Escreve
Amílcar Felício
De facto a primeira brisa da
tarde naquele fim de dia sufocante de Agosto dos finais da década de cinquenta
do século passado, tardava em
chegar. E os homens por ali continuavam à conversa sentados
no muro em frente à casa da Tia Catarina das Portas no diz que
diz para entreter o tempo, enquanto enrolavam de vez em quando um cigarro
de onça Duque ou de Três Vintes, encalmados com um calor dos
diabos como já não se via há muito. Havia um ou outro que puxava por um
cigarro Provisórios ou Definitivos, mas eram raros.
A vermelhidão do Céu para os
lados dos Moinhos derrubados da Corte do Tabelião misturada com o sol que já ia
baixo, fazia-nos imaginar o “Fogo do Inferno” dando-lhe uma coloração de
romã bem madura e de uma tal intensidade que metia respeito, o que agourava
grandes calores diziam os camponeses que se orientavam pelos sinais do tempo ao
longo do ano, prevendo com uma precisão quase científica quer os dias de
grandes calores e de grandes branduras durante as madrugadas de Verão, quer os
dias de trovoadas e de grandes geadas no Inverno.
Moinhos derrubados ... Foto JV |
Rua T. e Lima. Foto JV |
Passa entretanto o pequeno Ti
Perdigoto e quase que nem se dava por ele se não fosse a sua burrinha. “Mas o
Ti Zé Revés ainda não passou e ele não se costuma atrasar (?)”, diz um dos
presentes. “Com a calma que está não admira nada que o trabalho corra mais
devagar e com certeza que vem mais tarde para casa (!)” diz logo outro a
seguir, acrescentando que a esta hora já a Tia Custódia Peres estará a
barafustar por causa da demora: “com esta calma, aquele homem quando chegar já
tem o gaspacho a ferver, pois ainda tem que ir tratar dos animais e primeiro
que ele se despache!” “Boas Tardes Ti Zé Altura (!)” respondem os homens ao
cumprimento do Ti Zé que passava entretanto, pois embora trabalhasse no rio
havia dias que entremeava com o trabalho no campo. Que raio de nome que haviam
de pôr a um homem tão pequeno, parece mesmo que lhe puseram o raio do nome só
para gozar com o homem!
Olha o Ti Adriano e a Tia
Custoidinha “Zorra” como eu lhe chamava quando estávamos sozinhos, para ouvir
depois as suas ameaças “qualquer dia levas (!), olha que eu dou-te (!), só tu é
que me chamas isso, ouviste (?)”. Era mentira, todos lhe chamavam nas costas
pela Custoidinha “Zorra” para a distinguir das outras Custódias que por lá
havia na Vila. Possivelmente devem ter alguma hortinha por aí, pois o Ti
Adriano só a apregoar e a vender peixe... “Viva ´Sargento´ Diogo, então e como
é que vai o novo negócio (?)”, perguntam os homens ao Ti Diogo que vinha com a
burra carregada de peças de fazenda, possivelmente das Cortes Pereiras e da
Afonso Vicente e que experimentava agora esta nova maneira de ganhar a vida.
“Cá se vai andando rapazes, cá se vai andando, mas o pessoal anda com pouco
dinheiro...” responde ele calmamente a caminho de casa.
Rua D. Sancho II onde vivia o "Sargento" Diogo. |
O Manel Sapateiro passava
apressado sem dar de vaia a ninguém com um molho de corriol às costas, pois
ainda tinha que ir dar comida aos coelhos. “Este Manel tão bom moço e com tão
pouca sorte, comentam os homens... depois de um dia de trabalho na Oficina com
o pai e com o tio Chico desde as 7 ou as 8 horas da manhã, ainda tem que ir
apanhar erva e tratar dos coelhos!” Às vezes lá se safa mais cedo da Oficina
digo-lhes eu e aproveita a ida à erva para dar dois chutos na bola, quando
estamos a jogar na Fonte Primeira. O Manel Tostão vinha logo a seguir. “Estás
por cá agora Manel, não me digas que vieste passar as férias à Vila (?)”,
pergunta um dos homens. Mas o Manel Tostão ia tão distraído, que só disse Boas
Tardes com aquele seu sotaque já à moda de Vila Real. “Este com aquele sotaque
também já deve ter bebido água do Poço Velho lá em Vila Real”, diz
maliciosamente um dos presentes. “Se calhar contratou para aí algum cercado ao
terço, diz logo outro a seguir e sempre fica com umas amêndoas para o seu
próprio fabrico de bolos, pois apesar de sacristão, nunca abandonou a arte
mesmo depois de se ter ido embora da Vila”.
