sábado, 24 de setembro de 2011

Crónicas e Ficções Soltas - Alcoutim - Recordações XII




Escreve


Daniel Teixeira






OS SEM TERRA

Em Alcaria Alta havia apenas uma família, que eu me lembre, sem terra, quer dizer sem propriedade, sem terreno de cultivo. Mais importante que ter o seu «território» era sem dúvida ter as condições de sustento: num mundo onde a propriedade era já por natureza reduzida ela valia mais por isso, por aquilo que produzia e não tanto por aquilo que era.

Pobres, daqueles mesmo de pedir, apareciam pelo monte, já conhecidos todos: lembro-me porque me contaram mas já não conheci o «famoso» Lúcio que ganhou a sua fama não por ser pobre de pedir mas por ter um relacionamento simpático mais que de pedinte com o pessoal do Monte. Foi ele que esteve na origem da ainda hoje por aqueles lados usada frase: «Se tu fosses Lúcio, até o verde das hortas tu comias.»

A história passou-se precisamente com o João Baltazar, criança, com quem a mãe insistia para que ele comesse o cozido de couve. O Lúcio à porta, sentado nos degraus, comendo voraz do mesmo no prato que lhe fora ofertado, ia ouvindo a insistência para que o João comesse a couve e tantas vezes ouviu que não se conteve mais e gritou cá de fora: «Ah João, João...se tu fosses Lúcio até o verde das hortas tu comias!!»

Mas o João não era Lúcio, nem o Lúcio João e pedir por aqueles montes, todos eles de posse geral exígua, correspondia a um arco de intervenção bem largo: fazer a volta para aquele lado acontecia uma vez por mês, não mais, o que correspondia à necessidade de visitar trinta montes por mês, separados entre si por distâncias médias rondando os 10 Kms em terreno duro, de puxar mesmo pelo corpo e sobretudo pelo coração.

[Casa que foi de João Baltazar e hoje restaurada. Foto JV]

A existência de tensão arterial média muito alta por aqueles lados era atribuída ao uso da carne salgada que era a melhor forma de conservação desse tempo. Havia ainda umas coisas que eram muito boas, as chamadas «presas» de carne, normalmente retiradas da zona das costelas do porco, com uma reduzida quantidade de carne à volta do osso, mergulhados depois em gordura de porco e acabando esta banha por funcionar como conservante. Fritas depois e comidas molhando o pão eram «toneladas» de colesterol, é verdade, mas era muito bom.

Sobre as tensões arteriais altas, com a electrificação, com a introdução de alimentos frescos ou congelados, não salgados, caiu por terra o argumento da carne salgada porque não decaiu a tensão arterial média dos habitantes da Serra. Em entrevista que fiz (por telefone) ao Dr. Francisco Amaral - na altura e ainda (?) - Presidenta da Câmara, falámos sobre isso (ele é médico também para quem não conhece) e não me disse textualmente isso mas eu deduzi que a história do excesso de sal na sua relação directa com a tensão alta, por aqueles lados, tinha sido isso mesmo, uma história e uma verdadeira treta.

Debatia-se então ele com os problemas da Diabetes e das Cataratas e com um outro que eu achei surpreendente: o alcoolismo. Na verdade nunca me apercebi durante os anos em que lá estive que o vinho fosse sequer usado nas refeições do dia a dia. Ir à taberna com maior frequência era também considerado quase uma infracção aos bons costumes e o termo «bebedolas» equivalia para aí no meu tempo ao termo «drogado» hoje, guardada que seja uma pequena distância.

Pois sim, a cervejola, o vinho e o bagaço e o medronho tinham entrado portas dentro e portas fora no ambiente campesino do nordeste algarvio. Em certo sentido, embora tenha dificuldade em aceitar, compreendo que o álcool tenha sido o «combustível» (passe a crueza) que ajudou a manter de pé, na fase terminal, explorações familiares e vidas pessoais neste longo processo de decadência de mais de 50/80 anos cujos resultados estão hoje à vista.

Voltando aos sem terra, estes tinham sempre casa própria, por aquilo que me apercebi. Os preços não eram elevados e embora fosse difícil obter dinheiro da forma contada o pagamento aparecia de uma forma ou de outra: não sei se já havia o sistema das prestações mas esta única família sem terra vivia do que o trabalho lhes dava: normalmente alimentação e uma jorna, pequeníssima mas usual por aqueles lados.

Não garanto este números, mas o José Lourenço, o famoso «pão de centeio» assim alcunhado devido ao facto de ser bem moreno, quase mulato, ganhava na altura 200$00 por mês mais dormida em palheiro e alimentação. Anos depois fui encontrar em Cacela um jornaleiro que me disse ganhar 7$50 por dia (mais a alimentação e dormida). Ora tanto num tempo como noutro o ordenado normal andava já acima dos 4.500$00.

Esta família sem terra tinha como irmão da dona da casa um indivíduo igualmente sem terra que morava em Santa Justa e que era uma personagem verdadeiramente singular: trabalhava de dia e gastava à noite em bagaço ou no que viesse à rede. Não era propriamente um crava, naquele sentido que lhes damos, mas aproximava-se de nós, citadinos, isto já depois de eu estar casado, e aceitava de bom grado todas as nossas rodadas, os nossos cigarros. Algumas vezes petiscávamos uma lata de conservas para não andar a seco...enfim.•

Não eram muitas as rodadas – íamos à taberna mais para conversar e ele era bom conversador: contava-nos da fidelidade do seu cão, um rafeiro pequenino, que quando ele com o peso da bebida caía num caminho e lá ficava dormindo o cão enroscava-se ao lado dele até que ele acordasse, que ladrava desalmadamente se alguma coisa menos normal se aproximasse durante a noite e que lhe lambia a cara assim que o sol nascia para o acordar. Ele gostava mesmo do animal, isso era patente, talvez o seu único amigo... «Este nunca me deixa sozinho» acrescentava ele fazendo uma festa na cabeça do cãozinho e depois dialogava um pouco com ele, que deitava a língua de fora como se sorrisse agradecido.

Pode parecer estranho o que vou contar a seguir e qual foi a minha reacção imediata mas ainda hoje me pergunto porque raio tive eu aquela reacção. Quando voltei a Alcaria Alta um ano ou dois depois vim a saber que o Ti Batista tinha morrido queimado num incêndio num palheiro onde dormia. Como era fumador depressa se acrescentou que teria sido ele que se tinha descuidado e deixado dormir com o cigarro aceso em cima da palha seca.

A irmã, condoída, contou-me os detalhes que sabia, disse-me inclusive que não tinha vindo a Faro reconhecer o corpo para não ter de pagar o funeral, que isso já não servia de nada, que lá onde estava estava bem agora, enfim...era um bom irmão e bom amigo dela apesar de tudo rematou.

A minha reacção, depois disto, ainda hoje me espanta: quando ela acabou o relato a primeira coisa que me lembrei foi de perguntar pelo cão (como a nossa mente é!).•

Já de partida, ainda com a lágrima ao canto do olho, respondeu-me que o cão tinha fugido e que tinha regressado a casa em Santa Justa. «Abandonou-o, desta vez abandonou-o!» – disse eu semi – chocado entre dentes lembrando-me do Ti Batista e do cãozinho sendo acariciado por ele na taberna e com a língua de fora como se sorrisse agradecido e ouvindo ainda o seu «Este nunca me deixa sozinho».

Hoje, um e outro, lá onde estão, juntos ou separados, agora, estão certamente bem...