(PUBLICADO NO JORNAL ESCRITO DE MAIO DE 1999)
Ao Vivaldo
Não é a primeira vez que na imprensa regional nos referimos a uma pequena povoação do concelho de Alcoutim. Fizemo-lo já com Alcaria Queimada, Santa Marta, Cortes Pereiras e Afonso Vicente. De todas, será esta a mais pequena, mas isso não significa que sobre ela nada exista para dizer. Que eu saiba, pelo menos desde os princípios do século XVIII já se chamavam montes às aldeias que não eram sedes de freguesia. A razão porque se chamam montes, já a demos, quando escrevemos sobre Santa Marta. (1) Todavia, existem outras opiniões justificativas para esta designação.
Os roteiros turísticos que conheço, não o referem, mas penso que o “monte” e as suas redondezas, principalmente a foz da ribeira, justificam plenamente uma visita, principalmente se for guiada. Admitindo que nos encontramos na vila, atravessa-se a ribeira de Cadavais, pela ponte inaugurada em 1986, e seguimos pela estrada municipal nº 507. É preciso cuidado com a passagem estreita que nos aparece logo ao iniciarmos a subida que se vence serpenteando o Cerro da Mina. Ao atingirmos a maior altura, a estrada desenvolve-se por uma recta em vários planos. Fica-nos à direita um pequeno monte semelhante aos montes alentejanos, de construção da primeira metade do século, cujo fundador o baptizou com Monte do Sol, designação que se ajusta bem, seguindo-se do mesmo lado e a alguma distância, o Monte Longo que pertence às Cortes Pereiras. Do outro lado, um pouco afastado da estrada, o velhinho São Martinho, possivelmente o mais antigo dos que se situam entre a Ribeira de Cadavais e a do Vascão. Pouco depois, encontramos a indicação de um entroncamento, à direita, que nos indica, Monte Vascão.
Entramos então na estrada municipal nº 1054, construído na década de setenta e anos depois asfaltada. Esta estrada, cujo pavimento estava em mau estado, serve praticamente só aquele monte, onde termina. É dominada por rectas e envolvida por estevais. De repente, surge-nos numa leve colina a airosa povoação, toda branquinha e onde não se vêem “caseirões” que são muito frequentes nos outros montes, chegando mesmo a dominá-los. Nunca foi um monte grande. De tipo concentrado, só um dos fogos se encontra afastado, ao norte, os vales que se encaminham para a ribeira são profundos. Antigamente chamavam-lhe Fonte Almece e ainda hoje muita gente a conhece por essa designação. Em recente trabalho literário (2) que tem por base a Ribeira do Vascão, o autor identifica a povoação como Fonte Almece e não como Vascão.
A mudança do topónimo deve ter ocorrido na transição do século XVIII para o XIX, já que em 1771, e pelo menos alguns anos seguintes, aparece sempre designado com este nome. Mas a partir de 1834 será sempre Vascão, conforme asseveram os documentos do arquivo municipal. Nunca encontrámos qualquer deliberação camarária nesse sentido e que deve ter ocorrido entre as datas que referimos, mas de que a Câmara não guarda documento, possivelmente desaparecido pelo incêndio posto pelo Remechido, quando por aqui passou.
[Outro aspecto do Monte do Vascão. Foto JV, 2008]
Parece-nos que o monte como povoação não será muito antigo e pensamos que a sua origem, como noutros casos do concelho, é capaz de estar numa herdade que pertencia à Capela de Nª Senhora da Conceição e de que a Câmara era administradora. A propriedade designava-se por Herdade do Vascão. Sabemos que em 1518 a ermida de Nª Senhora da Conceição, entre outros bens, possuía huma courela de matos em Vasquam.. (3) Pensamos que esta courela teria dado origem à herdade, já que a designação não é estanque, principalmente no decorrer dos tempos.
