Escreve
Gaspar Santos
Os Estrazes nos anos 30 do século passado. Foto cedida pela Família Temudo |
Até ao início da década de 50 do século passado a entrada na Vila de Alcoutim por estrada fazia-se pela Rua das Portas de Mértola, seguindo depois pela Rua da Misericórdia passando pela Praça da República e até ao cais pela Rua do Município ou pela Rua 1º de Maio.
Havia uma viela alternativa para quem entrava na vila a pé ou com um animal. Era uma azinhaga ou viela não pavimentada e muito suja, com uma largura média de 2,5 a 3,0 metros a que dávamos o nome de Estrazes. Esta via passava atrás, a norte dos quintais, dava uma pequena curva e contracurva retomando a mesma direcção nascente até junto da Fábrica de Foices já à vista da Igreja Matriz.
No lado esquerdo de quem entrava nas Portas de Mértola, sensivelmente onde hoje existe um pequeno miradouro, havia duas casas: a primeira onde residia o Ti Domingos de Horta, e uma outra, já então em ruínas, que em tempos tinha sido o lugar onde se abatia o gado a que dávamos o nome de Açougue.
Do mesmo lado esquerdo a pouco mais de um metro para sul do muro actual e até onde hoje está a ponte sobre a Ribeira de Cadavais havia um muro em alvenaria com mais de 3 metros de altura que não deixava ver a Horta do Esteiro da D. Belmira. No fim deste muro e onde agora está o início da ponte, havia um portão de ferro de acesso à horta e ao galinheiro, após o que o muro já só chegava até ao nível do caminho, permitindo ver a Horta do Esteiro, a Ribeira e o Rocio do outro lado.
Do lado direito, até ao acesso à Praça da República, terminavam os quintais. Percorridos cerca de 50 metros encontrávamos um edifício térreo só com duas divisões, cada uma com a sua porta e que constituíam duas residências: dum lado era da ti Libânia e do outro da ti Alice.
Ao virar para a Praça, à direita situava-se um prédio com certo porte cujo quintal ficava nas traseiras da Igreja da Misericórdia e do Hospital. Morava lá a Ti Guilhermina sogra do João Pescada, empregados da D. Belmira e Senhor Quaresma, e a porta mais próxima da Igreja dava acesso à casa onde o mestre Carlos sapateiro teve a última oficina antes de a fixar na sua residência na Rua Trindade e Lima.
Planta parcial da Vila de Alcoutim com a localização a vermelho dos Estrazes. |
Continuando mais para nascente, os Estrazes eram mais estreitos do que na parte poente, mas o trajecto é o actual após alargamento. Depois de passar o quintal da GNR, à direita havia um muro de parede de taipa que limitava o Quintal da Pensão Madeira e a seguir era limitado pela parede lateral da Fábrica de Foices.
Os estrazes, além de ser uma via de entrada na Vila, constituíam um logradouro público com múltiplas funções. Na parte poente, sobretudo na que encostava ao quintal da ti Guilhermina servia para atar as bestas, como se fosse um estábulo público, enquanto os donos tratavam de assuntos nas repartições, acompanhavam funeral, iam a consulta médica, ou bebiam um copo na taberna; servia também de urinol para alguém mais apertado. Muitas vezes, o dono do animal ali amarrado, quando queria regressar a casa já bem bebido, tinha a desagradável surpresa de não encontrar a sua montada, que já regressara ao monte sem o cavaleiro, porque algum brincalhão já a desatara.
Do lado mais próximo da Fábrica de Foices, além de via de passagem, como sítio mais resguardado e tranquilo, servia muitas vezes aos forasteiros de retrete a céu aberto. A pródiga natureza, porque nesses dejectos se lhes ofereciam as sementes, punha em acção a sua função reprodutora, devolvendo a seu tempo algum tomateiro que dava uns tomatinhos muito pequenos e que ninguém colhia. Chamávamos-lhe, por motivos óbvios, tomates cagões. Muitos anos depois para surpresa minha, comi com algum espanto e relutância tomates muito parecidos com estes, quando viajava em avião da África do Sul.
Foto dos anos 30 que presumo ter sido tirada junto dos Estrazes |
Lembro-me de assistir às obras de construção desta entrada na Vila pelas Portas de Mértola, com o sacrifício das referidas 6 casas e de parte dos quintais. Vimos melhorar a vila de Alcoutim segundo várias vertentes. Desde logo a sanitária, depois a beleza e a operacionalidade para o trânsito automóvel, sobretudo das camionetas de carreira que com frequência derrubavam os beirais dos telhados da Rua da Misericórdia na sua passagem. Atrevo-me a referir que foi a obra mais importante, a seguir ao cais novo, que até hoje se fez na vila de Alcoutim.
Foto dos anos 30 do séc. passado que presumo ser tirada junto aos Estrazes.
Obras mais recentes nos Estrazes no troço mais próximo do Rio vieram completar a anterior obra valorizando e embelezando a sede do concelho.
Fizemos pesquisas em dicionários e na internet sobre a palavra Estrazes, com vista a obter a sua origem. Queríamos saber como e porquê os alcoutenejos lhe atribuíram este nome.
Encontramos “preparo dos estrazes em lei de 1908 do Estado de S. Paulo, Brasil” donde extraímos o texto seguinte: … vários trabalhos para o melhoramento do solo, lavras diversas, montagem, desmontagem dos instrumentos agrários e tratamento e preparo dos estrazes.
Impressionou-nos o detalhe, a ciência e a tecnologia agrária implícita naquela lei que tinha a ver com o elenco de matérias a ensinar numa escola agrária no Brasil, já naquela data. Embora não pudéssemos adiantar muito sobre o significado de estrazes ficamos a saber que a palavra foi levada para o Brasil e, possivelmente dum e do outro lado do Atlântico caiu em desuso.
Também encontrámos a palavra estrazos em espanhol, mas não conseguimos uma tradução e, apenas, o seu sinónimo de maltrapilho, rotura, rompimento.