quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

Passatempos radicais dos anos cinquenta e sessenta...

Pequena nota
Mais umas memórias do nosso colaborador Amílcar Felício, “contadas” no seu estilo característico apreciado por muitos dos nossos leitores.
Esta prática da juventude naquela época era comum a todos os meios rurais, afinal como Alcoutim era, apesar de ser sede de concelho.
Sempre temos ouvido contar “estórias” destas por onde passámos, muitas delas com pormenores picarescos.
Nunca nos calhou entrar numa de galinhas mas fomos autor, em terras da Beira de um surripianço de chouriças que estavam no varão a curar. Eram três e metemo-las no bolso da gabardina. Depois da crítica que o grupo fez ao proprietário por não nos ter convidado a prová-las, foi por um de nós convidado a irmos provar as dele à sua casa.
Primeiro vieram umas tiras de bacalhau cru e temperado à maneira portuguesa (todos nós sabemos do que se trata) e só depois apareceram as chouriças.

- Estas são boas, mas as minhas são melhores, comentou o roubado.

A gargalhada foi geral.

Ah malandros que já me enganaram!

Isto passou-se há cinquenta anos!

Amílcar, tanto em Alcoutim como nos montes vizinhos já não é fácil encontrar galinácios. A habilidade já não pode ser posta à prova!

Nem muge há, fará galinhas!

Com um abraço do


JV





Escreve


Amílcar Felício




Alcoutim dos anos 50/60 do século passado era uma comunidade fechada sobre si própria e que se debruçava quase exclusivamente ou para o rio ou para Sanlúcar, o que ajudava a cimentar o crescimento de fortes laços por vezes quase familiares entre os alcoutenejos. Do Alcoutim daquela época quase nada sobrevive e convenhamos que os tempos e os afectos também já não são os mesmos. Hoje em dia Alcoutim tem outros horizontes e naturalmente, nasceram-lhe outros amores também: Algarve, Allgarve ou All´garve já nem sei como o baptizaram, Televisão, Computador, Internet etc., etc., etc. Dizia-me a minha Tia Mariana há dias quando lhe desejava Um Próspero 2011 (!) e lhe perguntava se a festa tinha sido rija em Alcoutim: Oh filho, não houve nada, foram todos lá p´ró Algarve...

É verdade que não tínhamos belas canoas para deslizar céleres no Guadiana nem extraordinárias instalações de Clubes Náuticos como as que existem actualmente, nem campos de futebol com relva natural ou artificial, nem motas de água ou “catamarans” para passeios ou para fazer a travessia para Sanlúcar. Também não tínhamos praias com todos os requisitos que constituíssem um pólo de atracção para turistas, nem nos passeávamos em bicicletas de corrida e ainda estávamos muito longe dos computadores que nos levassem à aventura por esse mundo fora etc., etc., etc.

[Centro Náutico de Alcoutim. Foto J.V.]

Não tínhamos nada destas coisas, hoje em dia tão comezinhas... mas a verdade é que com a lancha do Xico Balbino e com a Fonte Primeira desenrascávamo-nos à grande, limpando-lhe os tojos e marcando-lhe com cal as linhas de campo quando havia uma jogatana mais a sério. Inventávamos quase tudo à nossa medida e até nos sentíamos uns felizardos. Fico sempre a pensar para os meus botões quando vejo a juventude dos nossos dias usufruir daquela panóplia de entretenimentos: devem pensar que já não lhes falta mais nada... mas nem lhes passa pela cabeça o que perderam! Efectivamente, naqueles tempos acontecia como se diz vulgarmente "deitávamos os foguetes, fazíamos a festa e íamos apanhar as canas". Mas em contrapartida nessa criação conjunta cresciam cumplicidades, afectos e amizades que perdurariam pela vida fora e que compensariam de que maneira todas estas modernices. E querem acreditar que me sinto um milionário por ter vivido aqueles tempos e enchido a carteira e os bolsos de afectos?

Longe de mim qualquer tentativa de branquear tempos de uma profunda pobreza que grassava no seio de algumas famílias alcoutenejas nos anos cinquenta ou sessenta. Deixem-me lá fazer de poeta pela boca da Tia Ana mulher do Ti Justo carteiro, pois ela melhor do que eu, sentindo a morte por perto caracterizava em contraponto para a filha aqueles tempos terríveis, falando dos belos tempos que entretanto estava a viver já nos anos setenta: Ai filha, agora que o mundo está a ficar tão bonito é que eu vou morrer! Mal sabia ela que o outro mundo tão bonito que ela conhecia igualmente, o mundo dos afectos, das amizades desinteressadas e da solidariedade começava irremediavelmente a desmoronar-se para dar lugar quase exclusivamente ao Mundo das Coisas, do individualismo ou do salve-se quem puder da sociedade de consumo que vinha a caminho. Morreu feliz certamente, convencida de que os dois mundos iriam melhorar cada vez mais, não assistindo à desgraça dos tempos que estamos a voltar a viver ...

[Rua Portas de Mértola. Foto JV, 2010]

O dinheiro era um bem escasso de uma maneira geral e assim era preciso inventar tudo. E imaginação era o que não nos faltava felizmente. Um dos passatempos preferidos era a confraternização entre o pessoal à volta de uma galinha bem confeccionada, que ainda se tornava mais saborosa se tivesse sido gamada. Era a aventura radical do planeamento da "apanha" e do transporte do galináceo à socapa, era o trabalho conjunto da confecção e finalmente o petisco meio às escondidas, a confraternização e tudo o mais que se lhe seguia.