“Boa Tarde, estávamos a ver que
não vinha hoje Ti Domingos!” “Boa Tarde pessoal”, responde o Ti Domingos da Lourinhã
que ia a cavalo na sua burra pois a idade já era muita e com vontade de chegar
a casa o mais depressa possível para tratar do jantar. Era quase sempre dos
últimos a chegar à Vila, e agora ainda por cima desde que os filhos se foram
embora depois que o Senhor Munhós fechou a Padaria, vivia sozinho e ainda tinha
que ir fazer o gaspacho e era por isso que era sempre dos últimos a chegar à
Venda do Ti António Joaquim. Logo a seguir vinha o Ti Zé da Horta com a sua
burrinha pela mão, quase ao mesmo tempo que o criado dos Caimotos, o Ti João
Borralho. Possivelmente combinam-se e como as casas são perto uma da outra,
sempre fazem companhia e vão trocando umas palavras pelo caminho. O Ti Zé
Brandão seguia-os a uns cinquenta metros. “Óh Ti Zé que grande carga de lenha
que leva diz-lhe um dos homens, olhe que hoje vai ter que fazer um bom serão
para descarregar a burra e arrumar essa lenha toda?” “Nem pensem nisso... isto
vai ser rápido, isto vai ser rápido podem crer!”
Casa onde vivia Mestre Cândido |
O Mestre Cândido passava
entretanto e virava para a calçada direito ao Largo da Parada. “Então esse
ontem avariou-se (?)” pergunta um dos homens ao Mestre Cândido que se deslocava
com dificuldade de Petromax na mão e escada às costas. “É verdade rapazes, este
ontem não estava a funcionar lá muito bem e tive que lhe dar para aqui uns
apertos, pois ali no Largo da Parada sempre faz falta para a entrada na Vila”.
O Senhor Leopoldo passava de novo estranhamente para o Celeiro. Àquelas horas
os homens admiraram-se e perguntam-lhe se vai fazer serão ao que ele responde
que não, que se tinha esquecido de meter os pintassilgos no Celeiro e já agora
aproveitava e tratava logo deles. “Você também já não lhe bastavam os canários
que tem lá em casa, agora também arranjou mais esses para se coçar”, diz-lhe logo
um dos presentes. Mas o Senhor Leopoldo era mesmo assim, era um passarinheiro
apaixonado que fazia reprodução de canários e que se dedicava a todos os
pintassilgos que por ali procriavam junto ao Celeiro, principalmente na
amendoeira junto ao aqueduto do Caminho do Poço das Figueiras perto da casa do
Ti Robalo.
“Que esquisito comenta um dos
homens, o Ti António Soeiro e o Senhor José Soeiro ainda por lá andam, não dei
por eles passarem! Querem lá ver que deu algum trangomango ao homem, pois o
Senhor José Soeiro como é epilético costumam dar-lhe aquelas salipantas”. “Se
calhar ficaram sem água na nora diz logo outro e como as marés são vivas,
possivelmente estão à espera que a nora faça alguma água para acabar de regar o
laranjal”. Deve ser isso e de certeza que a minha amiga Ritinha Soeiro
aproveitou o atraso para fazer uma limpeza mais a fundo nos galinheiros, pensei
logo cá para mim.
Rua Dr. João Dias onde viviam os irmãos "Soeiro". Óleo de JV |
Vê-se ao longe o Amigo António do
Brejo que vinha pelo Caminho do Pocinho. “Olhem o Sacramento do Altar hoje
também vem pela Vila que fino”, agitam-se os homens no muro mal o vêm à
distância. “Isso é porque deixou a cabra a pastar no campo esta noite, se não
tinha ido pelo Caminho do Celeiro”, diz logo outro a seguir. Os homens não
resistem à sua passagem e mal ele pisa a calçada metem-se logo com ele: “Olha o
Amigo António que gordo e lustroso que anda caramba, mas que bela panela com
que ele anda agora (!)”, dispara de imediato um provocador. O Amigo
António para, enfrenta aquele magote de gente e interpela o provocador: “olha
lá pá, já jantaste?” Não, responde-lhe o provocador meio acabrunhado. “Então
anda já comigo que eu vou despeja-la (!)” e lá segue na sua passada curta pela
calçada adiante, cigarro de mortalha ao canto da boca como se nada tivesse
acontecido.
E no meio da gargalhada geral e
do riso amarelo do provocador, os homens por ali continuavam à espera de uma
brisa que estava difícil de chegar...
(continua)