sábado, 3 de setembro de 2011
A Sociedade dos Caixões
Escreve
Gaspar Santos
[Desenho de J.V., 1984]
O meu Pai saía muito raramente depois de jantar. Quando se aproximava o Natal saía, pelo menos, duas noites. Em casa, as minhas irmãs e eu, quando o víamos envergar a sua capa alentejana comentávamos com humor: O Pai vai à “Sociedade dos Caixões”!
Nem sempre acertávamos. Havia ainda uma outra sua saída possível. Era ir à Sociedade Recreativa Alcoutenense (“sociedade dos velhos”).
Esta sociedade, mais tarde, fundiu-se com o Grupo Desportivo de Alcoutim (a sociedade dos jovens) dando origem à Sociedade 1º de Dezembro. Na verdade havia em Alcoutim nos finais dos anos 50 estas duas sociedades de convívio, concorrentes na captação e fidelização de sócios na faixa etária intermédia entre velhos e jovens.
Com o começo da desertificação humana, começaram ambas a perder alguns dos poucos sócios que tinham e, com isso a perder também as suas bases de sustentação. Tomaram então a decisão correcta de juntarem os “trapinhos”.
Num caso ou no outro, quase de certeza, o meu Pai ia a uma reunião destinada a aprovar as contas do ano a findar, do orçamento do futuro ano, e eleger os novos corpo gerentes.
A Lutuosa Alcoutinense que por graça nós apelidávamos de “sociedade dos caixões” era uma sociedade cujos sócios além de pagarem na inscrição uma quantia – a jóia, pagavam todos os meses uma pequena quota que nos anos 40 e 50 do século passado era de 1$00. Isso garantia que por morte de qualquer membro da família esta recebia cerca de 300$00 para pagar o caixão.
Estes valores de jóia e de quota mantiveram-se quase constantes durante muitos anos, à custa de pequenos ajustes. Com a redução do número de sócios que há anos se vinha a registar, e com a inflação que ocorreu pós 25 de Abril de 1974, o custo de cada caixão subiu de tal modo que deixou de ser possível as poucas famílias associadas acompanharem o preço da quota na proporção adequada. E fizeram a liquidação da sociedade dos caixões.
Hoje pode parecer estranho que os Alcoutenejos tenham criado uma tal sociedade. Havia outras localidades do concelho, nomeadamente os Balurcos, que também tinham criado outras sociedades com o mesmo objectivo mas com funcionamento diferente. Os povos têm a preocupação de enterrar os seus mortos. Mas nesse tempo, com as grandes dificuldades financeiras que hoje nem se imaginam, vi algumas vezes famílias enterrar familiares apenas enrolados num lençol por não terem dinheiro para a urna. Hoje não se imagina, pois as autoridades sociais criaram mecanismos para darem funeral condigno a todos. A própria Lutuosa Alcoutenense algumas vezes custeou caixão para morto cuja família não associada de todo não podia pagar. Com isso os seus dirigentes eram contestados e os sócios protestavam pois nem os Estatutos nem o pouco desafogo financeiro da Sociedade o permitiam.
Não resisto a recordar dois episódios que ocorreram acerca desta Sociedade:
Manuel Pimenta que tinha um talho nas escadinhas da Rua da Aparada, desabafa: sou sócio da Sociedade dos Caixões há tantos anos e nunca tive dali qualquer benefício. Resposta do interlocutor: Oh homem, morra primeiro que vai ver que beneficia logo!
Numa Assembleia Geral de fim de ano, para escolha dos dirigentes para o ano seguinte o Presidente cessante António Mestre propôs para novo presidente Luís de Brito, pessoa cujas competências e personalidade bastante elogiou. Meu Pai pediu a palavra e disse apenas: O que disse sobre o Senhor Brito é tudo verdade, mas…para ser presidente tem que ser sócio! Chateado, António Mestre disse, no meio de gargalhada geral: lá está o Santos a estragar tudo. Ainda hoje não sei o que estaria meu Pai a estragar!
Ainda hoje vejo convocatórias para uma sociedade existente deste tipo com o nome Lutuosa Portuguesa, mas desconheço o seu âmbito e objectivos.