domingo, 3 de março de 2013

Viagem ao Pomarão de lancha a remos





Escreve

Gaspar Santos



Todos os verões fazíamos uma viagem ao Pomarão, para visitar o nosso Tio António Patrocínio. Ele, ainda jovem, fizera um esforço muito grande no trabalho de guarda-fios dos CTT que o deixou imobilizado em cadeira de rodas mais de 40 anos até morrer.

Nosso Tio tinha muitos filhos. Teve um primeiro casamento, ficou viúvo e casou novamente. Os filhos do primeiro casamento tinham idades equivalentes à do meu Pai, enquanto os filhos do segundo casamento, aqueles que ainda moravam com o pai, tinham idades equivalentes à minha. Assim, esses tinham sobrinhos com idade superior à deles, o que eu estranhava por ser diferente do habitual.

 A viagem foi de lancha a remos. Remar exige um esforço físico considerável. Esforço aceitável se a água do rio corre a favor. Mas custoso e quase proibitivo se a maré corre em sentido contrário. É tarefa só para profissionais, que sabem aproveitar as revessas (menor corrente que corre junto da margem) e, sobretudo, que sabem vencer as intensas correntes do rio nos salientes cascalhos dos ribeiros.

 Como a água corre para norte 6 horas e outras 6 horas para sul, esta viagem tinha que ser programada de modo que saíssemos de Alcoutim de manhã quando a maré começava a encher e, portanto, corria de sul para norte e que passadas 6 + 4 horas iniciássemos o regresso para em menos de 2 horas estar de novo em Alcoutim.

Pomarão era nesse tempo uma pequena localidade, porto de embarque do minério das Minas de S. Domingos. Situava-se na margem esquerda do Guadiana e na margem direita do Rio Chança, próximo do vértice de confluência dos dois. Do outro lado do Chança é Espanha.

Estava assim situado no local mais perto da foz do Guadiana na sua margem esquerda, onde o Rio tinha largura e profundidade de águas que lhe permitiam o manobrar fácil dos navios.

Mais a sul também os espanhóis tinham um porto para escoamento de minério. Era o Puerto de la Laja, a meio caminho entre Alcoutim e Pomarão.

 Gostava de lá ir. Considerava aquilo uma saborosa aventura. Ia pisar um outro mundo a que não estava habituado. Uma grande azáfama de indústria mineira e, pelo facto de os mineiros terem poder de compra, também grande azáfama comercial. Tinha várias casas comerciais, lojas, talho e até já tinha um grande café em que os empregados atendiam os estrangeiros em inglês, fruto do atendimento frequente dos tripulantes dos navios.

Hoje as crianças lêem mais, e digitam nos seus jogos electrónicos, a todas as horas e em todos os locais, pouco olhando em volta. Pelo contrário, nós nesse tempo tínhamos poucos livros e, se havia curiosidade, olhávamos mais as coisas e fazíamos mais perguntas aos pais.

O Guadiana à Lourinhã. Foto JV, 2013
Logo a seguir à curva da Lourinhã a margem portuguesa do rio é muito inclinada, nela se avistando um caminho de cabras, que era utilizado pelos tripulantes para puxar à sirga os seus barcos a remos e vela, quando durante as cheias a corrente não deixava que os barcos rumassem a norte só com os seus próprios meios. A uma observação minha, meu Pai explicou-me como funcionava essa sirga e a necessidade do seu uso, pois o comércio ribeirinho sofreria severamente se essas cargas não fossem transportadas.

A casa de meu tio era já um pouco fora do Pomarão, a norte da localidade e tinha uma vista de muitos quilómetros tanto para sul como para norte e que com os binóculos que ele possuía nos permitia “aproximar” o que se avistava. A poucos metros, em plano inferior havia um enorme parque de linhas de caminho de ferro onde os comboios manobravam com as suas vagonetas carregadas de minério.

Nessas manobras podíamos experimentar os mais variados sons: eram o “pouca terra”, “ pouca terra” dos comboios que chegavam ou partiam; era o som das correntes de engate das vagonetas; eram os estampidos dos impactos/choque das vagonetas com outras; e a multiplicação desses impactos por propagação do movimento tipo dominó duma para as outras.

