilhada de brilhantes estrelas.
O comércio fechara e as pessoas recolheram pressurosas a casa. Nas ruas, não ficou vivalma.
Seguindo uma tradição multissecular, as famílias iam celebrar, uma vez mais, no aconchego dos lares, em paz e com alegria, o nascimento de Jesus.
Debaixo da ponte que une as duas partes da velha cidade, num dos arcos assente na margem direita do rio, um mendigo, sentado no chão, com os braços em volta das pernas flectidas, aquecia-se ao calor de uma fogueira. A luz ténue e vacilante das chamas não permitia ver se o homem era novo ou velho, magro ou gordo, alto ou baixo. Permitia ver, isso sim, que estava andrajosamente vestido; que a calvície o despojara de boa parte do cabelo; e que a barba, negra e volumosa, lhe encobria o rosto de que só se salvavam os olhos brilhantes e o nariz batatudo. O homem, quieto e de olhos fitos nas chamas da fogueira, recordava o que lhe tinha acontecido umas horas antes.
Nas traseiras de um edifício de apartamentos, ele procurava, num contentor de lixo, colocado junto da cozinha de um restaurante, restos de comida para matar a fome. Uma mulher que estava à porta da cozinha, interpelou-o, em tom firme, com alguma aspereza:
- “Que está você a procurar aí? Feche já o contentor. “Depois, olhando-o de alto a baixo, disse-lhe:
“Espere aí. Eu venho já.” E entrou na cozinha.
Enquanto esperava, o mendigo ouviu a seguinte conversa:
- “Está lá fora um pobre vasculhando no contentor. Vou dar-lhe uns restos do almoço.”
-“Não, Maria, não lhe vais dar nada. Não quero ver mendigos à volta do restaurante. Se há coisas de que os clientes não gostam de ver enquanto comem é a cara de famintos de olhos postos nas garfadas de comida que levam à boca. Já te esqueceste disso? Corre com ele”.
-“Eu não esqueci, Zé. Mas é por ser o dia que é. Parte-se-me o coração ver o desgraçado a vasculhar no lixo, em busca sabe-se lá do quê, podendo eu dar-lhe uns restos limpos de comida que sobraram do almoço.”
O homem ficou calado por um breve momento, como que a pensar. Depois disse:
-“Bem. Dá-lhe lá os restos. Um dia não são dias. Mas, deixa-lhe ficar bem claro que não quero voltar a vê-lo por aqui a rondar o restaurante”,
Passados alguns minutos, a mulher voltou com um saco na mão.
-“Pegue”, disse ela entregando-lhe o saco. “Dá-lhe para comer agora e para logo à noite, à ...” – Ela ia dizer “à ceia”, mas o pudor travou-lhe a língua. E quando ele se preparava para lhe agradecer, a mulher despediu-o, já com um toque de brandura na voz:
-“Pronto, pronto; agora vá-se embora... por favor.”
Foi o que ele fez, sem hesitar. Tão depressa quanto lhe permitiam as enfraquecidas pernas entorpecidas pelo frio intenso que o penetrava, sem dó nem piedade, desceu a rua até ao rio e abrigou-se num dos arcos da ponte, exactamente aquele onde se encontrava agora. Com dificuldade, porque os dedos estavam engaranhados, desfez um nó que a mulher dera nas asas do saco. Dentro, desafiando a sua fome nunca antes saciada, estavam três pequenos tabuleiros cheios de comida boa, limpa, cheirosa. Havia, ainda, meia garrafa de vinho, dois bijous e, embrulhado num guardanapo de papel, uma rabanada. Em tudo aquilo, na esmola em si mesma e no modo como lhe tinha sido dada, havia um toque de respeito a que não estava habituado. Com os olhos rasos de lágrimas, pensando na mulher do restaurante, murmurou:
-“Que as mãos nunca lhe doam!”
