(PUBLICADO NO CORREIO
DA MANHÃ DE 27 DE JANEIRO DE 1994)
Texto
de
João dos Reis
Faro (da nossa
Delegação)
A fronteira entre Alcoutim e a
povoação espanhola de San Lucar del Guadiana, ainda não funciona como as duas
terras desejavam. Os alcoutinenses e os espanhóis, ainda muito antes das
directrizes da União Europeia para a abertura franca de todas as fronteiras
visitavam-se mais ou menos com uma certa frequência, embora, apenas um ou dois
dias por ano é que a fronteira está oficialmente aberta.
Num, porque é dia da vila de
Alcoutim, noutro, porque é também festa em San Lucar del Guadiana ou Sanlucar.
Desde que o generalíssimo Franco
mandou encerrar a fronteira, facto que aconteceu durante a Guerra Civil
Espanhola, que as duas povoações estiveram sempre de costas voltadas. Apesar de
tudo, a travessia nos dois sentidos processou-se sempre, ante o olhar cúmplice
das autoridades dos dois países.
Sem ponte ou ferry boat, os
alcoutinenses e as gentes de Sanlucar, que lhe fica em frente, continuam a
fazer o trajecto com a ajuda de velhos barqueiros espanhóis e um português, o
único que existe na vila de Alcoutim, o “ti” João Parreira Baptista, de quase
70 anos, que nasceu junto ao rio Guadiana, correu mundo e regressou novamente
para junto dele.
Fomos encontrá-lo no regresso de
mais uma viagem que tinha acabado de fazer entre Alcoutim e San Lucar del
Guadiana.
Amarrou o barco com uma corda de
nylon à velha margem do rio por onde navegaram celtas, cartagineses, romanos,
árabes e por onde agora transitam alguns iates de envergadura.”Ti” João
Parreira Baptista, mais popularmente tratado por “ti” João, é uma figura de
barqueiro bem conhecida em toda a vila que um dia o viu nascer.
“Transporto os turistas, alguém
que queira passar para o outro lado, a fazer compras. Ás vezes faço pequenos
passeios pelo rio. Passo assim o meu tempo, distraio-me com as brincadeiras dos
turistas, com todas as pessoas que transporto para Espanha”, diz-nos.
“Ti” João Parreira Baptista é um
homem que mede bem as palavras que pronuncia. Em menino, andou no transporte de
areia, ajudou a construir o cais que há muitos anos servia de porto de
acostagem aos barcos que então desciam o velho rio Guadiana em direcção a Vila
Real de Santo António. Barcos que navegavam carregados de minério das minas de
São Domingos, no desolado Baixo Alentejo e que eram carregados no velho porto
do Pomarão.
“Eram outros tempos que eu não
esqueço. Hoje, nos nossos dias, os tempos são outros. Os barcos que
transportavam o minério e muitas outras coisas, já acabaram. O rio está morto.
Aquela vida cheia de alegria que eu ainda conheci quando era novo”, esclarece.
Apesar da fronteira ainda não
estar oficialmente aberta, “ti” João lá vai vivendo a vida no transporte das
pessoas para Sanlucar. Sobretudo portugueses que querem ir consultar um famoso
curandeiro espanhol que vive e trabalha a cerca de 10 quilómetros de
Sanlucar.
“Muita gente quer ir tratar-se ao
curandeiro António, que toda a gente conhece como o curandeiro do Granado. O
curandeiro António diz e faz coisas que a gente nem imagina, Cura doenças que
os médicos não conseguem curar”, adianta.
“Ti” João Parreira Baptista foi
muitos anos condutor de máquinas na Marinha de Guerra. Correu mundo e
reformou-se há cerca de 20 anos. Andou 32 anos pelos mares que lhe deram uma
vivência superior àquela que a vida dura de Alcoutim lhe tinha dado.
“Quando me reformei, voltei para
Alcoutim, para junto do rio. Vivia cá um velhote que fazia estas carreiras que
eu hoje faço. Começou a andar doente. Antes de falecer, propôs-me este negócio.
Fiquei-lhe com o barco em madeira, que mais tarde troquei por este, em fibra,
que é muito melhor e não necessita de tanta manutenção. Era conhecido por Zé
Altura. Uma boa pessoa que eu conheci muito bem”, prossegue, ainda, “ti” João.
Ainda é preciso pedir autorização
“Ti” João Baptista diz-nos que as
pessoas, para atravessarem a fronteira entre Alcoutim e San Lucar del Guadiana
ainda têm que ir pedir autorização à Guarda Fiscal (Brigada Fiscal da GNR).
“Só passo com as pessoas depois
de elas terem obtido autorização Só não peço autorização quando a fronteira
está aberta nos dias de festa. Dizem que esse problema vai acabar a partir a
partir do próximo dia 1 de Fevereiro. Ainda hoje de manhã ouvi isso no meu
rádio”, adianta.
À noite, sendo Alcoutim uma vila
morta, alguns dos seus habitantes costumam deslocar-se até Sanlucar, “p`ra
beber uns copitos”, diz.
“As autoridades fecham os olhos
quando são pessoas conhecidas. Tenho mais fregueses no Verão que no Inverno,
que está a ser muito morto este ano”, prossegue.
Leva apenas 100 escudos por cada
viagem que faz. A não ser aos passeios porque a gasolina está cara, tornando os
custos mais elevados e que os turista têm suportar, pagar mais caro. “Ti” João
Baptista tem uma média, neste tempo de Inverno bem friorento, cerca de 5 a 6 clientes por dia, que
quase não dá para viver.
“Se não fosse a minha reforma,
morreria de fome. Tinha que arranjar outro modo de vida”, exclama, sorrindo com
o seu rosto de muitas décadas.
Para “ti” João Parreira Baptista,
ser barqueiro é um modo de vida como qualquer outro. Só que para ele, que
nasceu junto ao rio Guadiana, é diferente. Nasceu com o rio.
Possui dois cães que o adoram. A
“Carocha”, uma cadela preta que nunca o deixa sozinho. Ao outro animal deu-lhe
o nome de “Guadiana”. Um esperto cão de cor castanha que também não o abandona.
“Quando vou para o outro lado,
para Espanha, ficam sempre aqui à minha espera. Agora fui comprar a Sanlucar um
pouco de “cascarilla” (tipo de pimentão vermelho próprio para temperar
chouriças). Eles ficaram à minha espera. É sempre assim”.
“Ti” João Parreira Baptista: o
único barqueiro do rio Guadiana que o viu nascer e com ele quer acabar o resto
dos dias que ainda lhe faltam.
“O rio foi sempre meu. Quero que
ele continue a ser meu, mesmo que amanhã deixe de ser barqueiro”, finaliza,
“ti” João.
Foto: Luís Forra.