A uma pequena herdade, facilmente se chama grande courela. Na sessão da Câmara Municipal de 25 de Fevereiro de 1856, é apresentado um requerimento por Manuel Lourenço, do monte do Vascão, no qual pede à mesma para fazer novo aforamento na pessoa de seu filho, José Cavaco, da Herdade do Vascão, foreira à Real Capela de Nª Senhora da Conceição em quarenta alqueires de trigo por ano (na altura o alqueire valia em Alcoutim, 13,64 litros). A Câmara aceitou a pretensão do requerente desde que o foro passasse para quarenta e cinco alqueires e fosse posto em casa do tesoureiro da Capela à custa do foreiro. Não temos conhecimento das outras condições do emprazamento, mas sabemos que em 1877 o Presidente da Câmara apresentou três títulos de dívida pública no valor de 250$000 réis que lhe foram mandados entregar e proveniente da venda da Herdade do Vascão (certamente por remição do foro) a José Cavaco, cujos títulos pertencem à Real Capela de Nª Senhora da Conceição, desta vila, de que a Câmara é administradora. Segundo nos informam ainda existem descendentes desta família na povoação. Não sabemos desde quando a família Cavaco (ou Lourenço) tinha por aforamento a herdade, mas temos conhecimento que nos anos setenta do século XVIII habitavam o monte, Estêvão Cavaco e Manuel Cavaco que manifestavam na Câmara os seus gados, constituídos fundamentalmente por bovinos.
Esta herdade dominava a zona rústica do monte.
O topónimo Fonte Almece parece ter um significado óbvio. Almece é palavra de origem árabe que significa “soro de leite”. (4) Contaram-nos porém, uma pequena estória segundo a qual o nome teria vindo de um poço que abriram no local cuja água amargava como o almece. Outros dizem que a semelhança estava na cor leitosa da água, quando nascia.
Porque teria mudado o nome?
Normalmente a alteração tem a ver com o sentido depreciativo desses topónimos e de que, por vezes, se envergonham as populações. Por exemplo, Póvoa dos Galegos passou a Póvoa de Santarém, Punhete para Constância, Porcalhota para Amadora. E muitos mais exemplos podíamos referir.
O actual topónimo foi buscá-lo à ribeira que lhe passa e desagua próximo.
José Vicente Romana, residente neste monte, é nomeado vogal substituto da Comissão Administrativa da Câmara e ao mesmo tempo Administrador interino. (5)
Em 1933 é aberto um poço de quatro metros de diâmetro e oito de profundidade para o qual se contratou Manuel Alexandre, das Cortes Pereiras, que recebeu 880$00 para o trabalho. (6) Responsabilizou-se pela boa execução do mesmo, o 1º Cabo da Guarda Fiscal, António Mestre Júnior. (7) Entretanto a Câmara deliberou mandar empedrar com cal e areia o respectivo reboco interior, trabalho que veio a ser feito por um pedreiro da Mesquita (Espírito Santo). (8) Em 1949 o Diário de Lisboa noticia que entre outros, o poço do Vascão já há mais de um mês que se encontra completamente esgotado. (9)
Era considerado nos anos sessenta um dos montes mais ricos em produção de amêndoa.
Quando se deu o 25 de Abril, o Presidente da Câmara em exercício, era daqui natural.
Que saibamos, pelo menos cinco naturais ou residentes exerceram funções no executivo municipal, situação difícil de encontrar em qualquer outro monte do concelho.
Em 1976 tinha apenas vinte e oito moradores. O pequeno largo central, onde se situa a estação elevatória, datada de 1987, está asfaltado, assim como cimentadas as ruelas que constituem a rede pedonal.
Presentemente, cinco fontanários distribuem o precioso líquido pela população que em 1981 se cifrava em dezoito habitantes, possuindo o monte vinte e um edifícios, nem todos habitados, como é óbvio. No núcleo central e por deferência do seu proprietário, foi-nos dado observar um arco ogival, se a memória não me atraiçoa, que apareceu durante um trabalho de restauro e que foi preservado. Não me admira que venha a ser considerada a casa mais antiga da pequena povoação.