Mas a fome não se compadece com emoções, nem o mendigo tem horas ou maneiras para comer. Servindo-se das mãos, atirou-se à comida com sofreguidão e só parou quando o estômago ficou cheio, a estoirar. Nos tabuleiros, ainda ficara comida bastante para mais tarde, quando a fome voltasse. E ela voltaria, disso tinha ele a certeza.
Era isto que ele recordava, absorto, com os olhos fitos nas chamas da fogueira, quando a sua atenção foi desviada para um ponto, para além da zona iluminada pelo lume, onde lhe pareceu ouvir o esmagamento de ervas secas, como se alguém se estivesse arrastando, muito vagarosamente, na sua direcção. E era exactamente isso que estava a acontecer. Primeiro, ao nível do chão, surgiram dois pequeninos farolins, brilhando intensamente. Depois, centímetro após centímetro, como se estivesse a nascer da noite, foi emergindo na claridade, um pequeno cão. O rabo caído entre as patas, a barriga a roçar o chão, as orelhas, atentas, bem espetadas no ar, os olhos fitos no homem e a lentidão com que se deslocava para junto da fogueira, eram sinais bem visíveis do medo que o animal sentia. E parou completamente, quando o mendigo, com voz colérica, lhe gritou, com o braço estendido, na direcção do escuro:
-“Embora daqui! Já!”
O cão parou, é certo, mas não arredou pata. Era sempre o medo que tinha de ser maltratado. Mas maiores ainda, eram o frio e a fome que o atormentavam e que mal podia suportar. Por isso, gania, humilde e submisso, como a querer dizer: “bate-me, mas não me escorraces, que morro de frio!” O mendigo não se compadeceu com a situação do desgraçado animal, que era, bem vistas as coisas, em tudo semelhante à sua. De má catadura, pegou num tição grosso, pesado e a arder vivamente e preparava-se, já de braço no ar, para o arremeter contra o indefeso animal, quando irrompeu pela mente, como um eco reboando pelas quebradas duma montanha, a voz da mulher do restaurante, tentando demover a intransigência do marido: “... é por ser o dia que é. Parte-se-me o coração ver o desgraçado...” A lembrança destas palavras teve o condão de impedir que o gesto maldoso fosse levado até ao fim. Nos olhos do mendigo, iluminados pelo lume, as chamas da ira apagaram-se rapidamente e o tição foi lançado para a fogueira. O cão percebeu a mudança: sossegou e, de orelhas pendidas, deixou de ganir. A partir deste momento, a situação era outra, bem diferente. Mendigo e cão continuaram a olhar um para o outro. O cão, aguardando um gesto amistoso do mendigo que lhe permitisse aproximar-se dele. O mendigo, observando o cão, tentando perceber a sua presença ali. Via bem que era um animal de estimação, de raça apurada. Pequeno, de pernas curtas e com pés de cómoda. O pelo era comprido, a cor alternando o branco com manchas castanhas, de várias tonalidades. A cauda, larga e comprida, fazia lembrar um espanador. O focinho era curto, os olhos grandes, redondos. Era um animal muito bonito, a despeito de alguma sujidade que se lhe notava no pelo comprido e ondulado. O mendigo observava e ia falando com os seus botões: “é evidente que, ao contrário de mim, que andei sempre aos trambolhões, que da vida só recebi miséria e maus tratos, este bicho já conheceu melhores dias. Com toda a probabilidade, nasceu num canil de luxo e, ainda por desmamar, foi vendido a alguém necessitado de companhia, talvez um reformado que vivia sozinho. Foi criado sem que nada lhe faltasse, nem comida, nem conforto, nem carinho.” Depois, falando mesmo para o cão, perguntou:
-“Que te terá acontecido para estares agora aqui? Deixa-me adivinhar: apanhaste a porta da casa aberta e resolveste dar uma volta para ver como era o mundo. Satisfeita a curiosidade, quiseste voltar a casa mas não atinaste com o caminho. Foi isso?
