Pequena nota
Ainda bem que convenci o nosso colaborador e Amigo, Amílcar Felício, a escrever algo sobre uma figura que só conheci de nome e que me era referida como um grande músico.
Acreditem que não foi fácil convencê-lo e compreende-se por quê. Escrever sobre um familiar tão chegado com a “agravante” de que o seu relacionamento, como os leitores irão certificar-se, ia para muito além do de tio e sobrinho, não se torna tarefa fácil.
Por mais que tentasse encobrir, Amílcar Felício demonstra bem o “fraquinho” que tinha pelo tio, que se mantém e o acompanhará pela vida fora.
Para o convencer a escrever tive que argumentar que também eu já o tinha feito em relação a familiares, que o tio, pelo pouco que eu sabia, era uma pessoa que devia ser mais conhecida no âmbito alcoutenejo, que fosse do meu conhecimento ele era a pessoa melhor colocada, senão a única para o fazer, principalmente para os vindouros.
O estilo inconfundível de Amílcar Felício e que constitui uma das atracções deste ALCOUTIM LIVRE, mais uma vez aqui está patenteado e onde o realismo e a graça andam de braço dado. Deliciem-se, leitores.
Obrigado Amílcar.
JV
Escreve
Amílcar Felício
Nota indispensável
É difícil falarmos com objectividade de alguém que admirámos em vida, com quem partilhámos vários anos o mesmo tecto debaixo de uma tal cumplicidade, que mais parecíamos o irmão mais velho e o irmão mais novo do que tio e sobrinho, que marcaria a nossa própria formação de maneira indelével e a quem íamos dando cada vez mais valor, à medida que íamos amadurecendo.
Por outro lado sempre convivemos mal desde pequeno com elogios, ou a nós ou a quem nos é próximo e muito menos com auto-elogios ou autoproclamações. Assim, confesso que se não fosse o pedido do amigo Nunes há já alguns meses, nunca me passaria pela cabeça fazer esta crónica, até porque já muito pouca gente se lembrará do Maestro Vieira naturalmente. O que os leitores do Alcoutim Livre poderão estar certos é de que tentarei dizer apenas aquilo que vi, vivi e senti, despido da maior subjectividade que me for possível. Só não sei é se o conseguirei totalmente...
Não quis também deixar de recordar com carinho no título desta crónica, uma figura castiça de Alcoutim, que nos anos cinquenta quando já tinha o seu copito e com um pequeno banco de taberna entre as pernas, ainda matava saudades com as suas batucadas e com grande emoção quase três décadas depois, os seus velhos tempos de músico da Banda. Refiro-me ao Mestre Carrolino, “barbeiro ambulante” de profissão a maior parte das vezes, pois deslocava-se a pé de Monte em Monte para trabalhar. Tinha a alcunha de “O Estragado”, mas também era conhecido naqueles tempos pelo “Maestro Lóló” como veremos mais adiante.
Chamava-se Manuel do Carmo Vieira e nasceu em Vila Real de Santo António. Os seus pais fixaram-se em Alcoutim ainda ele era criança e deste modo, adoptaria naturalmente Alcoutim como a sua terra natal. Revelou-se muito independente e grande trabalhador desde muito jovem, saindo debaixo da saia da mãe apenas com 11 ou 12 anos de idade. Assim, fez-se à vida arranjando emprego em Olhão como anotador de obra em obra, tomando nota das presenças dos trabalhadores que entravam ao serviço. Esta vivência com os trabalhadores anos e anos a fio, marcaria para toda a vida a sua maneira de ser muito popular.
E lá ia ele subindo de andaime em andaime sempre assobiando, enquanto ia convivendo com os trabalhadores e anotando os seus apontamentos. Essa maneira de se comportar no dia-a-dia valeu-lhe a carinhosa alcunha do Pintassilgo por parte dos trabalhadores (lá vem o Pintassilgo!), o que certamente já seria um indicador do seu gosto pela música.
Quando o Serviço Militar chegou, enfileirou pela Especialidade de Música e assim começava a dar corpo aos seus gostos de menino e a tornar-se no músico profissional que viria a ser mais tarde. Penso que foi na transição do Exército para a Banda da Guarda Nacional Republicana, que reorganizou e reactivou a moribunda Banda de Música de Alcoutim. Pelas minhas contas tal terá ocorrido entre os finais da década de vinte e os princípios da década de trinta.
