quarta-feira, 20 de março de 2013

Crónicas e Ficções Soltas - Alcoutim, Recordações - XLVI




 Escreve

Daniel Teixeira


A LÓGICA DAS COISAS

Tenho tido alguma dificuldade em fazer novas «memórias» dos tempos de Alcaria Alta não porque haja muito pouca mais coisa para contar, mas porque esta minha  ânsia da escrever memória se centra muito na base daquilo que é o Concelho de Alcoutim e naquilo que eu entendo ser a base natural do Concelho de Alcoutim.

Para meu desgosto ultimamente tenho lido mais sobre Alcoutim na sua perspectiva institucional (que é para mim o topo e não a base), nomeadamente os Orçamentos Camarários e outros documentos da mesma ordem, do que fiz durante provavelmente toda a minha vida e sem dar por perdido o tempo utilizado devo confessar que me sinto muito pouco vocacionado para esse tipo de «literatura».

As valorizações que são dadas, por vezes com fortes consonâncias «bairristas», que também têm o seu aspecto salutar pois que em muitas coisas sem competição não há desenvolvimento, chocam com a perspectiva que se tem sobre a economia e a crise que se vive e sobre aquilo que se considera fazer falta no país: sempre considerei a actividade da Câmara Municipal de Alcoutim como uma actividade de gerência da escassez, e escrevi bastante, noutros órgãos de comunicação por onde passei, sobre o louvável trabalho que foi sendo levado a cabo na assistência aos idosos, muitas vezes isolados em montes também isolados.

Quando os fiz, os elogios, tinha em atenção que ninguém merece viver abandonado e que depois de uma vida de trabalho duro era mais injusto do que tudo deixar as pessoas ao abandono, sobretudo porque na sua grande parte, também, via alguns aqui pelas cidades, que salvo raras excepções estavam mais «virtualmente» mortos do que aqueles que eu encontrava nas suas próprias casas nos Montes, curvados ao peso dos anos, fazendo aquele pouco que as energias lhes permitiam, mas vivendo no seu meio e vivendo a sua vida e não uma outra implantada pela força de circunstâncias que nunca pensaram vir a ter de viver.

Lembro-me, com alguma emoção (e pena, tenho de confessar) de um velhote que era do Alentejo e andava a meses em casa dos filhos: um deles vivia aqui em Faro, perto de mim, uma excelente pessoa, diga-se, com a sua vida profissional ocupada com horários alternados e puxados, restando-lhe pouco tempo, senão aquele que teria em sua casa, para dar um pouco de alegria e gosto de viver ao pai.

E eu via o velhote quase sempre no mesmo sítio, sentado, de cajadinho, sozinho, num dos bancos de uma avenida movimentada, sem olhar sequer o trânsito que passava. O senhor tinha sido pastor, um semi-solitário pastor na imensidão alentejana e o local escolhido por ele também não era dos mais indicados para fazer conversa com quem quer que fosse, mas para ele ficava próximo de casa e por ali se mantinha trinta longos dias horas a fio.

A manutenção das pessoas no local onde viveram sempre foi o que mais me pareceu normal e justo, salvo em condições que isso não permitissem. Por isso sempre achei bem essa gerência feita pelas entidades públicas, e nomeadamente pela função social da CMA. Também fui, utopicamente, guardando em carteira a possibilidade de um dia as coisas darem uma volta e voltarem a ser senão as mesmas, mas pelo menos a terem uma vida que não fosse decrépita.

Ao fim de tantos anos de conhecer isto, esta situação, o que verifico é aquilo que está patente aos olhos de todos: o agrupamento dos idosos em Lares (que são contudo um excelente fogo de vista eleitoral) leva a uma situação que não sendo carne nem sendo peixe acaba pela própria evolução das coisas por assemelhar-se progressivamente àquilo que é uma vivência em Lar, independentemente do sítio onde ele esteja colocado: em ambiente urbano ou rural.

O resultado é o mesmo: horas de levantar, horas de almoçar, horas para ver televisão, perca progressiva de laços com uma realidade que se viveu de facto e se passa a viver apenas na memória e na imaginação enquanto elas isso forem comportando.

Vivo ainda no passado e não sei se me devo afastar dele nestes planos: a minha Tia Bia adoecia e logo as mulheres da família e vizinhas se revezavam para tratar dela. A minha prima Felismina percorria todas as noites de lampião na mão da Portelinha até à Praça o longo e pedregoso caminho chovesse ou estivesse frio para a ir aconchegar e isto acontecia com todos, fossem homens ou mulheres. Este tempo, é passado, mas é uma lição que nunca esqueci nem esquecerei, e é este o «meu» Monte de Alcaria Alta.

Pelo Concelho, nem uma iniciativa de jeito foi tomada para fazer rejuvenescer esta vida e uma vida mesmo que não seja precisamente esta. Apesar de se verem, amiúde, alguns núcleos que vão mantendo alguma vida visível, estamos muito longe de encontrar um equilíbrio que fundamente em pequena medida que seja um salto em frente.

Uma parte dos núcleos que se mantêm devem uma parte substancial da sua vida àquilo que os outros núcleos neles agruparam, ou seja, deve-se a fusões e aquela função de motor dos poderes centrais (locais, neste caso) tem enveredado por encostos aos dinheiros públicos, sejam eles resultado de receitas próprias sejam eles resultado de Fundos de Equilíbrio inter-regiões.

A Pousada de Alcoutim foi um empreendimento megalómano, como o seu próprio impulsionador  tem sido ao longo dos anos, e qualquer estudo mesmo à flor apontava isso e Alcoutim encaixou-o e agora aguenta os restos à custa do erário público como terá também seguramente patrocinado parte do fogo de vista: não segui o processo nem me interessa muito, sei que é um «flop» estrondoso, de dimensão borlex-ceeiana, como era a onda na altura.

Pousada de Alcoutim. Foto JV, 2009

Por isso e para não falar muito mais, repito aquilo que tenho dito por diversas formas desde sempre: perdido o interesse atractivo de Alcoutim (Vila) desde há pelo menos 50 anos, seria altura de as pessoas se lembrarem um pouco da história e se lembrarem que as «cidadelas» tiveram a sua importância (e têm-na em termos históricos) mas que de base de sustentação passaram desde há séculos a ser bases sustentadas. E sem sustento não há castelo que aguente...