Esta explicação não lhe agradou, pois os cães não costumam perder-se: por isso, avançou com esta outra:
-“Ou então, morreu a pessoa com quem vivias; vieram os herdeiros, levaram a mobília e tudo o que encontraram com valor e a ti, que já não fazias falta a ninguém, puseram-te na rua.”
Esta segunda hipótese agradou-lhe mais que a primeira.
-“Foi isso”, disse, “levaram o que prestava e a ti, pumba, pontapé no cu e rua, que é casa de cães.”
Entretanto, a piedade fora abrindo caminho e apoderara-se já do coração do mendigo que agora resolveu partilhar com o cão a comida que ainda tinha. Tirou do saco um dos dois tabuleiros que restavam. Acicatado pelo cheiro da comida que lhe chegou às ventas, o cão, num ápice, postou-se junto do mendigo. Com o rabo a dar-a-dar, as orelhas espetadas, não tirava os olhos, redondos e bugalhudos, a rebrilhar de gula, do tabuleiro.
-“Isto é para ti, come!” disse-lhe o mendigo, despejando no chão uma boa parte da comida. Como seria de esperar, o cão não se fez rogado. Engoliu tudo, num repente. E voltou a ficar de olhos fitos no tabuleiro, como que a pedir a segunda dose.
E o mendigo, agora com relutância, fez-lhe a vontade.
-“Bem,” foi-lhe dizendo, enquanto deitava no chão um pouco mais de comida:
-“Para o tamanho que tens, parece-me que comes de mais.”
Depois, metendo o tabuleiro no saco, disse:
-“Agora, não comes mais. O que resta, fica para amanhã.”
Levantou-se e aventurou-se no escuro. O cão seguiu-o. Voltaram uns minutos depois. O mendigo sobraçava um pequeno molho de ramos secos com que avivou o lume. E voltaram aos lugares que antes ocupavam à volta da fogueira. O silêncio só era quebrado pelo crepitar do fogo consumindo os ramos secos.
As fogueiras sempre tiveram o condão de desatar a língua aos homens. E o mendigo não fugia à regra. Também ele sentiu a necessidade de falar. Há já quanto tempo as pessoas não falavam com ele? Ralhos e palavras duras de expulsão, ouvia muitas vezes, mas conversa, uma verdadeira conversa de agora dizes tu, agora digo eu, já nem se lembrava de ter tido alguma vez. É certo que o cão não falava, mas ouvia e alguma coisa havia de entender. Disso, não tinha dúvidas. E uma vez que acreditava nisso, falou assim:
-“Sendo certo que vais ficar comigo, gostaria de saber o teu nome, como eras chamado pela pessoas com quem vivias antes. Se eu puder sabê-lo, continuarei a utilizá-lo e tu serás, presume, mais feliz”.
O cão ao ouvi-lo falar mais brandamente agitou a cauda. E o mendigo continuou:
-“Não precisas de dizer que não sabes falar. Eu sei isso muito bem. Mas sei, também, que há muitas maneiras de matar pulgas. Oh se sei!” E riu-se, a bom rir, da graçola. Depois, retomou o fio à meada:
-“Vai ser assim: eu vou dizer nomes, nomes que as pessoas costumam dar aos cães de estimação, assim como tu. Tenho a certeza de que se tiver a sorte de dizer o teu, tu não deixarás de me dar sinal de que acertei. Entendido?”
O cão, de olhos fitos nele e de orelhas espetadas no ar, parecia estar a postos.
-“Então, vamos a isto”, disse o mendigo, que logo deu início à sondagem: dizia um nome e ficava, por um breve momento, observando o animal; depois, outro nome e nova observação. E assim foi dizendo todos os nomes que lhe vieram à cabeça: “Bolinhas”, “Lulu”, “Fly”, “Farçola”, “Fifi”, “Fredy”, “Jordy”, e outros mais. Mas o cão manteve-se impassível, nunca dando sinal de reconhecimento de qualquer deles. E o mendigo desistiu, conformado com o insucesso do seu expediente.