Para um melhor conhecimento daquela relíquia alcouteneja, reveja-se a excelente aguarela de José Varzeano no Alcoutim Livre de 25 de Setembro de 2009, aonde eu próprio tomaria conhecimento das origens da Banda que desconhecia, assim como de quem tocava o quê (não terei essas preocupações nesta crónica), bem como confirmaria 50 anos depois pela boca do Ti “Afonso Costa” com uma exactidão impressionante, quer o nome da Banda quer o conjunto de actuações em terras vizinhas, o que acho extraordinário. Acrescentarei contudo, saborosas peripécias ocorridas nessas deslocações que me foram relatadas nos anos cinquenta pelo meu tio Vieira, embora transcreva apenas as memórias que tinha antes de ler aquele artigo.
Referia-se “paternalmente” à extinta Banda pelo nome de “Banda 1º de Dezembro de Alcoutim” e sentia-lhe na voz quando a conversa vinha à baila, uma certa pitada de orgulho. Devo confessar de que sempre estive convencido de que o extinto “Grupo Desportivo 1º de Dezembro de Alcoutim” teria sido o herdeiro natural do nome da referida Banda, embora não o possa garantir.
De alguns dos participantes de que me falava recordo-me entre outros, para além do meu tio (Maestro da Banda) e do meu pai naturalmente, do Mestre Cândido, do Sr. Leopoldo e do irmão, do Ti “Afonso Costa”, do Ti Xico Barão, do Ti Alfredo da “Cadeia” se a memória não me falha e do Mestre Carrolino a quem ainda nos anos cinquenta chamavam de Maestro Lóló, alcunha que lhe ficara dos tempos da Banda, pois que na aprendizagem da escala de música em vez do célebre Dóóó...óóó...óóó...Rééé...ééé...ééé...etc., ele dizia Lóóó...óóó...óóó... Não é Lóóó... Carrolino (!!!), é Dóóó...óóó...óóó.... e ele lá voltava a repetir Lóóó...óóó...óóó. Ficaria a ser conhecido pelo Maestro Lóló pois claro!
[Rua de D. Sancho II em Alcoutim e local onde viveu Manuel Vieira. Foto JV, 2010]
Também me contou que numa das deslocações da Banda a Odeleite e quando desciam a velha estrada em direcção à aldeia, deixou de ouvir o Tambor. Intrigado, olha para trás e qual não é o seu espanto quando vê o Mestre Cândido estrada acima já a uns bons 50 metros, de maceta do bombo na mão atrás dos moços, pois que como era manco a garotada por graça mexia-lhe no rabo e ele claro, marimbou-se na Banda e cá vai disto! Noutra ocasião, quando regressavam de uma actuação em Sanlúcar (Espanha) e já no meio do rio numa altura de cheia e num momento de atrapalhação, o Ti “Afonso Costa” deixou cair o seu instrumento de sopro ao rio. Foi preciso agarrá-lo, pois queria atirar-se à água para o ir buscar, o que é revelador do carinho que tinham pelos seus instrumentos! Tenho uma vaga ideia de me ter falado também numa deslocação ao Granado (Espanha)
Tinha uma paciência sem limites e pôs toda aquela gente a tocar por música excepto um, o meu pai, que antes dos concertos se chegava ao pé dele e lhe perguntava: “então mano, diz lá o que é que eu tenho que tocar?” e ele tocava a seguir. Sentia da parte dele uma saudável invejazinha quando me contava estas coisas: “aquele rapaz (ele era o irmão mais velho) se tivesse querido aprender música com o jeito que tem, podia ter ido longe”. Não tenho naturalmente qualquer tipo de qualificação e até posso estar a ser injusto, mas sempre estive convencido de que sem ser um predestinado, acabaria por se tornar num grande profissional devido ao gosto e à dedicação que tinha pela música, assim como ao trabalho a que nunca virou a cara para evoluir. Com trabalho não há dúvida, via-se sempre aonde se quer!