A linha de caminho de ferro que vinha da Mina de S. Domingos, após passar um pequeno túnel já à vista do Pomarão corria para sul paralelamente ao Guadiana. E em frente da casa do meu tio começava a descrever uma curva suave e a subir uma estrutura de madeira em ponte, terminando num cais acostável também de madeira. A linha terminava aqui, já perpendicularmente à margem do rio. Podem ver-se imagens deste cais e da localidade na Wikipédia.
O Gomes 2º
E aqui dava-se a parte mais espectacular do trabalho. As vagonetas carregadas de minério, que tinham sido empurradas para o cais pela máquina a vapor e colocadas imobilizadas em fila de espera, eram empurradas uma de cada vez por 2 ou 3 homens até chegarem ao limite do cais que possuía um engenhoso sistema de paragem brusca de fim de linha. A energia cinética de que ia animada fazia-a capotar deixando cair a sua carga para uma tolda a escorregar para o porão do navio encostado ao cais. Tudo com sons característicos do escorregamento do minério sobre a chapa metálica da tolda e a sua queda no porão do navio.

Descrevemos a actividade portuária ligada à exportação do minério. Na linha de ferro circulava por vezes também uma pequena automotora – a “auto zorra” ou “alto zorra” como lhe chamavam localmente, para transportar entre a Mina e o Pomarão empregados da empresa mineira.

Pomarão tinha então um porto já com alguma sofisticação só para o serviço da empresa mineira. Mas não tinha um simples cais acostável para pequenos barcos nem para o “gasolina” que fazia nesse tempo carreiras regulares entre Mértola e Vila Real Santo António. Tendo que recorrer a uma prancha improvisada e algo perigosa para a saída e entrada de passageiros e carga.

O Pomarão em 1864 vendo-se os barcos aguardando para
carregar o minério

Quando a empresa das Minas de S. Domingos se retirou levou toda a sucata possível inclusivamente as linhas de ferro.

Nesta última viagem fizemos o regresso com a maré a correr para sul de acordo com o programado. Mas como eu gostava muito de velejar, levava mais ou menos escondido um lençol para improvisar uma vela e aproveitar a brisa favorável do norte se a houvesse. Tive a sorte de nesse dia se formar essa brisa com alguma intensidade. E assim consegui convencer o meu Pai a preparar uma vela com um remo e uma cana. Montado o leme a que eu me agarrei, lá vim todo o regresso orgulhoso como timoneiro. E o esforço assim foi muito menor.

Guarita da G.F.
Foto JV, 1986
Recordo-me de quando chegamos a Alcoutim. Era já noite. Queríamos pedir ao Guarda-fiscal de serviço autorização para atracar e sair da lancha. - Senhor Guarda dá licença…Senhor Guarda dá licença… e nada …Saímos, fizemos bastante ruído com a ancora de propósito para acordar o guarda, sem sucesso… o guarda estava a dormir em pé, encostado à muralha da capela! Passámos pelo guarda e fomos para casa sem que ele desse por nada.

O Pomarão era naquele tempo, por ser próximo, o adversário mais frequente com que se batiam em futebol os de Alcoutim. Os jogos alternavam num campo e no outro. O nosso na Fonte Primeira, não sendo bom, era maior e melhor do que o do Pomarão que, para jogarem no parque do minério a granel, tinham que proceder previamente à sua remoção e limpeza. Também vários anos fomos lá pelos Santos Populares que ali se festejavam brilhantemente com bailes durante todos os dias entre o S. João e o S. Pedro.

Hoje o Pomarão quase não é habitado, parecendo uma terra fantasma. Meia dúzia de casas habitadas, em geral por idosos; e a maior parte das casas em ruínas ou restauradas por pessoas não residentes. São os destroços finais duma grande actividade mineira.

Pomarão já está bastante estudado historicamente. Há por isso na internet vários e bem documentados trabalhos que se podem consultar.

Este texto pretende ser apenas um simples relato/lembrança de viagem que fizemos há muitos anos, a esta simpática e acolhedora terra, quando a mina ainda funcionava.