Daniel Teixeira
A LÓGICA DAS COISAS
Tenho tido alguma dificuldade em
fazer novas «memórias» dos tempos de Alcaria Alta não porque haja muito pouca
mais coisa para contar, mas porque esta minha ânsia da escrever memória
se centra muito na base daquilo que é o Concelho de Alcoutim e naquilo que eu
entendo ser a base natural do Concelho de Alcoutim.
Para meu desgosto ultimamente
tenho lido mais sobre Alcoutim na sua perspectiva institucional (que é para mim
o topo e não a base), nomeadamente os Orçamentos Camarários e outros documentos
da mesma ordem, do que fiz durante provavelmente toda a minha vida e sem dar
por perdido o tempo utilizado devo confessar que me sinto muito pouco vocacionado
para esse tipo de «literatura».
As valorizações que são dadas,
por vezes com fortes consonâncias «bairristas», que também têm o seu aspecto
salutar pois que em muitas coisas sem competição não há desenvolvimento, chocam
com a perspectiva que se tem sobre a economia e a crise que se vive e sobre
aquilo que se considera fazer falta no país: sempre considerei a actividade da
Câmara Municipal de Alcoutim como uma actividade de gerência da escassez, e
escrevi bastante, noutros órgãos de comunicação por onde passei, sobre o
louvável trabalho que foi sendo levado a cabo na assistência aos idosos, muitas
vezes isolados em montes também isolados.
Quando os fiz, os elogios, tinha
em atenção que ninguém merece viver abandonado e que depois de uma vida de
trabalho duro era mais injusto do que tudo deixar as pessoas ao abandono,
sobretudo porque na sua grande parte, também, via alguns aqui pelas cidades,
que salvo raras excepções estavam mais «virtualmente» mortos do que aqueles que
eu encontrava nas suas próprias casas nos Montes, curvados ao peso dos anos,
fazendo aquele pouco que as energias lhes permitiam, mas vivendo no seu meio e
vivendo a sua vida e não uma outra implantada pela força de circunstâncias que
nunca pensaram vir a ter de viver.
Lembro-me, com alguma emoção (e
pena, tenho de confessar) de um velhote que era do Alentejo e andava a meses em
casa dos filhos: um deles vivia aqui em Faro, perto de mim, uma excelente
pessoa, diga-se, com a sua vida profissional ocupada com horários alternados e
puxados, restando-lhe pouco tempo, senão aquele que teria em sua casa, para dar
um pouco de alegria e gosto de viver ao pai.
E eu via o velhote quase sempre
no mesmo sítio, sentado, de cajadinho, sozinho, num dos bancos de uma avenida
movimentada, sem olhar sequer o trânsito que passava. O senhor tinha sido
pastor, um semi-solitário pastor na imensidão alentejana e o local escolhido
por ele também não era dos mais indicados para fazer conversa com quem quer que
fosse, mas para ele ficava próximo de casa e por ali se mantinha trinta longos
dias horas a fio.
A manutenção das pessoas no local
onde viveram sempre foi o que mais me pareceu normal e justo, salvo em
condições que isso não permitissem. Por isso sempre achei bem essa gerência
feita pelas entidades públicas, e nomeadamente pela função social da CMA.
Também fui, utopicamente, guardando em carteira a possibilidade de um dia as
coisas darem uma volta e voltarem a ser senão as mesmas, mas pelo menos a terem
uma vida que não fosse decrépita.
Ao fim de tantos anos de conhecer
isto, esta situação, o que verifico é aquilo que está patente aos olhos de
todos: o agrupamento dos idosos em Lares (que são contudo um excelente fogo de
vista eleitoral) leva a uma situação que não sendo carne nem sendo peixe acaba
pela própria evolução das coisas por assemelhar-se progressivamente àquilo que
é uma vivência em Lar, independentemente do sítio onde ele esteja colocado: em
ambiente urbano ou rural.
O resultado é o mesmo: horas de
levantar, horas de almoçar, horas para ver televisão, perca progressiva de
laços com uma realidade que se viveu de facto e se passa a viver apenas na
memória e na imaginação enquanto elas isso forem comportando.
Vivo ainda no passado e não sei
se me devo afastar dele nestes planos: a minha Tia Bia adoecia e logo as
mulheres da família e vizinhas se revezavam para tratar dela. A minha prima
Felismina percorria todas as noites de lampião na mão da Portelinha até à Praça
o longo e pedregoso caminho chovesse ou estivesse frio para a ir aconchegar e
isto acontecia com todos, fossem homens ou mulheres. Este tempo, é passado, mas
é uma lição que nunca esqueci nem esquecerei, e é este o «meu» Monte de Alcaria
Alta.
Pelo Concelho, nem uma iniciativa
de jeito foi tomada para fazer rejuvenescer esta vida e uma vida mesmo que não
seja precisamente esta. Apesar de se verem, amiúde, alguns núcleos que vão
mantendo alguma vida visível, estamos muito longe de encontrar um equilíbrio
que fundamente em pequena medida que seja um salto em frente.
Uma parte dos núcleos que se
mantêm devem uma parte substancial da sua vida àquilo que os outros núcleos
neles agruparam, ou seja, deve-se a fusões e aquela função de motor dos poderes
centrais (locais, neste caso) tem enveredado por encostos aos dinheiros
públicos, sejam eles resultado de receitas próprias sejam eles resultado de
Fundos de Equilíbrio inter-regiões.
A Pousada de Alcoutim foi um
empreendimento megalómano, como o seu próprio impulsionador tem sido ao
longo dos anos, e qualquer estudo mesmo à flor apontava isso e Alcoutim
encaixou-o e agora aguenta os restos à custa do erário público como terá também
seguramente patrocinado parte do fogo de vista: não segui o processo nem me
interessa muito, sei que é um «flop» estrondoso, de dimensão borlex-ceeiana,
como era a onda na altura.
Pousada de Alcoutim. Foto JV, 2009 |
Por isso e para não falar muito
mais, repito aquilo que tenho dito por diversas formas desde sempre: perdido o
interesse atractivo de Alcoutim (Vila) desde há pelo menos 50 anos, seria
altura de as pessoas se lembrarem um pouco da história e se lembrarem que as
«cidadelas» tiveram a sua importância (e têm-na em termos históricos) mas que
de base de sustentação passaram desde há séculos a ser bases sustentadas. E sem
sustento não há castelo que aguente...