Era de facto um trabalhador incansável e um perfeccionista compulsivo. Para além de pertencer à Banda da GNR graduado com o posto de 1º Sargento Músico, desenvolvia paralelamente uma intensa actividade profissional tendo sido dirigido pelos Grandes Maestros das décadas de cinquenta e de sessenta e participado nas principais Orquestras de Lisboa da altura. Recordo-me nomeadamente de ter pertencido à Orquestra da Emissora Nacional.
Ainda menino, acompanhei-o vezes sem conta a Concertos, Operas, Operetas e Revistas ao Teatro de S. Carlos, ao Teatro da Trindade, ao Coliseu, ao Pavilhão dos Desportos e a inúmeros Teatros de Revista no Parque Mayer, muito em voga naquela época pelo seu “picante político”, aonde actuava regularmente nas referidas Orquestras. Ajudava-o a levar os instrumentos: era a minha participação nos espectáculos! Depois acabávamos a “farra” no velho e tradicional Canas à 1 ou 2 horas da manhã a comer um belo prego à antiga portuguesa e a beber uma imperial que me estragava o sabor do dito, pois com 12 ou 13 anos preferia um pirolito claro! Quantos leitores do Alcoutim Livre se lembrarão ainda desta exótica bebida, espécie de espingarda de carregar pela boca? Mas ele dizia-me que tinha que me fazer um homem e não havia outro remédio, tinha que “mamar” a dita que amargava como um raio. Ai se os meus velhos soubessem que ele andava a dar cerveja ao puto!
Era uma pessoa calma mas por vezes também um revoltado e até contra si próprio. De estatura mediana, tinha uns dedos muito sapudos e pouco próprios para tocar piano ou qualquer outro instrumento, que requerem dedos mais longilíneos: “até nisto tive azar, carago! olha-me lá para estas mãos, que tristeza!” dizia-me frequentemente revoltando-se contra as próprias mãos que lhe tinham “calhado”. E de facto nunca foi um homem bafejado pela sorte: ele que tanto praguejou toda a vida, nem teve o prazer de ver o Botas cair da cadeira pois morreu um ano antes. Homem de personalidade forte e de grande carácter era extremamente organizado e metódico, trabalhava dia e noite e por vezes até Sábados e Domingos, económico pois os tempos a isso obrigavam, amigo do amigo e da família, de uma honestidade à prova de bala não podia nem com vigaristas nem com vira casacas, estando sempre disponível para ajudar ou confortar o próximo: as suas manhãs de Sábados e Domingos eram passadas entre cemitérios e hospitais. Nunca lhe conheci um inimigo. Mas era também um homem de extremos que vivia com paixão o seu grande amor: a música, ou o seu ódio de estimação: Salazar e o regime. Não passava um dia em que não o ouvisse blasfemar: “Isto não passa de amanhã! Estas conversas não se contam lá fora ouviste?”
Mas não se limitava apenas a ser um “revoltado em casa”, pois também em público não calava a sua revolta, revelando de facto grande coragem quando nos finais dos anos cinquenta, apesar das consequências e pressões a que ficaria sujeito posteriormente, viria a assinar as Listas da Oposição para a Presidência da República apesar de pertencer à Banda da GNR, “nicho democrata da GNR” como ele me dizia então e eu confirmaria pelos muitos colegas que conheci e que iam lá a casa.
Pude confirmar que deveria ter sido considerado persona non grata pelo regime de então. Como os mais velhos certamente recordarão, Alcoutim e as Cortes Pereiras infelizmente tiveram as suas “ovelhas tresmalhadas”, mas é interessante constatar como os “afectos da conterrâneidade” às vezes se sobrepõem a outros interesses, mesmo para aqueles que aparentemente seriam pouco dados a “mariquices” daquele género. Efectivamente, lembro-me de ser portador de recados do meu pai sempre muito aflito, para avisar o meu tio Vieira de que tivesse muito cuidado com as conversas que tinha em público, pois tinha sido informado por uma daquelas “ovelhinhas”, de que a Pide o considerava um “indivíduo perigoso e qualquer dia podia ser preso”. Sempre achei curiosa esta atitude e assim aqui fica a nota.