-“Bem”, disse para o cão, “perdeste o nome, mas eu vou dar-te um outro; verás que não perdes com a troca”.
Durante uns bons momentos, ficou calado, pensativo, buscando um nome adequado. Não tendo encontrado nenhum que lhe agradasse, tentou consolar o cão:
-“Olha”, disse; “bem vistas as coisas eu também não tenho nome. Tal como tu, também já tive um. Mas há já tanto tempo que ninguém o usa, que eu não viraria a cabeça se alguém me chamasse por ele.”
Parou de falar enquanto deitava mais uns ramos secos na fogueira. Reavivado o lume, retomou a conversa:
-“Sabes como as pessoas me chamam? Queres mesmo saber? Pois eu digo-te. Chamam-me “Eh, tu aí”. É assim que as pessoas me chamam, os polícias e os outros. À força de assim ser chamado, habituei-me e agora, quando ouço “eh tu aí”, já sei que estão a falar comigo. Como vês, o nome não faz falta”.
O mendigo dizia isto, como se assim quisesse consolar o cão. Mas, bem no seu íntimo, sabia que não era assim, que o nome faz parte da nossa identidade, por vezes, da nossa própria personalidade.
E era por isso que continuava a olhar para o cão, como se buscasse inspiração para o baptizar. E foi o que aconteceu. Ao olhar para a cauda do animal, longa, larga, franjada, a ideia surgiu-lhe, iluminando-lhe o olhar, como um relâmpago no céu.
-“Já sei”, disse, a rir-se de contente, “vou chamar-te “Franjinhas”.
O cão ao ouvir “Franjinhas”, reagiu de imediato. Terá sentido que voltava aos bons tempos de conforto, da fartura e do carinho? Em menos tempo do que o diabo leva a esfregar um olho, o feliz animal estava com as patas dianteiras no peito do mendigo, procurando e conseguindo lamber-lhe o rosto, num frenesim que quase parecia loucura. O mendigo, surpreendido ao princípio, depressa compreendeu que, ao baptizá-lo, mais não tinha feito do que acertar em cheio, no verdadeiro nome do cão. Comovido, ele também, deixava-se lamber, enquanto, carinhosamente, passava as mãos pelo pêlo espesso e ondulado do animal. A pouco e pouco, foi-se esmorecendo esta exuberante manifestação de mútua alegria. Mas o cão já não voltou para o lugar que antes ocupava do outro lado da fogueira. Confiadamente, enroscou-se entre as pernas estendidas do mendigo que não se cansava de dizer e de repetir:
-“Franjinhas, heim? Quem havia de dizer!
Olhando, agora, para o Franjinhas, sentia que a solidão, a tristeza, a angústia e o medo que sempre o tinham acompanhado ao longo da sua desditosa vida, cediam o lugar na sua amargurada alma a uma réstia de paz, de alegria e de esperança. O Franjinhas seria o companheiro e o amigo leal e dedicado que o acompanharia fosse para onde fosse, que nunca o abandonaria acontecesse o que acontecesse. E assim pensando, adormeceu tranquilamente, em paz com o mundo e consigo mesmo.
Vindas do alto da cidade, quebrando o silêncio absoluto daquela noite desumanamente fria, soaram esbatidas e arrastadas, as doze badaladas da meia noite.
Dos quatro cantos da cidade, pequenos grupos de pessoas apressadas confluíam para a Capela do Asilo, a fim de participarem na tradicional Missa do Galo. Da boca do piedoso sacerdote, velhinho de muitos anos, esperavam ouvir a história enternecedora do Menino Deus, nascido nas palhinhas de um desprezível estábulo, que veio ao mundo para ensinar aos homens o único caminho que conduz e abre as portas do Céu – o Amor.
O contarelo acaba aqui. Espero que vos tenha agradado.
Para o ano, quem sabe? Talvez haja, ainda, um outro contarelo.
Natal de 2001.