Pequena nota
Neste texto de Daniel Teixeira está retratada com grande rigor uma época que conheci e vivi em Alcoutim. Era assim em Alcaria Alta, era assim em todos os montes do concelho e onde o “velho” problema da localização dos marcos sempre gerou controvérsias.
Mais uma importante “aguarela” do concelho de Alcoutim em meados do século passado.
JV
Escreve
Daniel Teixeira
AO CORRER DA PENA
As minhas memórias sobre a minha vida em Alcaria Alta estão de tal forma interligadas que me é sempre difícil construir um texto com princípio, meio e fim que se conjuguem. Na verdade temos de ter em atenção aquilo que se define normalmente como sendo a transversalidade, que em certo sentido é a contrária da linearidade, da obediente cronologia, da divisão em tempos continuados, da descrição do acontecido da hora tal à hora tal.
Se eu me lembrar das pessoas que nos visitavam sistematicamente quando íamos ao Monte terei de me lembrar das minhas primas do Monte das Velhas, que fica para os lados de Giões / Alcoutim e para o outro lado, de Vaqueiros, terei de me lembrar da minha prima Marquinhas que vinha infalivelmente de Santa Justa poucas horas depois de nós acordarmos no dia seguinte à chegada.
As primas do Monte das Velhas vinham em data incerta mas sempre também nos primeiros dias enquanto a Marquinhas parece que tinha um relógio cronometrado. A nossa ida nem sempre era certa nos dias e os contactos com Santa Justa não eram muito fáceis e pelo que me lembro telefones não havia naquele tempo por lá e mesmo que houvessem seriam exclusivamente utilizados para os casos mais graves e gastar dinheiro em chamadas telefónicas era questão que requeria uma demorada ponderação.
Mas lá vinha ela, de cesta na cabeça e dois cestos nas mãos, uma matulona rara por aqueles lados, para aí com 1,70 m de altura e corpo forte. Chegava de Santa Justa, talvez a 6 Kms dali, por caminhos desgraçados e parecia que vinha de um tranquilo passeio na baixa de uma cidade.
[Entrada do Monte das Velhas. Foto JV, 2009]
Gostávamos todos muito dela, aliás não me lembro de não gostar de alguém e mesmo o meu tio Afonso, o tal que foi da GNR, que já depois de reformado estava sempre presente, nunca me pareceu assim tão «torcido» como poderia imaginar.
Mantinha uma guerra quase secreta com a minha avó a que chamámos no gozo entre nós a «guerra dos marcos». Na zona do vale da égua (dizia-se valdégua) tínhamos mais outra horta dividida entre as duas irmãs, Ti Zabelinha e minha avó: ora era hábito dele avançar o marco de divisão da propriedade (uma laje encostada ao muro) para aí uns cinquenta centímetros o que levava literalmente a minha avó aos arames.
Entendia ele que a marca era ali, entendia a minha avó que era onde ela o punha e segundo ela onde sempre tinha estado: com tanta mudança, talvez uma vez por semana pelo menos, nem dava para ver o poiso mais constante do marco uma vez que ele não chegava a assentar no mesmo lugar ao ponto de deixar sinal de sol ou de ervas.
O Tio Afonso era também um matulão respeitável mas sempre me deu a impressão que ele fazia a troca do marco por gozo e para ver a minha avó irritada, uma vez que ela cada vez que tinha de mexer no marco se ia zangar com ele a casa, algumas vezes só passando de largo.
O meu tio Afonso acabou por ficar muito limitado na sua actividade porque deu um tombo de uma mula que se espantou com o reflexo de uns plásticos que cobriam o galinheiro em frente à venda da Ti Inácia. Habituado a andar a cavalo nas patrulhas não era de esperar tal acidente mas ele foi nitidamente apanhado de surpresa uma vez que todos os dias por ali passava.
Não chegou a ir ao médico mas levou o resto dos seus dias a queixar-se «das cadeiras» e a mover-se com dificuldade.
Uma vez que ele esteve pior e de cama pediu-me para o levar à casa de banho, que na altura era num quintal próximo de casa (depois os filhos fizeram uma mesmo com sanita) e lembro-me do seu olhar bem triste e de homem vencido a dizer-me: «uma pessoa nunca deveria estar doente ao ponto de não conseguir fazer isto sozinho». Era, de facto, uma humilhação para ele...compreendi perfeitamente.
[Vista parcial do grande monte de Santa Justa. Foto JV, 2010]
A Marquinhas, a minha prima de Santa Justa, foi depois viver e trabalhar em Lisboa, junto com a irmã que já tinha partido anos antes. O primeiro emprego dela, pelo que sei, foi de vendedora de porta a porta da uma marca de electrodomésticos: ao fim de pouco tempo conhecia Lisboa de ponta a ponta e era raro utilizar o autocarro ou o eléctrico. Não importa qual rua de Lisboa se lhe perguntasse ela tinha a resposta pronta e mesmo tendo mudado de emprego manteve essa memória sempre.
Um dia alguém a encontrou tombada numa rua de Lisboa: tinha tido um derrame cerebral e já estava morta quando lhe acudiram. Fui ao seu funeral como fomos quase todos da família alargada.
Não perdi no entanto nunca a imagem daquela matulona sorridente a cruzar a porta da nossa casa no Monte.