Quando se entra no monte, do lado direito, uma pequena vivenda e no largo, antiga e interessante construção recentemente adulterada com alumínio.
Tem recolha de lixo e painel de caixas para distribuição do correio. Um refúgio para quem pretende esperar por um transporte automóvel.
A partir do monte existem caminhos agrícolas que de uma maneira geral terminam na ribeira. Percorremos de automóvel, com o auxílio de um amigo, aquele que mais nos interessava e que ia terminar junto do moinho de D. Miguel, figura quase lendária que ficou para sempre ligado a esta povoação. Trata-se de um refugiado político de esquerda, oriundo de Espanha que se naturalizou português e foi eleito Presidente da Câmara.
[Casa típica no Vascão. Foto Jv, 1989]
O caminho é sempre a descer e por vezes apresenta diferenças de cotas extremamente acentuadas pelo que chegámos a pôr em dúvida a conclusão do trajecto. Os terrenos acidentados por onde o veículo serpenteia, ainda estão, na maioria, aproveitados.
Foi-nos possível observar o moinho de D. Miguel, de uma robustez surpreendente mas que o assoreamento já o tem quase tapado. Ainda conseguimos entrar a custo.
O nosso companheiro diz-nos que é tradição que as mós ainda lá se encontram. O caminho em que seguimos termina num pequeno largo onde, segundo a tradição D. Miguel tinha uma casa onde pernoitava e fazia o troco da farinha. Alguns afirmam igualmente que foi aqui arcabuzado por um habitante da vila, depois de embriagado pelos caciques da terra que sempre existiram no decorrer dos séculos.
É interessante observar a confluência da ribeira que, no seu término descreve uma curva surpreendente. O antigo posta da Guarda Fiscal encontra-se próximo e em ruínas e tem também caminho de acesso. Esta extinta organização paramilitar ocupou grande parte dos filhos e moradores deste monte e é devido principalmente a esse facto que a população de certa maneira se tem estabilizado.
Existe na zona do Vascão um calvário erguido pela morte de uma pessoa que se afogou no Pego Fundo.
O Monte do Vascão além de amêndoa produz bastante azeitona e alguma alfarroba. Um apicultor obtém uma média de cento e cinquenta litros de mel por ano.
Nunca possuiu qualquer estabelecimento comercial, pelo qie recorriam normalmente às Cortes Pereiras. Era também esta povoação que recebia as suas crianças em idade escolar.
Dista cerca de oito quilómetros da vila.
[Foz da Ribeira do Vascão]
Aqui ficam alguns dados que conseguimos reunir sobre esta povoação pertencente à freguesia e concelho de Alcoutim. Acreditamos que ajudarão a situar no tempo e no espaço um possível visitante.
NOTAS(
1) "A Capela de Santa Marta (a velha) e o Monte do mesmo nome, na freguesia de Alcoutim," in Jornal do Algarve de 26 de Abril de 1990.
(2) Floridas na Pedra, A Hidrografia do Vascão e a Serra do Caldeirâo ou Mu, Francisco Dias Costa, 1996.
(3) Visitações da Ordem de Santiago no Sotavento Algarvio, Hugo Cavaco,1997
(4) Vocabulário Português de origem Árabe, José Pedro Machado, Editorial Notícias, 1991.
(5) Acta da Sessão da Câmara Municipal de Alcoutim de 4 de Agosto de 1930.
(6) – Acta da Sessão da Câmara Municipal de Alcoutim de 12 de Outubro de 1933.
(7) – Acta da Câmara Municipal de Alcoutim de 27 de Junho de 1933.
(8) – Acta da Sessão da Câmara Municipal de Alcoutim de 16 de Dezembro de 1933.
(9) – Diário de Lisboa de 2 de Setembro de 1949.
DD