E era barato sabem: só precisávamos de pagar o vinho! O estratagema era quase sempre o mesmo para não deixar rasto. Torcíamos o pipo ao bicho ainda dentro do galinheiro pela calada da noite e levávamo-lo para casa e ao longo do dia seguinte atirava-se discretamente da varanda da minha avó – a Tia Catarina das Portas – para a varanda do Ti Simões ou do Ti Pereira (ainda não existia entre as duas varandas aquele elefante branco que lá "mora" agora!) que estavam feitos com o pessoal. O desgraçado do bicho nunca entrava pela porta principal, pois poderia dar nas vistas. Durante a tarde íamos depois entrando separadamente na Taberna para o arranjo da mesma, até nos juntarmos todos ao fim do dia para a patuscada. E o facto é de que só de tempos a tempos, é que se ouvia alguém queixar-se de que lhe tinha "fugido" uma galinha... O método era perfeito e funcionava às mil maravilhas. Depois de bem comidos e bem regados, os cantares alentejanos até escorregavam mais cristalinos pelas gargantas dos mais desafinados.

[O chamado "elefante branco". Foto JV, 2010]

Mas não se pense que a coisa era feita sem critério, pois efectivamente tínhamos uma costela da filosofia de vida do Zé do Telhado. Só nos abastecíamos nos galinheiros dos mais abastados ou dos mais forretas. Lembro-me entre tantos outros, do maior galo que nos passou pelo estreito e que tinha sido criado com todo o carinho pela Tia Custódia Peres, para quando o filho chegasse da guerra de África. Aquilo era um galão enorme como nunca tinha sido visto em Alcoutim. Chegou-nos a notícia do dito e isso espicaçou-nos a vontade de lhe deitar a mão. E assim fizemos...

[Rua Trindade e Lima. Foto JV, 2010]
Mas houve uma galinha que me caiu no goto de tão gostosa que estava. Estávamos em 1963 ou 64 e íamos fazer o Peditório para as Festas nos Montes das Laranjeiras. Os tostões nos bolsos estavam sempre à justa. Como é que vamos resolver o problema do almoço, perguntávamos uns aos outros? Porque é que a gente não vai roubar uma galinha sugeriu alguém e pede-se ao dono de uma das Taberna das Laranjeiras que conhecíamos e de que não me recordo do nome, para a preparar enquanto fazemos o Peditório? Dito e feito, decisão tomada. Faltava definir a vítima. Rapidamente chegámos a uma decisão por unanimidade: a vítima desta vez seria o Mário Batista.

O Mairinho homem prudente e avisado, tinha o seu galinheiro junto ao eucalipto do Quartel da Guarda Fiscal, pois ali ao pé da Autoridade aonde ele passava a maior parte do seu tempo por ser Guarda-Fiscal, sempre existia maior segurança. Simplesmente à 1 ou 2 horas da manhã pela calada da noite, não há segurança que resista e lá fomos nós sorrateiramente ao galinheiro do Mário, apanhar a melhor das galinhas. No dia seguinte pelas 7 horas da manhã quando o nosso grupo descia pela rua da Escorregadiça em direcção ao rio, com a galinha dentro de uma saca de serapilheira debaixo do braço, o Mairinho sempre brincalhão atira-me da varanda da sua casa uma bacia com água, que me passou mesmo ao lado e diz: "Ah malandro, quase que te apanho"! Oh Mário não me apanhaste ontem, hoje também não vai ser fácil, respondi-lhe perante a risada geral. Ele também se riu ingenuamente, engrossando a gargalhada geral.

[O eucalipto da "Guarda-Fiscal" ou do Pinhão. Foto JV, 2009]

À noite o Mairinho, raposa velha e sabidona como era, depois de já ter dado pela falta do galináceo foi sentar-se songa-monga como quem não quer a coisa ao meu lado, na muralha do rio. E lá começa com a sua converseta mole de mula sabida: "então o Peditório nos Montes do Rio correu bem Amílcar? Então e mais isto e mais aquilo etc. e tal", até que lá chegou aonde queria: "e aonde é que almoçaram Amílcar"? Olha Mário, respondo-lhe eu indo direito ao assunto, o Ti Zé Não Sei Quantos fez-nos uma galinha lá na Taberna que estava divinal! Nem te passa pela cabeça Mário, que boa que estava o raio da galinha! "Essa galinha... essa galinha..." diz o Mairinho meio desconfiado entre dentes... e por ali ficámos dizendo mais umas balelas mas sem grandes aprofundamentos.

Meu querido Mário a estas horas certamente também já terás gasto uns tostões num computador e aderido à Internet. Compreende-se: é a fruta dos tempos, é natural! Se tal tiver acontecido e passares os olhos por esta crónica, ficas desde já convidado para um almoço de um bom frango no churrasco e assim pagar-te uma dívida com quase 50 anos. Poderá até ser nas Laranjeiras que tem um belíssimo restaurante. Mas lá que me deu muito gozo ferrar-te o calote naquele dia, lá isso é que deu sim senhor! A propósito, será que ainda há galinhas em Alcoutim sem ser congeladas no Supermercado? Se houver digam qualquer coisa... às vezes apetece-me matar saudades daqueles tempos!