Politicamente esclarecido e bem informado para o Portugal cinzentão dos anos cinquenta, naturalmente pelas amizades que cultivava no antigo Depósito da Carris das Amoreiras – verdadeiro nicho de contestação ao regime – era leitor assíduo do jornal República e ouvinte regular da Rádio Moscovo. Eu era o seu grande comparsa que lhe ia comprar o jornal à socapa, seguindo as orientações precisas que me dava para não ser seguido e quem vigiava de janela em janela (o sacana do prédio era de esquina, o que me dava uma trabalheira do caneco!) pela noite dentro, para observar e dar o alerta se existisse algum movimento estranho de carros pretos com “grandes antenas” na rua e que “bisbilhotavam” dizia-se, tudo o que se passava em cada andar.
Mas penso que era a Carris que lhe ateava e alimentava diariamente a chama da revolta, pois deslocava-se de eléctrico várias vezes no seu dia-a-dia e conhecia todos os guarda-freios e todos os trinca bilhetes da altura. Lembro-me de que quando Álvaro Cunhal e um grupo de companheiros se evadiram de Peniche nos princípios dos anos sessenta, nesse mesmo dia comentou-se com satisfação o acontecimento lá em casa. E com tantos pormenores tais como teria passado ou permanecido, já não me lembro ao certo, na Rua do Arco Carvalhão em Campolide a 500 metros da nossa casa para apanhar a estrada para Cascais, o que para a neblina da informação que existia na altura é bastante revelador.
[Alcoutim, vsta parcial do seu tempo]
Era uma figura verdadeiramente popular no popular Bairro de Campo de Ourique, passe a redundância. Impressionava-me andar com ele na rua, pois parecia que estávamos em Alcoutim e não em plena Lisboa: “Bom Dia Mestre... Boa Tarde Mestre Vieira... Boa Noite Sr. Vieira como é que vai isso”? O que era natural, pois para além da sua natural humildade e maneira de ser muito popular, os seus tempos livres eram dedicados a ensinar música, por amor à camisola, nas populares Colectividades que naqueles tempos funcionavam como verdadeiros Centros de Cultura, de Política e de Convívio Social, aonde mantinha muitas amizades: era Maestro da Banda Filarmónica da Sociedade Alunos de Apolo em Campo de Ourique – uma das mais antigas e prestigiadas Colectividades lisboetas – e da Banda Filarmónica da Sociedade Verdi no vizinho Bairro do Casal Ventoso hoje tão mal conotado, mas naqueles tempos um pacato Bairro Operário, aonde o ia esperar a qualquer hora da noite sem problemas.
Tocava quase todos os instrumentos e aquilo lá em casa era uma autêntica sinfonia, desde piano a violino e contrabaixo, até aos mais variados instrumentos de sopro e de percussão, quer nos seus ensaios diários a solo quer nos ensaios de pequenos Grupos Musicais que nasciam naquela época como cogumelos. Naturalmente também me quis pegar o bichinho da música, mas eu pertencia ao grupo daqueles que “cantam mal, mas desafinam muito bem” pois não se pode ter tudo de mau na vida e o que queria era começar a tocar os instrumentos de imediato, não tendo muita pachorra, para passar horas e horas no dó...ó...ó...ó..., ré....é...é...é..., mi...i...i...i...etc. Um dia enchi-me de coragem e disse-lho cara a cara. Com muito desgosto seu, parámos nesse mesmo dia as aulas de música e assim continuei pela vida fora a “cantar mal, mas a desafinar maravilhosamente”.
Estou convencido de que se empenhava mais em passar-me os seus valores do que aos próprios filhos. Na realidade acabou por fazer de meu 2º pai na idade mais problemática da adolescência.
Trabalhou até aos seus últimos dias de vida. Lembro-me de já homenzinho, preocupado com o seu estado de saúde deplorável, o acompanhar noite após noite ao seu último trabalho no Teatro da Trindade, até ser hospitalizado de urgência para ser operado. Descobriram que se tratava de doença fatal e foi mandado embora nesse mesmo dia, para morrer em casa. Era assim naqueles tempos...
Mantive-me 30 dias e 30 noites quase sozinho com a minha tia ao pé dele como um cão ao pé do dono, acompanhando-o numa morte horrível e tratando-lhe das feridas mal cheirosas que já não cicatrizavam devido à infecção. Mas tinha a consciência plena de que fizesse o que fizesse, nunca conseguiria retribuir-lhe o muito que me tinha dado em vida.