sexta-feira, 30 de setembro de 2011
Dinheiro na mão...
Um conto de
José Temudo
Eram irregulares, mas frequentes, as suas visitas. Vinham da cidade, em pequenos grupos de duas, três, quatro no máximo, na camioneta da carreira que chegava por volta das oito da tarde. Apeavam-se à entrada da vila e aí permaneciam apenas o tempo necessário para se certificarem de que a sua chegada tinha sido notada, o que não era difícil, dado o modo como se vestiam e pintavam o rosto. Depois, logo que conseguido esse objectivo, afastavam-se uma centenas de metros em sentido contrário ao da chegada; saíam da estrada, subiam um pouco da encosta até um pequeno bosque de pinheiros e de arbustos e aí, numa pequena clareira, feita sala de espera, sentavam-se, a conversar e a fumar, aguardando a chegada dos clientes habituais, que só apareciam já noite feita, de modo muito discreto, para não darem nas vistas, assim fugindo aos comentários condenatórios das pessoas de bem, como também dos vindos dos falsos moralistas.
Invariavelmente, o primeiro a chegar era o Zé Tolinho. Não era um cliente. Tratava-se, isso sim, de uma visita útil, sempre recebida pelas “meninas” com demonstrações de alegria e de carinho, que ele retribuía com mais alegria e mais carinho.
O Zé Tolinho era ainda moço, pouco mais de vinte anos teria. Filho de pais muito pobres e dados à bebida, tinha nascido escorreito de corpo e de juízo. Mas a fome, os maus tratos e doenças sucessivas tinham feito dele aquilo que ele hoje era, um débil mental, um tolinho, como logo lhe chamaram e ficou conhecido. De baixa estatura, com a pele colada aos ossos, de olhos castanhos encovados e pelo arruçado , seco e espetado como palha, tinha contudo um ar doce e muito humilde, que lhe granjeavam simpatia e compaixão, e disso vivia, das esmolas que lhe davam, fosse comida fossem roupa e sapatos velhos. A relação com as “meninas” tinha começado logo no dia em que pela primeira vez as viu, descendo da camioneta, e, enfeitiçado pela sua garridice, as seguiu até ao pequeno bosque que elas transformavam, por breves horas, em bordel. Incomodadas, ao princípio, com a presença do maltrapilho, cuja proximidade, julgavam elas, lhe poderia prejudicar o “negócio”, foram tranquilizadas pelos clientes que foram chegando e que lhe asseguravam que o moço era inofensivo e calado e que até lhes poderia ser útil, a elas e a eles, como moço de recados: ele iria à vila quantas vezes fossem precisas, caso elas necessitassem de cigarros, de cervejas, de sanduíches, de qualquer outra coisa; e quanto ao resto, que não se preocupassem com ele: fosse o que fosse que lhe tenha abalado o juízo, tinha-lhe acabado de vez com a possibilidade de fazer sexo. Com o decorrer das sucessivas visitas das “meninas” à vila, o Zé Tolinho, com o seu ar doce, com a sua humildade e com a sua prestabilidade, foi-lhe conquistando a confiança, a simpatia e, sobretudo, a sua solidariedade.
Afinal, não eram elas e ele, filhos da mesma mãe, a pobreza, também chamada de “a má sorte?”
De pé ou sentado na relva da clareira que servia de antecâmara, sempre calado, mas também semptre atento às conversas brejeiras, às graçolas ordinárias, às escolha que o clientes faziam entre as “meninas”, ao pagamento antecipado, por elas sempre exigido, ao afastamento dos casais em direcção a umas moitas um pouco para além da clareira, a tudo isso ele assistia, quase sempre impassível. Digo quase sempre, porque quando era a Graça, uma das “meninas”, a escolhida para acompanhar o cliente para além da clareira, os olhos do Zé Tolinho pareciam ganhar alguma vida, uns laivos de tristeza.
Esta “estorieta” foi-me contada por um dos clientes deste comércio marginal.
Chegados a este ponto, perguntei-lhe:
“Para além da atracção pelo ar garrido das “meninas”, alguma vez notou no Zé Tolinho algum sinal de paixoneta por alguma delas, designadamente por essa Graça?”
“Não, respondeu, mas o que lhe vou contar talvez possa confirmar essa sua suspeita.”
E contou-me que um dia, um dos clientes, depois de negociada com a Graça a transacção, não fez o pagamento antecipado, alegando que se tinha esquecido da carteira mas que o faria na próxima vinda delas à vila, ao que a moça retorquiu:
“Então, não há nada para ninguém!”
Ele voltou a insistir, agora num tom irado:
“Estás a duvidar de mim, ou quê?”
“Não, respondeu ela, mas é a regra: “dinheiro na mão, cu no chão”; sem isso...
O macho, fora de si, esbofeteou-a, enquanto ia dizendo:
“Oh, minha puta de merda, como te atreves a duvidar de mim?”
Neste ponto, aconteceu o impensável; perante a passividade de todos, “meninas” e clientes, o Zé Tolinho, o pele e osso, atirou-se furiosamente ao agressor, rapaz possante, dando-lhe punhadas no peito. O resultado foi que o outro largou a rapariga e carregou sobre o Zé Tolinho; deu-lhe uns murros tão fortes que o atiraram ao chão, indefeso e a sangrar. E só não levou mais, porque os outros clientes e “meninas, receando o pior , manietaram o “machão” até que este acalmou de vez e se foi embora. Logo depois, levantaram-no, ou, melhor dizendo, atendendo ao estado de prostração do rapaz, apanharam do chão o Zé Tolinho, que mal dava acordo de si; os olhos inchados, o sangue escorrendo-lhe da boca, o resto do rosto cheio de contusões. Limparam-no com o que tinham à mão, lenços, água.
Entretanto, tornou-se evidente a falta de condições para continuar o negócio. Os clientes, um a mm, discretamente, tal como tinham vindo, foram às suas vidas. As “meninas” meteram os pés a caminho da vila, levando consigo o combalido Zé Tolinho, amparado pela Graça, que não mais o largou. Entraram ma tasca onde costumavam comer e logo que terminaram o repasto, foram-se deitar no barracão anexo à tasca, onde sempre dormiam, a troco de umas moedas. Com elas, deitou-se o Zé Tolinho, sempre amparado e acarinhado pela Graça. Não obstante o ocorrido, depressa adormeceram. Pouco tempo depois, uma delas acordou a ouvir gemidos.
Pobre moço, pensou, e tornou a adormecer.
Levantaram-se com o cantar do galo. Lavaram-se e vestiram-se à pressa e saíram deixando o Zé Tolinho ainda a dormir. Já na rua, a caminho da camioneta que as levaria de volta à cidade, a que acordara a meio da noite, falou para a Graça:
NAcordei a meio da noite e ouvi o Zé Tolinho a gemer. Coitado do rapaz!
Não era ele, disse a Graça.
Então quem era?
Eu.
E o que te doía?
Nada.
Então porque gemias?
Olha, disse a Graça, andam todos enganados com o Zé Tolinho. Ele é tão homem quanto os outros!
Não me digas!
Digo, digo!
Quando entraram na camioneta ainda riam como se fossem tolinhas!
Vila do Conde, 7 de Julho de 2011.